«Crónicas do Vampiro Valentim»: No Porto, vivem vampiros que adoram arroz de cabidela

 

«Faz hoje dois anos que morri e sinto-me lindamente. Para quem está morto há algum tempo, evidentemente», conta o jovem Valentim na primeira página do diário, onde escreveu com letras gordas: «Crónicas do Vampiro Valentim».

Não pense o leitor, ao ler estas palavras, que está perante mais um daqueles textos, narrados na primeira pessoa, ao estilo de O Diário de um Vampiro Banana. Este vampiro adolescente pode até sofrer de amor e ter de se adaptar a uma nova realidade, mas enfrentará problemas muito mais complexos quando, em direção à Terra, se dirige um cometa igual ao que matou os dinossauros, a maldição da Estrela Morta

E embora toda a família morra logo nas primeiras páginas, quando o carro se despenha num barranco, também não vamos entrar numa daquelas histórias dramáticas de fazer chorar as pedras da calçada.

Nesta série de 13 livros, com o Porto como cenário, o autor Álvaro Magalhães apresenta-nos uma tragicomédia, equilibrada com discurso rimado, canções e o suporte visual dinâmico das ilustrações de Carlos J. Campos.

Três dos 13 livros que compõem a série Crónicas do Vampiro Valentim (Edições ASA).

Percebemos, desde cedo, que a família Perestrelo (o Valentim, a irmã Dentinho, a Mãe, o Pai e o Avô) não sobreviveu ao acidente que a vitimou, mas não foram desta para melhor. Todos ficaram numa espécie de limbo que o autor nos passa a explicar.

A luz do Sol incomoda-os, mas, ao contrário do que sabemos sobre vampiros, estes até conseguem sair à rua de dia, embora só em dias nublados ou com um protetor solar especial. Não tendo presas e não bebendo sangue, torna-se difícil alimentarem-se. Nada que um bom chouriço de sangue, ou um arroz de cabidela, ou até mesmo um bifinho mal passado não resolvam, à boa moda portuguesa.

O autor designa-os como «vampiros nem por isso», porque não estão vivos nem mortos. São uma nova espécie, condenada a passar a eternidade num mundo onde esta não tem lugar, excluída da sociedade, com problemas mundanos com os quais o leitor facilmente se identifica: a falta de segurança, a dificuldade de integração e a busca pela felicidade.

Como já vai sendo apanágio de todas as histórias deste género, esta família também é perseguida (até em sonhos) por um caçador de vampiros, mas o nosso vilão não tem a mesma sabedoria e astúcia de um Van Helsing.

O desajeitado professor Adolfo Mil-Homens fala com o retrato do paizinho e acredita que o ponto fraco dos vampiros é «a doença do amor». O seu objetivo de vida é «caçar, caçar, caçar» e alcançar a glória, mas cada vez que diz «glória» acontece uma desgraça: ou cai num buraco ou aparece a Glória, a vizinha de baixo, que tem por ele uma paixão assolapada.

O mesmo acontece com a palavra «felicidade», que, quando dita, evoca a vizinha de cima com o mesmo nome. Tanto uma como a outra acham o professor um «pedaço de homem» e obrigam-no a estar sempre em fuga para não ser apanhado nas «garras do amor».

Esta personagem, como qualquer caçador de vampiros que se preze, conta com um ajudante. Nesta história em que as palavras terminadas em «al» são coisas que correm mal e as que terminam em «em» são coisas que acabam bem, o assustadiço Aníbal Medronho é o seu braço-direito. O fiel ajudante, quando não está a cantar com erros ortográficos, auxilia o professor nas caçadas e a esquivar-se da Glória e da Felicidade.

Os protagonistas das Crónicas do Vampiro Valentim: Os Perestrelos, o caçador de vampiros Adolfo Mil-Homens e o seu ajudante, Aníbal Medronho.

Depois de o leitor já estar familiarizado com este enredo de personagens bem construídas, chega à casa desta família uma encomenda misteriosa, uma caixa de música, que prontamente mudará o rumo da história. Afinal, há mais «vampiros nem por isso» como eles no Mundo de Lá. «Mundo de Lá, Mundo de Lá. Há outro mundo, ó lá se há.»

Passamos a acompanhar os Perestrelos nesta busca, em que teremos inúmeras peripécias com livros que se leem de olhos fechados, cães psíquicos, gatos-vampiro, homens-rato, «chouriscos» (chouriços que fazem de isco) e até hipopótamos-vampiro no Douro.

As Crónicas do Vampiro Valentim, das Edições ASA, são uma coleção infantojuvenil a não perder, imaginativa e divertida, claramente merecedora da tradução para outras línguas.

 

Fotografias: Marta Nazaré