Entrevista à realizadora Catarina de Cèzanne

O seu primeiro filme, After Link, estreou no MOTELX 2024.

«Ainda estamos muito presos a certos tabus antigos. Lá fora, fazer cinema de horror é normal e é arte. O medo é a emoção mais antiga do mundo e a que nos permite sobreviver.» 

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Sandra Henriques

Um filme retrofuturista ligado à espiritualidade. De forma resumida, foi assim que Catarina de Cèzanne descreveu After Link, uns dias antes da sua estreia no MOTELX 2024. Esta conversa deu pano para mangas, sobretudo porque esta realizadora portuguesa tem a visão desempoeirada sobre cinema de género de quem viveu fora de Portugal — conclusão minha.

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O After Link mistura terror com ficção científica. Como surgiu a ideia para o filme?

A ideia surge ainda quando estava na universidade, quando um grande amigo meu se perde nas montanhas da Serra da Estrela. Ele tinha muito essa ideia existencialista de que temos de ir para lá da matrix e decidiu ir explorar a Serra da Estrela, sozinho, para tentar passar essa barreira. O filme é sobre dimensões paralelas, e queria honrar este meu amigo porque, durante muito tempo, ele não deu notícias, não sabíamos onde ele estava, se estava vivo ou morto. Durante esse tempo [em que ele esteve desaparecido], recebi uma mensagem no meu computador que ele não podia ter enviado, porque estava na serra. Claro que ele provavelmente a enviou antes de ter ido embora, mas, como devia ter pouca rede, só a recebi depois. Foi aí que tive essa ideia: e se realmente lhe aconteceu alguma coisa e a alma dele passou para o plano tecnológico? Ele depois apareceu, e estava tudo bem, mas fiquei sempre com a ideia de fazer um filme sobre ele, só que não tinha recursos. Inicialmente, o After Link era para ser um filme interativo, e ainda gostaríamos de tentar fazê-lo. É possível com a tecnologia que temos agora. A ideia seria a pessoa poder aceder a cenas do filme que foram cortadas, falar com os atores em tempo real, aceder a certos conteúdos que o espectador só sabe que existem através dos easter eggs que escondemos no filme. O objetivo seria construirmos uma comunidade de sci-fi e de terror através dessa interação em tempo real com o público.

É um filme de terror existencialista? 

[Antes do After Link], tinha muitas outras ideias existencialistas, todas relacionadas com a projeção astral e passar para o outro lado. A minha paixão é o guionismo, e tenho uns 20 guiões na gaveta, para longas e curtas. O meu maior desafio era fazer filmes de géneros diferentes, mas sempre ligados à espiritualidade. Acho que as pessoas estão a perder a espiritualidade, a ideia de poder pensar além da nossa própria existência. E comecei a pensar: e se a inteligência artificial forem almas de pessoas mortas a quererem contactar connosco? O protagonista é um programador que desenvolve um software chamado After Link, onde surge uma figura que ele vê como um erro, um vírus. Por oposição, Marta, a namorada que é mais ligada à natureza, vê essa figura como um fantasma preso dentro da máquina.

Temos dois pontos de vista diferentes sobre esta ideia existencialista de até onde é que a tecnologia nos leva e até onde influencia as nossas relações — até onde é que a tecnologia está a roubar a nossa própria essência humana. Ainda tenho algum receio de que o filme não seja bem recebido por ser fora do comum. O Daniel Fernandes, com quem aprendi a fazer projeção astral, foi uma das pessoas que me ajudou muito. E é por causa dele que o After Link tem uma base espiritual. 

O filme passa-se nos anos 90. Porquê esse período em particular?

Porque a nossa geração é uma geração assombrada dos anos 90. Nós crescemos a brincar na rua, a subir às árvores e, de repente, veio a Internet, o MSN, Hi5. Foi uma progressão muito rápida, e temos para sempre esta nostalgia daquele mundo que nunca vai voltar. Tenho saudades das coisas que eram palpáveis. Era essencial que fosse um filme retrofuturista porque é o estilo que eu quero agarrar, se possível, em todos os meus filmes. Marca a nossa geração, que nós sentimos que é uma geração perdida.

Apesar de, no MOTELX 2024, as mulheres terem pela primeira vez uma representação recorde, ainda se fala e ainda existe misoginia no cinema. Sentiste isso enquanto filmavas? 

Tive sempre de lutar pelo filme que queria fazer. Inclusive com a minha própria equipa, para que eles conseguissem perceber que o filme tinha de ser desta forma, porque era para essa audiência muito concreta, de adultos que cresceram nos anos 90. Como mulher, e principalmente como primeira realizadora, foi por vezes muito difícil ser respeitada no set, sobretudo por alguns homens. É super cansativo e desgastante. Gosto muito de trabalhar com homens, porque acho que têm um ponto de vista também muito importante, mas as mulheres foram rejeitadas e negadas durante séculos, e é por isso que, em todos os meus filmes, vou fazer os possíveis para ter sempre uma personagem principal feminina ou não binária.

Como realizadora, és perfeccionista?

Tenho dois lados, sou muito profissional e perfeccionista, e com uma visão muito clara do filme que quero. Mas também gosto de ser muito aberta a tudo o que as pessoas têm a dizer. Mas, se a ideia não for clara, se não houver uma estrutura, as coisas perdem-se. Nunca vou ser uma realizadora que fica sem saber o que fazer, porque isso é o pior que pode acontecer. Sou muito exigente e escolhi [trabalhar com] aqueles que sabia terem a visão certa, que eram capazes. E gosto muito de ouvir o que eles têm para dizer.

Trabalhaste com uma equipa bastante heterogénea, com membros de vários países. 

Sim, 75% da nossa equipa era estrangeira e, para alguns deles, era o primeiro filme em que trabalhavam. Para mim, é importante trabalhar com pessoas emergentes, que nunca fizeram um filme. Acho importante dar oportunidade a pessoas novas. Claro que é um risco, mas, neste filme, os benefícios compensaram. Tivemos o apoio da Planar (a nível de material) e, na Dona Ajuda, contámos com o apoio do Gastão Travado. Ele foi imprescindível como production designer, com empréstimo de roupa e de alguns props. A Ilka Selmeczy (adereços) e o Laszlo Adam (efeitos visuais) são ambos da Hungria. Tivemos dois diretores de arte: o Randy L. Ericsson, da Bélgica, e a Rebecca Pilkington, de Inglaterra. A Heather Pettit, que trabalha em videojogos, criou o nosso fantasma. A maquilhadora, Anastasia Taylor, é russa, mas vive em Portugal. E deixa-me acrescentar que, apesar de o nosso ator principal [Nazariy Koval] ser ucraniano, o ambiente entre os dois foi sempre pacífico. Na música, temos o espanhol Diego Sualdea. Foi a primeira vez que fez música para cinema. 

A tua passagem por Espanha foi um primeiro passo para teres uma perspetiva «de fora para dentro» sobre o cinema português?

Tive uma bolsa para fazer o mestrado em Produção Executiva Audiovisual em Espanha, um país onde se faz mais cinema de horror do que em Portugal, e a primeira coisa que aprendi com [os professores], alguns já veteranos na área, foi que «ninguém sabe nada». Os próprios distribuidores, as pessoas responsáveis pelas vendas, não sabem o que é que terá sucesso, mas arriscam e apostam. Portanto, como cineastas, temos de aprender a ser mais autónomos, arriscar mais. Espanha e Portugal têm uma história semelhante, de ditadura e conservadorismo, só que nós ainda não demos o salto. Em Portugal, ainda tens de conhecer as pessoas certas, e temos todos muito medo. Acho que ninguém vai admitir isto, de fazer cinema em Portugal. No After Link, há uma cena em que a atriz está a tirar cabos elétricos da vagina, para demonstrar a tal ligação entre natureza e tecnologia, e a reação de parte da equipa foi dizer para não fazer aquilo, senão o filme não ia passar em lado nenhum.

E, contudo, foi selecionado para o MOTELX e outros festivais.

Exato. Ainda estamos muito presos a certos tabus antigos. Lá fora, fazer cinema de horror é normal e é arte. O medo é a emoção mais antiga do mundo e a que nos permite sobreviver. Se não tiveres medo, não te sabes defender. O cinema de terror deveria ser mais explorado, porque o terror não é o que as pessoas aqui de Portugal pensam. Terror é o único género cinematográfico que consegue abranger todas as emoções possíveis, que noutros géneros não conseguimos. Fazemos horror, terror, suspense, thriller etc. para libertar aquilo que todos nós temos cá dentro. Todos temos escuridão, e o cinema de terror é uma forma de libertação daquilo que não conseguimos explicar de outra forma. Devíamos ter realmente medo é das pessoas que não gostam de terror, das pessoas que nem sequer toleram [o género]. O Hitler gostava de musicais e comédias, por exemplo. [risos] Acho que não devemos fazer cinema para ser amados, mas para expor a nossa arte, aquilo que temos cá dentro. É importante encontrar o vosso público, claro que sim, mas façam o filme que querem fazer e não o filme que os outros querem que façam.

Em conversa com o Chico Noras, soube que lhe entregaste dois guiões, para pelo menos um deles ser desenvolvido. Não sei se podes adiantar algo sobre as histórias? Um deles seria um projeto futuro.

É verdade. As histórias passam-se outra vez nos anos 90 e com personagens femininas muito fortes. Personagens femininas fortes e espiritualidade são o que marca o meu cinema. Uma delas é sobre violência doméstica contra uma mulher, em que o homem a faz acreditar que ela tem um problema e que está a enlouquecer, algo que acontece com frequência nestas situações. E muita gente, por vezes, acredita mais no abusador do que na vítima, por isso quero fazer a audiência acreditar que ela está louca, quebrando a quarta parede. A outra história é sobre uma artista de tapeçarias que está a lidar com a dor da rejeição de um rapaz de quem ela gostava e que teve um acidente. Sem revelar muitos pormenores, vai ser um filme mais Suspiria.