Crítica a «Rua Bruxedo» (2022)

Antologia de ficção especulativa editada pela Imaginauta

Rua Bruxedo (2022) é uma antologia de oito contos com o propósito de servir de montra à ficção especulativa «à portuguesa». Conta com histórias de João Rogaciano, Liliana Duarte Pereira, Maria Alice de la Fuente, Patrícia Lírio, Pedro Lucas Martins, Pedro Santos, Simão Cortês e Susana Geadas.

Patrícia Sá

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Com esta antologia, a Imaginauta procurou contrariar o preconceito de que a ficção especulativa em Portugal não existe, ou que é apenas uma imitação de outras culturas, ou que carece de leitores e editoras que publiquem os poucos autores que se aventuram pelos géneros da fantasia, da ficção científica, do estranho ou do terror.

Foi assim, diz-nos Inês Montenegro no prefácio, «que surgiu a ideia de uma antologia de ficção especulativa “à portuguesa”: contos desenvolvidos a partir da cultura, das lendas, dos monumentos, da geografia, até comportamentos, percepcionados como portugueses». Frisa a editora que esta antologia não deve existir isolada, mas antes servir de incentivo para mais obras deste género; no fundo, para que os autores de ficção especulativa se revelem e preencham este aparente vazio literário em Portugal.

A antologia inicia com o conto «O Emissário», de João Rogaciano. É uma história acerca de pactos com deusas e musas e, sobretudo, acerca do amor à música. Descubram como a vida de um médico psiquiatra é virada do avesso quando se lhe depara o emissário da musa Euterpe, Victor Silva, cuja missão é garantir que a música é escutada em todos os coretos do país.

«Fertilidade», de Liliana Duarte Pereira, recupera a lenda da Ponte de Misarela, à qual estão associadas duas lendas e, neste conto, uma terceira (mas essa deixo que o leitor descubra por si). A lenda que importa destacar, segundo a Dra. Alma Mendonça, é a seguinte: «as mulheres com um historial de abortos, e que queiram mesmo levar uma gravidez até ao fim, devem dirigir-se a essa ponte. Depois, devem aguardar que alguém a atravesse e que lhes baptize o bebé ainda no ventre […]. [A] lenda diz que, se o bebé vingar, deverá chamar-se Gervásio ou Senhorinha […]». Raquel e Filipe, os pais malfadados desta história, dirigem-se, então, a essa ponte num acesso de desespero. O leitor atraído por histórias medonhas quererá ler este conto até à última página.

«Sintra com Nevoeiro», de Maria Alice de la Fuente, é um conto que personifica a memória de uma velha senhora numa pequena menina, ela mesma, presumivelmente, uma memória de quem a velha senhora foi em tempos. Todo o conto é uma viagem ao passado, contada através de uma conversa dessa menina Memória, que tenta reavivar as lembranças da velha senhora. O misticismo e a magia associados a Sintra estão subtilmente representados neste conto.

«O Lamúrio», de Patrícia Lírio, leva o leitor a alto-mar, meio caro a Portugal. Além disso, retrata a vertente aterradora das sereias, não apenas como donzelas bonitas que seduzem os marinheiros, pois seduzem-nos com um propósito. Marina é uma personagem tenebrosa, estendendo a sua influência às personagens em redor e ao enredo, decidindo como termina o conto.

Ao virar a página para «Os Ossos que Esperam», de Pedro Lucas Martins, o leitor mergulha num universo extremamente rico, com uma história que o prende até à última palavra e uma escrita impactante. Estamos no auspicioso ano de 1732, em pleno domínio da Inquisição em Portugal. Um coveiro com a missão de conter uma doença demoníaca; inquisidores armados de fanatismo; uma vingança de um ser milenar. Este conto é uma viagem emocionante, com uma grande carga visual, relatando o verdadeiro motivo da construção da Capela dos Ossos, em Campo Maior. «Nós ossos q’aqui estamos pelos vossos esperamos» não é apenas uma metáfora; é um aviso. Deixo agora que descubram porquê.

Já «Lisboa Sumida», de Pedro Santos, presenteia o leitor com um tom irónico e uma história surreal. «Lisboa desapareceu!», gritam os jornalistas na televisão de uma tasca portuguesa. As personagens, quer sejam os clientes da tasca, quer os curiosos que vão espreitar uma Lisboa vazia, não parecem especialmente preocupados com um fenómeno tão inexplicável; esperam que tudo regresse à normalidade, e depressa, pois a vida tem de continuar. Como diz Macário, que «não era homem com gosto pela metafísica ou mistérios transcendentais», há que «focar-se na realidade que o obrigava a levantar-se todos os dias às seis e meia da manhã, para conduzir uma carrinha de entregas por um salário precário, contribuindo grandemente para o seu divórcio, duas hérnias discais e uma vida no geral sem sentido». O conto retrata comportamentos  que se podem considerar típicos do povo português, que não deixarão de deleitar o leitor apreciador de uma cómica crítica social.

«Três Segredos», de Simão Cortês, regressa ao tom sinistro que os contos anteriores apresentaram. Estruturado em três partes, intituladas de «Corpo», «Boca» e «Mente», o conto faz o leitor viajar entre dois tempos: a Revolução de Abril e as Invasões Francesas. Duas personagens comunicam ao longo de períodos distintos e distantes, acabando por partilhar um propósito. Deixo que o leitor construa o puzzle deste conto por si mesmo.

Por fim, «Missão de Salvamento», de Susana Geadas, encerra a antologia numa nota espirituosa. Uma tripulação de outra galáxia entra no corpo de uma mulher, Adelaide, para cumprir uma missão de salvamento. Com um enredo de ficção científica divertido, esta última paragem de Rua Bruxedo deixa o leitor satisfeito, após uma jornada de emoções que passam pelo medo, pelo espanto e pelo deleite.

A Imaginauta reuniu uma exemplar coletânea de vozes da ficção especulativa portuguesa. Com contos bem escritos e de temáticas diferentes, Rua Bruxedo é a lufada de ar fresco de que a escrita fantástica portuguesa necessitava. Corroboro as palavras de Inês Montenegro: «[Rua Bruxedo] é mais uma pedra na calçada […]. Venham as demais!»