Como Arrumar a Mala

de Tiago Rodrigues

 

No avião, sentado junto a uma janela, reconheço a minha mala a ser atirada para o porão. Sorrio, lembrando‑me do que lá trago.

 

Enganar a segurança dos aeroportos não é tão difícil como as pessoas pensam.

 

2 de Abril, 06:51 AM — Descolagem de UPG (Aeroporto Internacional Sultan Hasanuddin)

 

O segredo está em saber como arrumar a mala. Cada objecto tem um lugar, definido para um propósito. Cada um organizado numa cuidada encenação.

 

Encontro entretenimento num livro de Sophie Kinsella, interrompendo‑o só para o pequeno-almoço. Que posso dizer? Gosto de chick lit.

 

No fundo da mala, a roupa limpa, seguida de vários souvenirs, entre eles incensos. Na verdade, a maioria é levada de casa, em vez de prendas compradas em tourist traps. Os vários itens criam ruído nos scanners do aeroporto. Os incensos, comprados lá pela frescura, ajudam a confundir os cães.

 

Após o almoço, revejo o Lisbela e o Prisioneiro. Sigo‑o com o Memórias de um Assassino, lanchando entre os cadáveres que por lá se vão descobrindo.

 

No topo, o saco da roupa suja. A cobrir o computador, os carregadores, a máquina fotográfica, a escova de dentes e outra electrónica. Mais ruído nos scanners. Claro que a roupa suja é um bom pretexto para ambientadores, para despistar ainda mais os cães.

 

Após o jantar, volto ao livro, acompanhado por um digestivo.

 

No meio, uma manta, para proteger a electrónica de estragar os souvenirs. Na verdade, embrulha a mercadoria, arrumada numa embalagem hermética, para prevenir odores ao máximo.

 

De olhos cansados, ajeito a almofada para o pescoço, baixo a venda e durmo o resto da viagem.

 

Parabéns. Tens a mala arrumada e pronta para o regresso a casa.

 

3 de Abril, 05:35 AM — Aterragem em LIS (Aeroporto Humberto Delgado)

 

Mas o prazer está em adquirir e preparar a mercadoria.

 

Aproximo‑me do carrossel de bagagens, com os restantes passageiros.

 

Há que viajar para um país com desafios económicos, onde as pessoas estão mais disponíveis a ouvir o cifrão.

 

As malas vão aparecendo. Os donos mais despertos correm para elas mal as vêem.

 

«É uma brincadeira», digo‑lhe. «Não queres dinheiro, para ajudar os teus pais?» A criança nunca viu um saco de vácuo. Não percebe onde se está a enfiar.

 

As malas rodam e rodam. Os donos cansados também correm para elas mal as reconhecem.

 

Ligo o motor e vejo o pânico. O corpo tenta contorcer‑se, mas o plástico não deixa. Os olhos arregalam‑se em lágrimas. As veias incham enquanto os pulmões mirram. Os lábios tremem enquanto sussurram gritos. O rosto mostra a mais bela cianose.

 

A multidão diminui, mas não vejo a minha mala.

 

E a morte vem, sem um último suspiro.

 

«Sr. Elias Moreira?», chamam‑me da retaguarda.

 

Entre os seis e os dez anos. É o tamanho ideal.

 

Diz a expressão que à terceira é de vez. Comigo, foi à oitava.

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

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