O Homem planeia, e Deus ri

Entrevista a Ricardo Alfaia

 

A biografia do Ricardo Alfaia, no livro Sangue Novo: Uma Antologia, parece reduzir-se a uma «simples» lista de acontecimentos pessoais e profissionais na vida do designer gráfico responsável pela capa, composição e paginação da obra editada e organizada por Pedro Lucas Martins.

Mas a entrevista que se segue desvenda um criativo multidisciplinar, que trabalha como designer e fotógrafo, e que, em 2021, vestiu pela primeira vez a pele de autor (de terror), estreando-se com o conto «Tarde de Verão», na antologia que reúne 15 novas vozes do terror literário em Portugal. Apesar de, durante algum tempo, achar que nem era fã do género.

Escolhi um dos seus lemas de vida para dar título a este artigo; as outras filosofias de vida (e de trabalho) sobre as quais fomos conversando não ficaram, contudo, de fora. Cabe tudo aqui: as várias carreiras profissionais, um certo feeling que se desenvolve a partir dos 50 anos, a vida entre Portugal e a Alemanha (onde vive há 35 anos) e a sua infinita vontade de continuar a aprender.

Como o diretor artístico e um dos três cofundadores da Fábrica do Terror, espera mudar a imagem gráfica associada ao género, tantas vezes estereotipada e que contribuiu para o preconceito de que o terror não é para ser levado a sério.

 

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Passou por várias experiências profissionais desde que chegou à Alemanha. Porque é que opta por ficar pelo design?

Eu queria aprender qualquer coisa, mas nunca quis ser fotógrafo. Trabalhei em fotografia, mas acabei por sair porque o meu chefe [na altura] não queria pagar mais. [Lembro-me de que] trabalhava dia e noite e, como já era pai, precisava [que] me pagassem melhor. Voltei a trabalhar em gastronomia, mas trabalhava sempre à noite. Via o meu filho e a minha mulher à hora de almoço e quando chegava a casa, de madrugada. Foi um amigo meu que trabalhava numa editora em Munique que me falou numa nova profissão chamada media design, numa altura em que tudo estava a ficar computorizado e era necessário ter outras competências. Como ele sabia que eu tinha experiência na fotografia, achou que o curso de design era perfeito para mim. [Gosto do design] porque quero ser eu a inventar as coisas, quero ser eu a fazer a parte criativa. [Depois de passar por várias agências] onde não se ganha mal, mas a expectativa é a de que as pessoas sejam criativas e estejam disponíveis 24 horas por dia, tive um burnout aos 32 anos. Sentia-me completamente exausto. Mas, durante esse meio ano em que estive a recuperar, decidi que não queria voltar a trabalhar com agências e em 2003, inicio a minha carreira como freelancer e que dura até hoje.

 

Agências nunca mais?

Agências nunca mais. Aprendi muito e trabalhei tanto que, num ano, aprendi o mesmo que se aprende em três! Eu praticamente não vivi os primeiros cinco anos do meu filho mais velho Leon. Estava sempre com ele [nas datas importantes], mas era como se nunca saísse do trabalho. Comecei depois a trabalhar por conta própria e nunca deixei de aprender. Uma das coisas que nunca quis fazer [ao início] foi trabalhar em web design e hoje vivo disso. Aprendi depois o suficiente para fazer as coisas sozinho e continuei a aprender cada vez mais. Hoje em dia, quando preciso de alguma coisa que não sei fazer, falo com os meus parceiros e mando fazer. Mas é engraçado, porque eu nunca quis fazer a parte do desenvolvimento, queria só a parte do design.

 

Isso é uma grande forma da vida lhe trocar as voltas…

Já me aconteceu tanta vez, tanta vez. Por isso é que eu digo que «o Homem planeia, e Deus ri». E eu nem acredito em Deus, porque se acreditasse era pior!

 

O Ricardo diz «eu já tenho 52 anos». Porquê o «já tenho»?

Porque eu acho que é um marco importante. Primeiro que tudo, a partir dos 50 anos, ganha-se muito aquilo que eu costumo chamar o fuck you feeling. Um sentimento que sinceramente devíamos ganhar aos 30, mas que, pelo menos para mim, não foi possível. E depois, noto que aos 52 anos é que estou a chegar ao ponto que sempre quis, profissionalmente. Eu sempre quis aprender e tento aprender uma coisa nova todos os dias. Há um sonho antigo que eu não pude [concretizar] que era ir para a universidade.

 

Mas acha que tinha feito diferença?

Não, vendo bem, não faz diferença. Se eu tivesse ido para a universidade, se calhar não tinha esse desejo de aprender tanto como tenho agora. Não vale a pena estar a pensar «se fosse, era». Não, as coisas são como são. Tinha sido mais feliz assim ou assado? Não se sabe. É  impossível de se saber.

 

E o Ricardo Alfaia autor de terror? Como é que isto acontece?

Há um ano [em 2020], o meu português estava horrível. Estava tão mau que eu não conseguia ter uma conversa fluida, faltava-me o vocabulário. Leio e falo sempre em alemão, e tenho pouco contacto com portugueses. Durante a pandemia, procurei um curso de Português online e encontrei a Escrever Escrever. Fiz primeiro o curso de Gramática com o Pedro [Lucas Martins], depois fiz o segundo curso com ele, de Ortografia, e estava a correr tão bem e a gostar tanto que decidi fazer o de Escrita Criativa.

 

Mas o Ricardo pensa na escrita como ferramenta de trabalho ou como criatividade? Há um escritor dentro do Ricardo?

Há e sempre houve porque eu, com 15 anos, já escrevia os meus pequenos contos. Mas quando vim para a Alemanha, com 17 anos, deixei tudo o que tinha a ver com arte. Antes disso, andava no teatro, fiz parte de um programa de rádio. Mas deixei tudo isso porque as prioridades eram outras. Portanto, o escritor sempre esteve lá, só que nunca tinha tido a possibilidade de sair. Esses cursos e a Escrever Escrever mudaram a minha vida completamente. Eu não acredito que só passou um ano! Parece que passaram dez anos, já!

 

E depois da escrita criativa, vêm as oficinas Teias de Aranha?

Sim, primeiro a escrita criativa. Depois, fui mantendo o contacto com o Pedro, escrevendo e enviando-lhe alguns textos para ele corrigir. É por essa altura que lhe envio o meu conto «Tarde de Verão» [que faz parte do livro Sangue Novo: Uma Antologia] e o Pedro gostou imenso do texto. Mas ele interpretou o conto de uma forma diferente. Ele estava a perceber uma coisa e eu estava a querer dizer outra.

 

Eu acho fantástico que se tenha tornado num autor de terror por acidente!

Completamente por acidente! [Depois do curso de Escrita Criativa], disse ao Pedro que estava a chegar ao ponto em que precisava de feedback [sobre a minha escrita], para além das correções gramaticais. Sugeri-lhe uma parceria em que ele me dava feedback e eu oferecia-lhe os meus serviços de designer gráfico. É nessa altura que ele me fala do livro que estava a pensar organizar e eu ofereci-me para desenhar a capa. Foi assim que começou o nosso trabalho em conjunto, e sempre houve uma certa simpatia desde o início. Um dia, escrevi e enviei-lhe um texto de terror («A Amendoeira») e ele convidou-me a participar nas oficinas Teias de Aranha [para ex-alunos]. Isso obrigava-me a escrever, ao mesmo tempo que dava e recebia feedback. Mas eu insistia que não gostava de terror nem sabia escrever terror!

 

Eu lembro-me de ler «A Amendoeira» antes de saber que o Ricardo não gostava de terror e tive dificuldades em acreditar nisso! O que eu pensei é que o Ricardo, se calhar, não gostava de determinado tipo de terror.

Eu pertencia àquelas pessoas que têm preconceitos com o género do terror, mas afinal não tenho. Eu sempre gostei dos filmes do Hannibal, por exemplo, que têm terror. Nunca li Stephen King porque tive o preconceito de que não ia gostar, mas gosto [do filme] Carrie. E gosto dos filmes do John Carpenter, apesar de nunca os ver como terror. [Para mim], era cinema de autor, thriller, com um bocadinho de sangue. Por exemplo, não gosto dos filmes do género do Friday the 13th. Não aguento ver uma mulher a fugir de um assassino pelo meio da estrada, com luz por todo o lado e a gritar! Não se vai esconder? Vai meter-se ali num sítio onde toda a gente a vê? Eu não gosto desse tipo de terror. Também não gosto quando é sangrento demais. E depois, não gosto de me assustar só porque a música fica tão alta que eu me assusto. O melhor livro de terror que já li é o Ensaio Sobre a Cegueira, do José Saramago, porque ainda hoje sou perseguido por certas imagens que tive a ler esse livro. É horrível, é mesmo terror. Mas tinha muitos preconceitos [e agora] tenho problemas só com alguns tipos de terror. E outra coisa que o terror tem que eu espero mudar com a Fábrica do Terror é a imagem-padrão muito anos 80. [As capas dos livros de terror] são feitas só a pensar em pessoas que gostam do género e nem sequer estão a tentar chegar a outros leitores.

 

Pensa que o Sangue Novo vai ter esse efeito pedra no charco, de quebrar preconceitos?

Não sei se chegará a esse ponto. Acredito que haja pessoas que mudem um bocadinho o pensamento, o preconceito, porque o livro tem 15 histórias muito boas. Há histórias com elementos de terror e do fantástico, que jogam com o medo, com a perda, mas que eu não vejo como terror. E acho que devíamos chegar ao ponto de definir o que é um escritor de terror. Um escritor de terror é primeiro que tudo um escritor. Eu não quero que alguém pense que eu sou um escritor de terror, tal e qual como não quero que pensem que sou um poeta, ou um escritor de viagens. Eu quero escrever sobre tudo e quero poder escrever sobre tudo. Não devemos ser metidos logo em gavetas.

 

O Sangue Novo foi lançado a 27 de novembro de 2021, temos agora a Fábrica do Terror. O Ricardo vê-se na aventura de lançar um Sangue Novo volume 2, por exemplo?

Sim. Acho que seria interessante voltar a fazer um livro com autores não publicados. Gostava de ver isso a acontecer, lançar autores novos com frequência.

 

Acredita que basta criar a oportunidade e as pessoas aparecem?

As pessoas aparecem. O Pedro mostrou que é realmente possível publicar novos autores [neste género]. E eu acho que é disso que a literatura de terror e toda a literatura em Portugal está a precisar.