Estou Aqui

de André Costa Gonçalves

 

Eu vejo-te.

Consigo ver a tua alma, podre e decrépita, por entre as fendas da tua fachada sorridente de carne. Sei os teus pensamentos. Não. Não esses. Os obscuros, os que te surpreendem. Os que emergem do lodo, na escuridão. Os que te assombram no afogamento inescapável da existência, na solidão desesperante, nas lágrimas ácidas e corrosivas do ódio, a depressão que acompanha a futilidade do ser. 

Eu estou contigo.

Sou a mão que afoga o bebé, o dedo que puxa o gatilho, a língua que corrompe com palavras. O pé que acelera o carro que atropela. Sou intrusão nefasta, veneno cerebral, tumor expansivo de angústia. Medo, ignorância e preconceito tornado acção. O abandono da humanidade.

Não me negues.

Recebes-me de livre vontade nessa ausência de coração. Nasço e renasço e permaneço, desponto dessa alma fétida que transportas dentro de ti, dentro dessa carcaça polida que me esconde atrás de um sorriso. Precisas de mim, queres que remova os obstáculos, anule a moralidade, tome as horríveis decisões por ti.

Estou em todos e em todo o lado.

Onde o punho de um filho fere a face de um pai, eu estou lá. Onde alguém queima outro com um cigarro, eu plantei-lhe a ideia na cabeça. Onde há uma explosão, eu acendi o fósforo. Onde uma lâmina fende pele e músculo, observo e aplaudo. Onde alguém estende a mão em súplica antes de expirar, eu sorrio.

Estou aqui. 

Atrás de ti, leitor. A minha mão estende os seus dedos negros, prestes a tocar-te no ombro. Eu vejo-te. Cheiro o desdém e a raiva em ti. Vais deixar-me entrar? 

Não me negues. Eu estou contigo. Estou em todos e em todo o lado.

Estou aqui.

Deixa-me entrar.

 

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

André Costa Gonçalves

André Gonçalves nasceu no Porto e cursou História e Português na Universidade do Minho.
É, entre outras coisas, autor de ficção, movendo-se dentro dos géneros romance, mistério, crime, thriller e policial. Porém, há sempre algumas ideias intrusivas que não encaixam nestes géneros, mas que pedem palco.
Na Fábrica do Terror, encontrou o espaço para lhes dar (ou tirar) vida e para verter criatividade desconcertante nas palavras.
O autor agradece o vosso tempo.

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