Obrigada a Mim!

de Susana Menezes Forte

 

No contexto visceral da palavra, observo os sorrisos do público. Ouço a apresentação ligeiramente apressada, ansiosa por sair da boca do locutor.

Termino o meu cigarro enquanto o ouço falar, dando explicações solenes sobre a vencedora do prémio dourado pousado no pequeno púlpito ao centro do palco. 

«…uma artista irreverente, com uma visão sem filtros e um talento cru…»

Ouço as palavras como quem ouve música em surdina. Já as escrevi mil vezes no diário de dissecação que guardo na cave.

Aplausos.

Dou a última passa no cigarro, esborrachando depois a beata no chão junto à cortina, retorcida contra a coluna que sustenta o teto do teatro. 

É agora.

Entro no palco com passos seguros. Visto preto. Sempre preto. Disfarça as manchas.

O público levanta-se, encantado com a artista que «vive no limite». O apresentador deixa o palco.

O troféu está ali, à espera da mão que o merece. Mas não lhe pego ainda. Primeiro, falo.

— Obrigada. Obrigada a todos…

Pausa. O silêncio pousa.

— Mas hoje, com toda a humildade do mundo e com enorme orgulho…
Inclino a cabeça. Olho-os um por um.

— … obrigada a mim. Por ser louca. Por continuar a acreditar.

Os aplausos ultrapassam a capacidade dos meus tímpanos. 

Sorrio atrevidamente com um esgar de boca à direita, enquanto uma ligeira inclinação de cabeça o acompanha. Sinto os olhos ensanguinharem enquanto se enegrecem. Sinto espasmos de prazer.

— Obrigada a mim por acreditar que Portugal é o sítio certo para fazer acontecer. Por saber que temos os melhores profissionais. Por acreditar no sonho. E acreditar nesta profissão. 

Olho para o produtor na primeira fila. Pena que ele não saiba onde estão os ossos da assistente. Ainda.

— E obrigada a mim por me atrever a usar o que os outros chamam de «lixo humano».

Agora, pego no troféu. A base é o molde de um maxilar inferior, cravado em resina negra. O dentista demorou a colaborar. Mas colaborou. No fim, todos colaboram.

— Porque a arte vive da verdade. E a verdade…

Levanto o troféu à altura dos olhos.

— …mora na carne!

O público explode em palmas. Nenhum deles entende. Ou talvez não queiram entender.

Saio do palco. Já com ideias para a próxima instalação.

Talvez uma performance interativa.

Talvez com alguém da assistência.


SOBRE A AUTORA

Susana Menezes Forte

Susana Menezes Forte nasceu em Portugal em 1970 e cresceu na Grécia. É viajante de alma inquieta, contadora de histórias viscerais, e uma apaixonada por vidas reais e emoções à flor da pele. Depois de explorar o romance, o drama e a sensualidade, estreia-se agora no terror — género onde descobriu uma nova forma de dar corpo às sombras. Não tem medo do escuro. Escreve a partir dele.

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