O Quebranto
É comum no seio das famílias portuguesas, sobretudo nos meios rurais, existir uma tia ou uma avó que conhece de olhos fechados mezinhas para aniquilar o chamado quebranto, mau-olhado ou espinhela caída.
Mas, afinal, que crença popular é esta? De forma curta e grossa, muitos são aqueles que acreditam que o olhar de determinadas pessoas contém propriedades pouco católicas que causam efeitos nefastos nos outros. Os sintomas mais comuns são dores de cabeça fortes, bocejos repetidos, mal-estar generalizado, cansaço excessivo e desgraças em catadupa. Há quem acredite que, se estes sintomas não forem devidamente tratados por quem os sabe tratar, podem mesmo causar a morte. Pode ler o retrato desse resultado extremo no conto Creio em Deus-Pai.
Esta proeza tão humana podia fechar-se na espécie, mas não — lesa também animais, plantas e bens materiais. Por isso é que o Pantufa morreu de repente, aquela suculenta de fácil trato secou de um dia para o outro e ninguém compra aquele terreno da avó, nem ao desbarato.
Felizmente, como somos um povo expedito, não nos faltam ideias para combater os males invisíveis que se entranham em nós através da energia. No grupo dos que acreditam, temos os chamados «proativos», que antecipam a chegada do mal e recorrem a todos os amuletos que existem no mercado: figa, moedas furadas, ferradura, pimenta, olho de proteção (também conhecido por olho grego ou olho turco), sagrada cruz de Caravaca, árvore da vida, mão de Fátima, cinco saimão (composto pela estrela de Davi, a meia-lua, a figa, a ferradura e o chifre), entre muitos outros. Antigamente, este último prendia-se com um alfinete à roupa dos recém-nascidos ou era colocado nos berços. A fazer uma lista, seria extensa.
Estamos sempre disponíveis para acrescentar mais um talismã à nossa bolsa de proteção. Verdade ou mentira?
Os prevenidos escondem também, em cada uma das divisões de casa, pequenos frascos de vidro com cerca de duas colheres de sopa de sal grosso e a mesma medida de água — procedimento que renovam sempre que a água evapora e o sal cristaliza.
São também estes que atiram sal grosso para trás do seu ombro esquerdo. Se optar por esta solução, certifique-se de que, pelo menos, não acerta em alguém.
Temos ainda os «proativos amantes da botânica», na casa dos quais não falta um vaso de arruda, comigo-ninguém-pode e espada de São Jorge. Os entendidos dizem que a arruda é uma planta que possui propriedades únicas no combate à inveja. Deve ser colocada do lado de fora da porta de entrada e do lado esquerdo de quem entra. No interior das casas, para enfeite e proteção disfarçada, usam a espada de São Jorge, que se diz ser forte no afugentamento de maus espíritos, e a comigo-ninguém-pode, que faz com que as más energias fujam a sete pés. Em parceria, estas duas plantas atuam na quebra de feitiços e magia.
Seguem-se os «proativos das pedras e dos cristais». Aceitando que posso deixar de fora muitas dicas importantes, vou fazer referência à pedra provavelmente mais conhecida, a turmalina negra, perita em repelir o mau-olhado e a inveja, assim como em captar e neutralizar as energias negativas.
Se a trouxer consigo, terá de ser da cintura para baixo e sempre do lado esquerdo.
Tem ainda opções como a cornalina, a ametista, o âmbar, o quartzo transparente, o olho de tigre, o jaspe vermelho, entre muitas outras.
Se for da equipa dos que curam tudo com incensos e defumação, deve saber que, de três em três dias, pode buscar auxílio na cânfora, sálvia, mirra ou citronela (aposto que pensava que só afastava insetos, não é?).
Aqueles que acreditam, mas que não têm vagar para antecipar o mal, socorrem-se dos chamados banhos energéticos. Duas ou três vezes por semana, preparam duas bacias de água tépida, numa delas juntam sete colheres de sal grosso e na outra folhas secas de arruda ou de alecrim. Do pescoço para baixo, despejam primeiro a bacia com a água e o sal grosso, para retirar as energias negativas, e depois a bacia com a água e ervas secas para repor o equilíbrio. Deixam secar o corpo ao natural, sem o limpar.
Por fim, temos as pessoas que não acreditam e que só em desespero de causa procuram ajuda não científica. Outros mantêm-se resistentes e acaba por ser um familiar que trata disso à revelia. Uma das técnicas mais usuais é colocar azeite numa taça, e água num prato. De seguida, benzer com o sinal da cruz o prato com água, enquanto se diz em voz alta o nome completo da pessoa a quem queremos acudir.
Continua a fazer-se o sinal da cruz, orando em simultâneo: «Deus te viu, Deus te criou; Deus te livre de quem para ti com mal olhou; em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Virgem do pranto, quebrai este quebranto».
Logo depois, coloca-se o dedo indicador no azeite e deixa-se cair cinco gotas na água. Se o azeite desaparecer, significa que a pessoa está com o quebranto. Se assim for, deita-se fora essa água e repete-se todo o processo até que o azeite não se misture com a água. Esta técnica tem de ser feita em número ímpar e num máximo de nove vezes. De referir que qualquer pessoa pode realizar este procedimento, desde que se destine a outros e nunca a si mesma.
Se tiver interesse nesta temática, poderá consultar o capítulo II da Obra Etnográfica de Adolfo Coelho, «Tradições Populares», que tem disponível um ponto dedicado ao Quebranto.
Se quiser colocar em prática alguma destas medidas, só experimentando saberá se resultam ou não, mas de uma coisa estou certa — mal não fará.
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Liliana Duarte Pereira
Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.
Integrou as antologias «Sangue Novo» (2021), «Rua Bruxedo» (2022) e «Sangue» (2022). Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia «Sangue Novo».