Entrevista ao autor de «Contos do Mal», Sérgio Alcântara

«Temos um imaginário tão rico de terrores e medos ainda vincados em certas zonas do país que não precisamos de importar ficção de outras culturas»

Os Contos do Mal começaram como um projeto de paixão no Facebook e estão prestes a transformarem-se em livro, a lançar em breve. Natural de Mafra e a residir em Sintra, o autor de 47 anos, Sérgio Alcântara, satisfez a curiosidade da Fábrica do Terror sobre este projeto, que sente também como a oportunidade de deixar um legado à sua filha de 4 anos.

Sandra Henriques

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Como é que surge a ideia para este projeto Contos do Mal? E começa quando?

Os Contos do Mal surgem de duas paixões antigas, mas que nunca se tinham cruzado mentalmente. A escrita foi sempre um exercício que experimentei, umas vezes mais virado para a poesia, outras para a prosa, mas sempre (ou quase) para consumo pessoal, como um escape, um exorcismo muito íntimo de monstros que nos consomem e atormentam, muitas vezes sem entendermos porquê. A fotografia de lugares abandonados é a segunda paixão, embora surgindo conscientemente mais tarde, sempre me senti fascinado pela beleza decadente destes locais, imaginando muitas vezes as suas histórias e segredos mais sombrios.

O projeto iniciou-se como quase todos os projetos… Por brincadeira. Faz um ano, sensivelmente, após visitar uma pequena casa rural perto da localidade onde vivo, lembrei-me de escrever um pequeno conto ficcionado sobre um crime ocorrido ali. Coloquei no Facebook e, para espanto meu, teve grande aceitação. Tomei o gosto à coisa e passei a escrever regularmente sobre os locais abandonados que visitava e fotografava ou que já tinha visitado no passado. Assim começaram os Contos do Mal…

 

Os contos partem da fotografia ou é a fotografia que parte do conto? Ou seja, antes de fotografar já tem uma história para aquele espaço, ou a imagem vem primeiro, ou acabam por acontecer quase em simultâneo?

Os contos partem da fotografia e das sensações que surgem nas visitas aos locais. Aliás, tenho inúmeros locais que fotografei, mas que até à data não me inspiraram para escrever qualquer conto. Há sítios onde, durante a visita surgem logo ideias para a escrita, mas, na maioria, o conto só surge depois de revistas as imagens e ponderado o sentimento que ficou daquele local.

 

Estava à espera deste retorno, quase 5000 seguidores da página de Facebook? Que feedback é que costuma receber em relação aos contos?

Não estava de todo à espera… foi uma agradável surpresa ver que tanta gente se identifica com a minha forma de escrever e descrever sentimentos. O que me agrada mais é ler nos comentários que o leitor se consegue transportar para aquela casa, sentir os mesmos odores, o mesmo medo, a mesma opressão… Como costumo dizer, é sinal de missão cumprida. Tenho noção de que, nas redes sociais, quase cinco mil almas não é muito. Mas, tendo em conta o tipo de escrita tão específico, fico muito feliz pelo que tenho conseguido num ano.

Em que momento é que os Contos do Mal saltam da rede social para um livro a ser lançado brevemente? Perguntando de outra forma, quando é que percebe que o projeto precisa de ser transformado em livro?

Esta possibilidade surgiu através de um convite de um casal conhecido, que uma vez se cruzou comigo e lançou literalmente: «gostamos do que escreves, temos de falar para editar um livro». Sorri e levei como uma brincadeira irónica. Garanto que não tomei de todo a sério aquela proposta. Passados uns tempos, voltaram a abordar-me com essa possibilidade e percebi então que era mesmo um assunto sério. A partir daí, tem sido um longo caminho para alguém que nunca editou nada, nem tinha tido qualquer contacto com o mundo da edição literária. A editora, Bloomer Books, também está a dar os primeiros passos e por isso tem sido uma descoberta para ambas as partes. Confesso que fico muito feliz por esta possibilidade, capaz de se tornar real.

Vejo esta oportunidade como forma de deixar um legado à minha filha, ter algo palpável que o pai escreveu e foi editado.

Já tenho uma filha, já plantei dezenas de árvores, venha o livro…

 

Na página, informa que os «os contos do mal não são, nem pretendem ser, histórias de terror ou sobrenatural», mas é inevitável que os fãs do género se sintam atraídos por esse tipo de conteúdo. Concordo quando diz que «o mal é bem presente e real», porque o terror pode abranger muitos medos e questões sociais. Já vimos, por exemplo, a saúde mental e o racismo retratados em filmes de terror. Considera-se fã de terror ou nem por isso? E, caso seja fã, tem alguma obra preferida em particular?

Refiro isso na apresentação aos leitores dos Contos do Mal porque efetivamente não pretendo conotar diretamente com o terror ou sobrenatural, mas também gosto de deixar a porta entreaberta para as diferentes interpretações que possam ter estes contos. Se, por um lado, os leitores mais apreciadores do fantástico ou do sobrenatural podem ter realmente indícios da existência deste mundo oculto, os mais céticos podem (e devem) interpretar algumas das ocorrências relatadas como episódios causados por alguma alteração psicológica ou mesmo psiquiátrica dos personagens. O mal, infelizmente, faz parte da nossa vida, do nosso dia a dia e pode surgir em qualquer um de nós em atos que nos rotulam como bestas da sociedade ou como seres depressivos. Às vezes, a linha de fronteira é tão ténue que facilmente caímos no lado obscuro da existência humana. Basicamente, acredito que não são necessárias demonstrações sobrenaturais para termos cenários verdadeiramente assustadores, mas também não os descarto.

Pessoalmente, tenho alguma atração pelo oculto, embora tente sempre observar de forma distante as situações. A minha máxima é o respeito pela crença. Embora não as procure nem pratique, respeito-as. Sou um apreciador do folclore e das crenças antropológicas do nosso país, com tanta tradição oral de histórias contadas à lareira, que passavam de geração em geração, e que, algures perdido no tempo, tiveram um fundo de verdade. Temos um imaginário tão rico de terrores e medos ainda vincados em certas zonas do país que não precisamos de importar ficção de outras culturas.

No panorama literário e cinematográfico dentro do chamado terror, aprecio as abordagens de assuntos como espiritismo, possessões e o oculto, mas de uma forma implícita ou velada, ou seja, não sou apreciador de monstros e assuntos demasiado fantasiosos e explícitos.

Obviamente, há clássicos que aprecio e que de alguma forma me marcaram, como o Drácula, de Bram Stoker, ou O Exorcista, de William Peter Blatty. No panorama nacional, gostei bastante de um filme realizado em 2006, que soube explorar, quanto a mim, as crenças e os ambientes claustrofóbicos do nosso território interior, Coisa Ruim, de Tiago Guedes e Frederico Serra.

Na literatura, dentro deste campo tão amplo, aprecio bastante a obra de David Soares, que aborda o imaginário fantástico e lendário português, bem como algumas das nossas tradições esotéricas.

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