Oração

de Ricardo Alfaia

 

Olho, num balancear monótono e nauseado, para um mar infinito e pergunto-me onde está esse Deus Todo-poderoso. Esse ou outro. Tantos deuses para louvar e nenhum acode. 

Aparentemente, não chegaram as guerras feitas em seus nomes, e os muitos que morreram não satisfizeram a fome do crer. Como explicar o desinteresse dos divinos por nós, criaturas do pó e da terra? Terá sido, porventura, insuficiente o tributo, o tormento e a desgraça? 

Representantes autointitulados dos céus interpretaram pergaminhos — por outros lidos, por outros escritos, por outros ouvidos — e instruíram as leis deduzidas. 

Que digo eu? As leis infalíveis! Veríssimas! Indubitáveis! 

E foi com toda a justiça, disseram eles, que reclamaram a completa e bruta existência do nosso ser. 

Queremos as vossas mãos, pés e braços. Queremos os vossos corações e ventres. Vomitai filhos à lama, que também eles nos pertencem. Necessários são para lutar pela nossas crenças e para levantar monumentos celestiais em terra. 

Para eles, tijolo a tijolo, construímos casas de oração. A eles pagámos, para que fossem erguidas, com a nossa magra jorna, com o suor, sangue e existência de gerações famintas de esperança.

Tantos lá ficaram, entre argila e pedra.

Por eles, matámos, bala a bala, princípios de outrem. Por eles, combatemos os pensamentos dos nossos irmãos, que deixámos em cidades demolidas. 

Tantos lá ficaram, entre ruínas e dor. 

Em troca, todavia, fomos bem presenteados, disseram eles. As autoridades religiosas ofereceram-nos a certeza do Paraíso — se não é de ficar grato! 

Mas só mais tarde, de corpo frio. Porque Paraíso em vida não é para todos, e não somos nós, povo inculto, pobre e malcheiroso, a ter direito a tal benefício. 

Sabemos o que o profeta apregoou — igualdade e amor, fé e compaixão, liberdade aos homens na Terra —, mas ninguém da nossa casta tirará o lugar, tão merecido e destinado, à prestigiada elite humana, de certeza tão bons servidores dos céus. Aqueles que nem necessitam de rezar, abençoados logo à nascença. 

Não tenham receio, quando nos encontrarmos será para vos servir. 

O vosso estrume será o nosso leito e agradeceremos vassouras, baldes e água. Se antes não a tínhamos para beber, em excesso a teremos para limpar. 

Limparemos como vivemos, cabisbaixos, humilhados, abatidos. Agradeceremos as vossas esmolas e talvez, um dia, os nossos frutos, integrando-se numa metamorfose social milagrosa, partilhem um mundo de deuses mais bondosos.

«Oremos!», digo eu. «Oremos todos!» 

Todos não, uma mulher e a sua criança já faleceram. As forças faltaram-lhes há muito. Foram os primeiros a despedirem-se. Um adeus sem falar, revelado apenas por olhos vazios. Mais seguirão, em silêncio submerso.

Neste molho de gente acanhada, ninguém se atreve a tocar-lhes, não vá a má sorte pegar-se (já chega ser herdada). Agora, ombro a ombro, há mortos, vivos e semivivos. 

 

«Rezemos pelas almas deles e pelas nossas. 

Rezemos por braços abertos à nossa chegada. 

Rezemos aos deuses que aqui nos trouxeram 

e rezemos por este pequeno barco, 

de borracha porosa, 

sobre este mar infinito.»


SOBRE O AUTOR

Ricardo Alfaia

1969 (Maternidade Alfredo da Costa, Lisboa) > Évora > Lisboa > Évora > Nuremberga > Ingolstadt > Weichering > Santa Cruz.

Empregado de mesa > cozinheiro > condutor > barman > casamento > assistente de fotografia publicitária > filho > fotógrafo > gerente de restauração > designer gráfico > filho > filha > web designer > autor > cofundador da Fábrica do Terror.

 

«O Homem planeia, e Deus ri.»

Gostas de ler? Aqui, encontras os melhores contos de terror! 

Livro de colorir – «Acorda os Monstros com as Tuas Cores»

COMPRAR

O preço original era: 10.00 €.O preço atual é: 5.00 €. (com IVA)

«Os Melhores Contos da Fábrica do Terror – Vol. 1»

COMPRAR

16.50  (com IVA)

Privacy Preference Center