Entrevista à equipa de «Santanário»

Realizado por João Pedro Frazão, com Ana Lopes e Dinarte Freitas.

«Passamos o filme a levar murros na boca e a sermos surpreendidos. E foi essa a intenção do filme: como é que eu vou contar uma história de onde as pessoas saem cansadas?»

Avatar photo
Sandra Henriques

Santanário é um filme curto, com várias leituras possíveis, muito desconforto e algum sangue. E, sendo realizado por João Pedro Frazão, seria estranho se não fosse um filme de época. Conversámos com o realizador; Nuno Cruz, responsável pela música; e com os dois protagonistas, Ana Lopes e Dinarte Freitas, no dia da estreia do filme no 18.º MOTELX. 

***

Vou começar por ti. Como realizador, é a segunda vez que tens um filme em competição no MOTELX. Primeiro, Canção de Embalar, em 2019, e agora, Santanário. E é novamente um filme de época. 

João Pedro Frazão: Sinto-me muito mais à vontade a fazer filmes de época. O facto de ser terror é quase um acaso. A escrita leva-me para aí, não tenho um objetivo de escrever terror. 

Numa entrevista anterior, disseste-nos que, quando estás a escrever um guião, te limitas a passar para o papel as imagens que tens na cabeça e defines logo a arte, os planos, a luz. Como é que o Santanário te «apareceu»?

JPF: Começou com uma bengala a cair no chão e, ao início, escrevi o filme todo a passar-se no século XIX. No final, lembrei-me de que já tinha feito um filme dessa época [Canção de Embalar] e então alterei para século XVII. Da história original, a única coisa que tive de alterar foi um instrumento musical que a personagem principal toca. Em vez de um violino, passou a ser uma sanfona. E a bengala passou a ser uma Bíblia.

Mas a questão da religião, da opressão religiosa, manteve-se sempre? Isso foi sempre central na história?

JPF: Acaba por ser, sim. Aquela personagem vive atormentada, ou satisfeita, ou o que quer que seja. A religião, para muitos, é uma salvação. Mas acho que a religião, bem no fundo, e isso não tem nada a ver com as pessoas religiosas, mete medo. Além de ser altamente castradora e nos toldar as ideias, mete medo porque estás a ser altamente controlada, não tens um pensamento verdadeiramente livre, não tens vontades próprias. E depois, pode surgir aquilo que surgiu no caso do Santanário, há muitas histórias desse género, de abuso na igreja, de inverter o que está escrito na Bíblia. Para mim, era isso: o não deixarem as pessoas pensar por elas.

Disseste na apresentação do filme que o Santanário não era teu, era de oito pessoas.

JPF: Houve coisas que eu sabia o que queria, e outras que, depois, descobri com os atores e com os técnicos. Além de dar liberdade à equipa toda, dava indicações como a que dei ao Nuno Cruz: disse que queria o som do silêncio, e ele entendeu logo o que lhe estava a pedir.

E foi um pedido fácil, Nuno?

Nuno Cruz: Foi uma das melhores direções que eu já tive de um realizador. O silêncio absoluto não existe. Onde quer que exista um ser vivo, existe algum som. Consegues ouvir a tua própria voz, o teu ritmo cardíaco, o sangue, etc. A música tem de substituir aquilo que não existe, que são os diálogos, que faz a ponte entre a audiência e a história, e entre os personagens e os atores. Portanto, pedir-me o som do silêncio faz mais sentido do que parece. O realizador quer chocar, quer que as pessoas se sintam claustrofóbicas e fazer isso com música, à falta de um termo melhor, é divertido. [risos]

JPF: Apesar de toda a sonoridade do filme, da música, continuamos numa solidão. O personagem do Dinarte — que não tem nome porque não precisamos, porque ele é tudo e todos e não é ninguém — transmite também isso quando está a rezar em latim: aquele momento quando a personagem da Ana desperta e percebe algumas coisas ou não percebe.

Não apareceram espíritos quando falaram em latim? 

Dinarte Freitas: Quando o Frazão me apresentou o projeto, eu disse logo que não. [risos] Já tinha feito terror anteriormente, mas sou muito supersticioso, e há uma coisa que eu nunca farei nos filmes, que é invocar. Tenho terror absoluto de invocação, porque acredito mesmo nessas energias. Ele teve de me convencer que eu não estava a invocar nada, e que aquela reza em latim era realmente um exorcismo, não era outra coisa qualquer. 

Foi aí que aceitaste o papel?

DF: Quando percebi que as minhas falas eram todas em latim, disse outra vez que não uma semana antes de começarmos o filme. [risos] 

Como é que ele te convenceu então?

DF: Disse que eu era capaz. [risos]


No outro papel, está a atriz Ana Lopes. Este foi o teu primeiro filme de terror?

Ana Lopes: Já fiz alguns nos Estados Unidos, mas este é o mais bonito que já fiz em termos estéticos. Mesmo sem ser de terror, acho que é o filme que já fiz com melhor aspeto.

Não há praticamente diálogos entre vocês neste filme, que vive muito do ambiente e da vossa expressividade. 

AL: Não, só quando o Dinarte me chama súcubo.  

E será que aquela mulher é, de facto, um súcubo?

JPF: Acho que deixei tudo em aberto. Se ela é um demónio, a mãe dele, a irmã, a filha, uma freira, não me interessa e acho que não interessa para aquele momento. Obviamente que, se estivéssemos a fazer uma longa, tínhamos de desenvolver a história, mas aqui não interessa. Passamos o filme a levar murros na boca e a sermos surpreendidos. E foi essa a intenção do filme: como é que eu vou contar uma história de onde as pessoas saem cansadas? 

A grande cumplicidade e confiança entre vocês os dois foi um elemento essencial do filme. Mas esta foi a primeira vez que trabalharam juntos?

AL: Já tínhamos trabalhado juntos, mas a contracenar foi a primeira vez. Há algum tempo que havia esta vontade de trabalharmos juntos.

DF: Além de nos conhecermos há muito tempo, a Ana tem uma sensibilidade muito grande como atriz. E é alguém que, como eu, esteve nos Estados Unidos durante muitos anos, somos os dois ilhéus, temos as mesmas sensibilidades artísticas, passámos por várias situações semelhantes que nos informam como indivíduos. E há um respeito, uma amizade e uma confiança muito grandes. Porque aquilo que o João se propôs fazer era realmente violento. Não tanto fisicamente, acho, mais psicologicamente, e a Ana é uma pessoa que se entrega totalmente, não existe reservas.

Não há meio-termo.

AL: Não, e eu gosto que não haja. Sou muito 8 ou 80. Para mim, a confiança é essencial e, nesse sentido, foi o Dinarte que me sugeriu ao Frazão.
JPF: Disse ao Dinarte que queria fazer este filme com ele e perguntei-lhe se ele conhecia uma atriz com quem se sentia perfeitamente à vontade. E, de forma automática, ele respondeu «conheço a Ana».
AL: Nós já tínhamos essa ligação. E admiro imenso o trabalho do Dinarte.
JPF: Há muitas situações que realmente foram construídas pelos dois.

Também porque lhes dás essa liberdade.

JPF: Sim, e quando percebo que [da forma como eles sugerem] vai funcionar, não vou interferir. Desde que não contem uma história diferente daquela que quero contar.
DF: Mas seguimos à risca aquilo que estava escrito. Houve este espaço de liberdade emocional, de sugestão, de confiança e de conforto, mas aquilo que foi escrito foi aquilo que nós fizemos. E claro que, depois da música do Nuno Cruz, temos de falar da caraterização genial [criada pela] Cidália Espadinha, da edição da Dânia Viana.
JPF: Filmámos em dois dias, éramos oito, e aquilo tinha de funcionar muito bem. Acho que funciona melhor com pouca gente.
DF: E há outro ponto importante que temos de tocar. O nosso realizador não faria este filme se não o fizesse na Quinta da Ribafria. Sentimos que ele, noutra vida, viveu lá, aquilo pertenceu-lhe e, segundo o que sei, o filme foi escrito de propósito para aquele local, para aquela sala. E foram precisos muitos meses até conseguir a aprovação para filmar lá.
JPF: Seria um filme completamente diferente se tivesse sido filmado noutro sítio. Aí, temos de agradecer à Fundação CulturSintra, que fez com que isto fosse possível.

Voltarias a fazer terror, Ana?

AL: Sim, também porque há vários tipos de terror, e este terror, claro que é muito físico, mas é mais psicológico. Tudo o que vai na mente dele e da minha personagem, que é mais enigmático, mas que eu sei porque fiz a minha escolha…

Qual foi a tua escolha? 

AL: Não posso contar. [risos] Mas eles sabem. Gosto muito deste terror psicológico. Porque isso é real, a realidade tem muitos horrores, nós temos muita coisa má na nossa cabeça, temos é de ser racionais para não descarrilar. São realidades a explorar e acho que, nesse sentido, os filmes de terror podem ser super interessantes, e há muitas carreiras que são lançadas nesse cinema de nicho. Se tivesse essa oportunidade e se fosse uma equipa talentosa como esta, faria mais filmes de terror. Não seria qualquer filme de terror, contudo.

E o que esteve na base da tua decisão para a personagem?

AL:  Está relacionado com a forma como eu abraço as minhas personagens todas, no sentido de compreendê-las. E essa compreensão vai muito na base dos meus valores pessoais. Depois, se há alguma coisa que a personagem está a fazer que vai contra isso, é porque alguma coisa se passou para levá-la até ali. Defendo sempre as minhas personagens com unhas e dentes, por isso nunca chamaria à minha personagem demoníaca. [risos]
JPF: Os atores têm as suas leituras sobre os personagens, mas, ao mesmo tempo, deixam tudo em aberto. Será que este homem é uma pessoa bondosa, que quer ser santo e faz aquilo que lhe ensinaram? 

Do que é que abdicaram em nome do produto final? Ou o que é que negociaram?

JPF: Nunca disse um «ação» sem que todas as pessoas da equipa dissessem que está bem — se o Dinarte e a Ana estão confortáveis, com os inputs da Dânia, que estava como assistente de realização, da Cidália, na caraterização. Se alguém diz «eu acho que», então vamos ouvir o que as pessoas têm para dizer.
AL: Mas ele está aberto a ouvir toda a gente porque houve uma coisa que negociámos. Originalmente, a minha personagem ia estar nua o tempo todo. Mesmo sabendo que estaria protegida pelos planos no filme final, no set, sabia que não ia estar tão à vontade. E eu gosto de me entregar, não gosto de estar a pensar nas pessoas à minha volta.
JPF: Originalmente, a personagem estaria nua para ser ainda mais rebaixada. Eu não conhecia bem a Ana, mas não queria que ela não se sentisse à vontade com estar no set despida, porque o desempenho dela não vai ser a 100%. Eu prefiro o desempenho dela do que um pormenor que, se calhar, não contribuía para a história.
DF: Eu também fiz um nu.

E isso, para ti, foi relativamente tranquilo? Que preparação fazes?

DF: Eu entro muito no personagem, e o meu processo é: eu posso estar no set, e parece que o Dinarte está ali, mas não é o Dinarte, é outra pessoa. É um automatismo. Aquilo não é uma coisa pensada, é um switch qualquer que não consigo desligar. Obviamente que não quero estar exposto de forma gratuita no set, isso também não. Há uma cena em que estou nu a autoflagelar-me, mas estava protegido pela luz, pela forma como a câmara está colocada. Naquele momento, eu sabia que tinha de fazer aquele trabalho, mas compreendo perfeitamente aquilo que a Ana diz.
AL: Acho que também se prende com as fases da vida em que estás. Na altura em que filmamos, estava numa fase em que não estava propriamente muito à vontade comigo própria, digamos assim.
DF: Acho que a preocupação máxima foi a nível de segurança, e isso foi essencial no trabalho que fizemos, para não nos magoarmos, quando a arrasto pelo cabelo e a seguro pelo cabelo, arrasto-a por um braço. Essa cena foi coreografada entre os dois.

Tenho fontes muito fiáveis que me disseram que o teu próximo projeto é uma longa?

JPF: Estou a trabalhar numa longa, escrita por uma americana, Alice Evermore, com quem fiz vários filmes como diretor de arte. Queria muito fazer um filme de época, perguntei-lhe se ela tinha ideias e, passados uns dias, mandou-me um guião completo.
O Nuno já começou a fazer a música na cabeça, não é?
NC: É automático. [risos] 

JPF: A seguir, foi pensar no elenco, que será o Dinarte e a Ana. Vai ser uma longa de época, passada no século XVIII, cheia de história portuguesa.

Mas é de terror?

NC: [Podemos dizer] que contempla vários géneros.
JPF: Faz o género da equipa do Santanário. [risos]
NC: Olha, é um filme João Pedro Frazão. [risos]
JPF: A Alice escreveu a história já a pensar em vários sítios que conhece, como a Ribafria. E já sei que há cenas em que é o Dinarte, há cenas em que é a Ana.

Em que fase da pré-produção estás?

Os adereços e o guarda-roupa estão quase feitos. Falta fazer a tradução de um texto em umbundu. Gostava muito de começar a filmar na primavera de 2025, abril ou maio. 

E, fora esta longa, quais são os vossos próximos projetos, Ana, Dinarte e Nuno? Que possam revelar, claro. 

AL: Participo na segunda temporada da série Rabo de Peixe, e o filme First Date, uma comédia romântica escrita e realizada pelo Luís Filipe Borges, onde contraceno com o Cristóvão Campos, vai estrear em janeiro [de 2025], no Pico.
DF: O filme Ubu, do Paulo Abreu e produzido por Uma Pedra no Sapato, estreou nos cinemas em setembro. A 31 de outubro, há a estreia nacional de Vive e Deixa Andar, de Miguel Cadilhe. E continuo entre os Estados Unidos e a Madeira.
NC: Continuo a fazer trabalhos para a televisão americana, principalmente para o Discovery Channel e outras coisas que ainda não posso contar, porque ainda não estão fechadas.