«O Fantasporto será sempre o Fantasporto. É a casa de cinema do fantástico.»

A transmontana Filipa Moredo «trocou» Bragança pelo Porto quando se mudou para a Invicta para estudar marketing. Há 20 anos que chama casa a esta cidade e, desde 2020, que é responsável pela comunicação do Fantasporto.

Conversámos sobre o seu amor pelo Porto e os seus artistas, o Urban Market (o seu projeto do coração) e o que o futuro pode reservar para o Festival Internacional de Cinema do Porto com a mudança para o Cinema Batalha em 2023.

De Ricardo Alfaia

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Como é que começa a trabalhar com o Fantasporto?

Comecei em 2020. Convivia com o João [Dorminsky] no meu cowork e organizo eventos já há 10 anos, com o apoio da Câmara Municipal do Porto e outras entidades. Nessa altura, a Irene estava de saída e o João desafiou-me a fazer parte do secretariado, a parte de gestão aqui do festival. E, no primeiro ano, foi exatamente isso [que fiz]. Trabalhava juntamente com a [produtora] Maria João, a Helena [Oliva] e a Inês [Oliva]. Terminámos o festival a 10 de março e entrámos em quarentena na sexta-feira 13. Durante esse tempo, o Mário [Dorminsky] convidou-me para fazer parte da Cinema Novo, a entidade que gere o Fantasporto, como sócia, porque tinham gostado do meu trabalho. A partir daí, comecei a fazer parte da equipa da direção da Cinema Novo. Portanto, só comecei há dois anos.

Mas, antes desse tempo, já havia ligações ao Fantasporto como fã ou como espectadora?

Sim, como espectadora, mas muito pontualmente. Ia mais às edições do Baile dos Vampiros, que era a festa final do Fantasporto, e portanto há sempre uma ligação, porque a cidade do Porto e o Fantasporto são duas coisas que se juntam. Será raro ver alguém aqui do Porto que não conheça o festival, pelo menos para a minha geração e a anterior, [o Fantas] tem uma marca estabelecida na cidade.

Para mim, é surpreendente que diga 2020. Porque a sensação que tive é que é da casa há pelo menos 10 anos, porque conhece toda a gente, organiza tudo. Integrou-se muito bem.

Sim, talvez, mas eu sou «uma pessoa de pessoas»e gosto de gerir pessoas e que estas estejam bem, e que tudo esteja coordenado. Tenho um bocadinho de transtorno obsessivo-compulsivo [risos], que me ajuda nisso. Se tudo tiver uma coordenação e gestão eficiente, e claro, toda a gente estiver bem, então tem tudo para correr bem. Acho que foi isso que o Mário e a Beatriz [Pacheco Pereira] também viram em mim e que fez com que me convidassem para fazer parte da direção. Não sou uma pessoa de ficar parada e tenho gosto por esta área de trabalho – a produção. Neste momento, estou a fazer a produção, [a gestão] dos convidados e a gestão das redes [sociais], um bocadinho de tudo.

E quando não está no Fantasporto, qual é a sua atividade?

Eu sou marketeer, sou formada em comunicação e marketing. Há 10 anos, criei uma empresa e um conceito de mercado de rua, o Urban Market, que é um mercado de design de produtos portugueses. Tudo o que trago vestido é feito por designers do Porto. É um mercado que já tem algum nome na cidade, e tenho muitos pedidos de marcas de Lisboa para participar. Começou em 2011, quando ainda não havia este boom do turismo e eu e a minha ex-sócia na altura criámos a Portugal Lovers. Tínhamos muitos amigos designers que tinham ateliers escondidos aqui no Porto e que tinham poucas oportunidades de contacto com o público. Na altura, desafiámos cerca de 20 projetos para fazer um mercado, e a ideia era mostrar sítios da cidade desconhecidos do centro histórico do Porto e trazer os designers para a rua. Fizemos um em janeiro de 2012 e até hoje, o Urban Market continua. Neste momento fazemos dois [mercados] mensais. Entretanto, em 2019 fiquei sozinha neste projeto e continuo a fazê-lo, tenho tido um excelente feedback internacional. A ideia é que os projetos se mostrem, vendam e depois voem.

Quando a ouço falar desse projeto e do Fantasporto, noto que tem um grande amor pela cidade. 

Sim, e não sou de cá! [risos] Eu sou transmontana, sou de Bragança, só que estou cá há mais tempo do que aquele que vivi em Bragança, ou seja, há 20 anos. Vim para cá estudar marketing, apaixonei-me pela cidade e fiquei.

Daí esse amor à cidade.

Sim, porque o Porto, apesar de ser uma cidade mais taciturna, mais underground — porque é mais cinzenta comparada com Lisboa, que é mais aberta, tem mais luz…

Não vamos comparar! 

Não, não. [risos] Mas o Porto tem uma essência única e muito bairrista, é uma cidade que aos poucos se entranha em ti e se torna tua, o Porto é casa. É essa essência de bem acolher que o Porto tem. É uma cidade muito familiar.

Eu noto isso, é muito fácil falar com as pessoas, entrar em contacto.

É essa a diferença, sim. No Porto é muito mais fácil criar «comunidade», onde se criam mais facilmente sinergias criativas, muito mais «abre a porta e deixa entrar». Lisboa tem um bocadinho mais de individualismo, também porque é uma cidade maior, é mais difícil singrar. Aqui, não. Aqui, é muito mais comunitária, muito mais bairrista.

Fotografias: Ricardo Alfaia

Como vê o futuro do Fantasporto? Porque eu notei que há aqui muita coisa a mudar.

Vamos mudar de casa depois de tantos anos. O Batalha vai se tornar a casa de cinema do Porto, Porto Films Commission,  portanto, acho que mudamos para a casa certa. Vai ser um passo para a frente e para cima. Literalmente. O Fantasporto precisa só de um refresh, precisa de mais equipa, de uma nova geração e de algo novo.

Tem esperança de que, com a mudança, o espírito do Fantas se reavive? Mudança é sempre bom.

Sim, um refresh. Um acompanhar os tempos que vivemos.

E muitos planos para essa mudança?

Sinceramente, ainda não sei. Nós começamos a trabalhar o Fantas um ano antes, portanto, neste momento, estou só a pensar no que está a acontecer agora.

Durante o ano, nunca se ouve falar dos festivais, e acho que isso é pena, porque as pessoas deviam ser relembradas do que vai acontecer, do que está a ser preparado.

O problema é que temos um curto espaço de tempo. Vamos começar a receber as submissões dos filmes, e a Beatriz vai passar um ano a ver cerca de 500 ou 600 filmes para fazer a seleção. Só depois de ser feita essa seleção é que temos todo o material para podermos comunicar. A ideia que dou muitas vezes era irmos fazendo pequenas edições do Fantasporto, sessões de cinema durante os fins de semana ao longo do ano.

Isso é uma ideia muito boa. Vejo aí uma ligação muito boa porque está constantemente a lembrar as pessoas.

[Por exemplo], fazer uma edição especial sobre um realizador, sobre alguém que já ganhou um Óscar e que foi descoberto no Fantasporto, como no caso [do realizador] do Parasitas, que foi descoberto aqui e que a seguir foi ganhar um Óscar. O Fantas tem toda uma história de descoberta de novos realizadores que acabam por chegar ao topo. 
Se reparar, o Danny Boyle, o Peter Jackson, o Guillermo del Toro, o Wes Anderson, todos eles já passaram aqui.

E em relação ao cinema português, nota-se um aumento nas submissões? 

Sim. Pela primeira vez, vamos ter um filme de terror português [uma longa-metragem], o Amelinda. Temos muitas submissões de curtas portuguesas e poucas longas. Mas na verdade o cinema português nunca teve grandes apoios.

É a falta de apoio aos artistas, à cultura, como em todo o país. Mas nota-se uma diferença nos novos autores portugueses, dos novos media, de procurarem novas soluções? Porque um bom artista sem dinheiro é um artista criativo. 

A nova geração consegue [isso]. À partida, toda a tecnologia já está mais avançada para que as coisas custem menos. Mas [a falta de apoios] vê-se também entre cidades, porque Lisboa tem sempre mais apoios à cultura do que o Porto. O que, a meu ver, faz com que no Porto os artistas sejamos mais criativos

Havia algum interesse vosso em apoiar artistas do Porto, por exemplo?

A ideia, há uns anos, era criar uma escola de produção. Um espaço cultural onde pudessem fazer exatamente isso. Acredito que seja agora na casa que está a ser construída, o Batalha, onde será a casa da Films Commission do Porto, e penso que terá também o Cine Clube do Porto que continua a fazer sessões de cinema ao longo do ano.

Estão, então, em boa companhia?

Estamos. Para haver aqui alguma sinergia, sim. Acho que vai ser engraçado.

Nos filmes do Fantasporto, nota-se uma diferença nos temas devido à mudança na nossa sociedade. Tem-se notado?

Há. E é engraçado porque, a cada ano, a Beatriz tem uma noção de como o ano está. É a Beatriz que faz a seleção e faz questão de escolher filmes específicos. Este ano, [tivemos] uma sessão especial de Direitos Humanos, [com um filme] sobre o tráfico de mulheres e um documentário sobre a prostituição em Portugal. E claro, a questão política da guerra, porque tivemos de cancelar um filme russo. Não foi nada contra a Rússia e contra os russos. À última da hora, o Mário Dorminsky conseguiu trocar por um filme ucraniano o qual fez questão de comprar. Valor esse que foi todo doado às vítimas [da guerra].

É bom saber que o Fantasporto sente essa responsabilidade social, porque o cinema é um espelho da sociedade.

E de tudo o que se passa no mundo, sim. A cultura cinematográfica, começando pelos filmes do Chaplin, tem uma mensagem que não é [sempre] política, mas com uma imagem a definir. Tem de se espelhar no mundo. Eu acredito que o cinema é ideal para passar uma mensagem de apoio a vários temas. Por exemplo este ano, e claro este ano temos algumas curtas que focam muito a pandemia, mesmo as apresentações dos livros são muito pensadas, mas isso é tudo graças ao olho da Beatriz.

O que tenho também reparado é que os filmes escolhidos são filmes que não são comerciais. Isso, por um lado, dificulta o equilíbrio entre o que é artístico e o que o público quer ver?

É difícil de gerir, mas muito devido à pandemia houve uma quebra  nos apoios em geral. Mas, se pensarmos que, há uns anos, o festival começava às seis da manhã e terminava às seis da manhã [do dia seguinte], não havendo paragem e com salas cheias, é claro que agora é triste ver as salas de cinema meio cheias. A verdade é que o streaming, a Internet, tudo isso fez com que as salas de cinema ficassem vazias. É geral. O Fantasporto tem um conceito associado aos filmes do fantástico e acho que isso se vai manter e que pode abrir espaço para mais coisas no futuro, mas o Fantasporto será sempre o Fantasporto. É a casa de cinema do fantástico.