A Porta do Armário Voltou a Abrir-se

de Marta Nazaré

Uma das mãos enluvadas da Felisberta alcançou os instrumentos da limpeza quinzenal, e todos se precipitaram para mim em busca de refúgio.

Pezinhos taptapearam em fuga. Zunzuns assustados espalharam-se, a cricritar o alerta. Asinhas voaram e perninhas pularam para mim em avalanche, escondendo-se por cima e por baixo dos meus membros, e no meio das minhas reentrâncias. Caladas, famílias inteiras de pequenos seres, pelos quais desenvolvi simpatia, esperavam abraçadas que o perigo humano passasse, mas o nevoeiro tóxico alcançava-as sempre. 

Eu sentia os bichinhos espernear, espasmar, até fecharem os olhos dentro de mim. A aspiração meticulosa da mulher-a-dias vinha pouco depois sugar almas sem direitos, concluindo o ritual insensível, escovando-me e cobrindo-me com uma manta lavada.

Abalado num sofrimento imóvel, eu suportava a tristeza que pesava nas molas do meu corpo, a dor que chiava nas minhas dobradiças — muito depois de a Felisberta concluir a purga e restituir os inseticidas ao seu lugar, de o falso sol se apagar, para pouco depois voltar a acender-se na tortura às mãos da família Gomes. Amassavam-me, espezinhavam-me, lambuzavam-me, faziam de mim depositário de restos que atraíam nova companhia de seis patas. O ciclo repetia-se. 

Deixo-me ficar em lamentos, em cismas, à espera do dia em que me descartem e me abandonem num aterro à beira da estrada. Um mono sem utilidade, um cadáver em decomposição lenta, bolorento, feio e empestado de pragas, mas, ainda assim, um sofá livre. E feliz.