Encarnado
de Pedro Lucas Martins
Foi ele que me obrigou a pintar a casa de encarnado.
O quarto, primeiro.
Não gostei.
Não me parecia natural.
Agora, ao fim do dia, com a luz ainda acesa, deito-me a olhar para as paredes. A interiorizar. A assimilar aquele vermelho. Sinto então a calma que dele emana, a calma que me preenche. Começo a perceber a harmonia que uma nova cor pode gerar.
Viro-me e toco ao de leve no corpo deitado do meu marido. Não se move. Não ressona. Também ele parece em paz.
Há algo de diferente, percebo. Visualizo a transformação. Manifesto-a. Deixo-a mudar-me ainda mais.
É só uma cor. Mas não é só. É um tom que abriga, que abraça, um laço que aperta dentro de mim. Sinto-me vista e protegida nesta casa que é subitamente mais pequena; quente e acolhedora, como eu sempre a imaginei. Foi uma boa ideia, afinal. Já não estou arrependida.
O encarnado marca a passagem, é uma porta a destrancar. Deixo-me entrar neste novo espaço e afundo-me numa nesga entre mundos, um vazio — sozinha, mas acompanhada. Não me consigo explicar melhor.
Inspiro e passo uma palma húmida e avermelhada pela cara. Tenho sono. Quero entregar-me por completo àquele vazio, dar-lhe a mão para que me guie. É isso. Fecho os olhos. O vermelho nas paredes também se vê de olhos fechados.
Amanhã, quando acordar, pinto o quarto do bebé.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Pedro Lucas Martins
Pedro Lucas Martins nasceu em 1983, em Lisboa. Desde aí, não se lembra de uma altura em que não gostasse de terror.
Com estes gostos, preocupou toda a gente à sua volta. Naturalmente, insistiu e venceu-os pelo cansaço.
Agora, entre outras coisas, escreve e edita ficção de terror, tendo sido esta reconhecida com o Prémio António de Macedo (2018) e com o Grande Prémio Adamastor da Literatura Fantástica Portuguesa (2020). Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editor literário.







