Entrevista ao autor Miguel Gonçalves

«Há uma ideia de certa parte da cultura de que o terror não é escrita a sério»

Publicamos esta entrevista uns dias depois do lançamento oficial de Devil’s Rejects, uma antologia de terror publicada pela editora independente Dark Pine Publishing e onde o autor português Miguel Gonçalves se estreia com o conto «The Scarecrow Man».

Entre outras coisas, falámos de estreias, de como é ser autor de terror em Portugal, de comunidade e da necessidade de continuar a produzir para consumir para produzir terror em português.

Sandra Henriques

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Quando é que começa esse gosto pelo terror?

Tenho duas situações. Uma delas é estar a ver o Evil Dead com os meus pais, com a minha mãe cheia de medo, e eu, para aí com uns 5 anos, 6 no máximo, sentado no chão, extremamente divertido a ver aquilo. Muito provavelmente sem fazer ideia do que é que estava a acontecer, mas essa é a primeira memória que tenho. E tenho outra, de a minha mãe estar a ver o Twin Peaks, não me deixar ver e eu esconder-me atrás da porta da sala e, de vez em quando ir, espreitando a série.

 

Isso é curioso, porque veres o Evil Dead era tranquilo, mas o Twin Peaks não, porque é mais pesado.

A ideia que tenho é que, com o Twin Peaks, eu já era mais crescido, e não é aquele terror de monstros e sangue. É mais psicológico e, se calhar, faz diferença. O terror psicológico é capaz de afetar mais uma pessoa numa idade mais nova do que o terror muito gore.

 

Quando é que chegas aos livros de terror?

Do pouco que me recordo, acho que a minha primeira entrada nos livros de terror foi tardia. Comecei pela fantasia e, do que me lembro, o meu primeiro contacto com o terror deve ter sido com Stephen King. Goste-se ou não, tenha-se problema ou não com o tipo de escrita dele e com o tipo de coisas que ele escreve e como escreve certas personagens, acho que, a nível internacional, era o que havia na altura. Era aquilo a que tinha mais acesso em termos de livros de terror cá.

 

Stephen King era o que havia mais nos anos 90, sim. Era o mais traduzido.

Acho que o primeiro livro que li do Stephen King foi do pseudónimo dele, Richard Bachman. O Dark House.

 

Nessa altura, já sabias que era ele?

Sim, porque a capa do livro já dizia Stephen King. Aliás, eu descobri bastante mais tarde que o livro não tinha sido escrito pelo Richard Bachman. E a seguir a Stephen King, embora eu não considere terror «a sério», li Anne Rice. Não estou a dizer que não considere terror, mas…

 

Agora, tenho de te perguntar o que é para ti terror «a sério».

Para mim, o terror não tem de ser algo que te deixe completamente assustado. Não tem de ter sangue, não tem de ter monstros. Para mim, o terror é mais algo que te deixa desconfortável. Pode ser por situações que acontecem, pode ser por uma personagem. O que quero dizer é que acho que a Anne Rice é considerada como [autora] de terror porque tem vampiros, mas eu não considero que seja uma história de terror. Não é um Shining, um It, não é algo que te deixe assustado ou com medo ou com desconforto. E a Anne Rice é provavelmente das minhas escritoras favoritas, e eu digo que é terror, mas não considero que seja aquele terror assustador, é algo mais literário. Não que o terror não possa ser literário, atenção. Mas em relação ao que é terror a sério, pode ser que eu esteja tão inoculado que já não sei bem o que é terror. Sinto muito isso nos filmes. Mas se não vir o monstro, se não vir o que está a perseguir a pessoa, é muito mais interessante. A antecipação.

 

Quando é que começas a escrever, não necessariamente terror, mas quando é que percebes que o teu caminho artístico é pela escrita?

Penso que a minha experiência com a escrita começou ainda antes de escrever, com a ideia de criar histórias, a brincar com bonecos, com Legos. Não era só brincar, havia uma história que continuava sempre, quando voltava. Lembro-me de, para aí com 11/12 anos, escrever umas versões alternativas de histórias de mitologia, coisas que ia lendo e que depois tentava recriar com as minhas palavras. Às vezes, tinham diferenças; outras vezes, não. Penso que terá sido aí. Depois, durante algum tempo parei de escrever, e depois, penso que por volta dos 16/17 anos, voltei a escrever, por ter começado a jogar role playing games, como Dungeons & Dragons. Tanto a escrever histórias para as personagens com que ia jogar como a criar histórias para jogos entre os meus amigos. Ainda tenho bastantes histórias antigas, algumas que já canibalizei para outras coisas e que fui aproveitando para outras histórias. Também tenho muitas ideias soltas, meias-histórias perdidas em blocos que digo sempre que vou passar para computador, para ter uma maneira mais fácil de as gerir. Só que depois sei que nunca vou fazer nada com aquilo, que nunca vou ter paciência para as passar para computador.

 

Existe uma teoria que diz que, se não tens paciência para passar uma ideia a computador, não estás assim tão apaixonado pela ideia. 

Acho que há muitas histórias que começamos a escrever que fazem sentido naquele momento. Depois, por diversas razões, temos de as parar, e no momento em que voltamos a elas, aquele feeling, aquele nós, já deixou de existir. Não é que a história não faça sentido, mas já não é o que queremos para aquele momento. Eu tive uma experiência um bocadinho ao contrário. Comecei a escrever uma história para submeter a uma antologia e tive de a parar porque estava a ficar demasiado pessoal. Quero continuá-la, quero ver onde é que aquilo vai acabar, mas ficou um bocadinho fora do controlo. Quando escrevemos alguma coisa, mesmo que seja a coisa mais absurda, horrorífica ou gore, é uma parte de nós. E é por isso que, se calhar, toda a gente começa a pegar em histórias de que gosta e a tentar copiá-las, para fazer daquela história de que gostamos tanto também um bocadinho da nossa pessoa.

 

Já sentes que tens um estilo próprio, uma assinatura?

Acho que uma das coisas que mais me dá a perceber que as coisas são minhas é a descrição de personagens. Acho que dou sempre certos pormenores às personagens que fazem com que seja fácil de perceber «olha, isto se calhar é do Miguel».

 

Tens uma escrita muito cinematográfica, não sei se tens essa noção. O teu processo de escrita começa com uma imagem?

Sim, e é a pior coisa que pode acontecer a um escritor, é terrível. Quando tens uma imagem tão nítida, tão exata na cabeça, ao passá-la para o papel, não consegues que o que está escrito seja o que tu viste.

 

Este conto, «The Scarecrow Man», que submeteste à antologia Devil’s Rejects é a primeira vez que publicas? É a tua estreia como autor publicado? 

É o meu primeiro conto publicado. Nunca publiquei nada antes.

 

Como é que chegaste a esta antologia?

Na altura da pandemia, descobri no Instagram uma data de escritores independentes de terror e fui seguindo alguns. Conheci algum pessoal, fui descobrindo editoras independentes de terror e este conto que vai ser publicado está a ser lançado numa antologia para contos que foram rejeitados noutras antologias. Enviei este conto para uma primeira antologia e não foi selecionado. Depois apareceu esta, para segundas oportunidades, e enviei.

 

Sabes porque é que não foi aceite da primeira vez?

Na altura, o editor da primeira antologia disse que a história não se enquadrava exatamente no que ele estava à procura. Uma das coisas que mais me têm dito, principalmente nas antologias, é nunca pensar que a história foi má, ou que não gostaram, mas para pensar na antologia como um álbum de música. Tens espaço para 10 músicas, e se calhar há músicas boas que ficaram de fora porque não se enquadram no seguimento das outras. Só no final do ano passado é que comecei a lançar coisas para o mundo. Ficava tudo arrumado numa gaveta e ninguém via nada do que eu escrevia. Acho que foi dos conselhos mais práticos, mais interessantes e mais úteis que me deram. Não pensar que o «não» é por ser mau, ou por não prestar, ou por não saber escrever. Simplesmente não é bom para aquele livro específico. Até porque não entrou ali, entrou nesta agora.

 

Escreves sempre em inglês? À exceção do conto que submeteste à Fábrica (e que será publicado em breve).

Nota do autor: O conto está agendado para 27 de setembro de 2022.

O conto que submeti à Fábrica foi escrito originalmente em inglês, e ainda fiz algumas alterações quando o traduzi para português. Acho que a razão de escrever em inglês é maioritariamente por ler em inglês. De alguma maneira inconsciente, se calhar, faz mais sentido na minha cabeça o encadeamento da história, o flow do texto, o que acontece. Mesmo o vocabulário acaba por não ser maior, mas é mais fácil de gerir em inglês. E se calhar, também, até agora, aquela noção de que não há terror em Portugal. [risos]

 

Ninguém diria! [risos] Mas sentias isso?

Principalmente na escrita — de livros, de texto. Não estou a falar das traduções. O único escritor de terror português que conheço é o David Soares. Com a minha ligação ao Fantasporto, sei que nos filmes e curtas-metragens há muita coisa de terror em Portugal, mas, na escrita, nunca me apareceu muito material. E, se calhar, era porque toda a gente pensava como eu: «não existe terror em Portugal, por isso vou escrever em inglês».

 

Precisamente. Se não mostrares que já existe, não se produz mais. Produzir para consumir para produzir.

Acho que também há uma ideia de certa parte da cultura de que o terror não é escrita a sério. Se escrever um livro de terror, vão dizer: «ah, isso não é um livro a sério, não é literatura». Por exemplo, gosto bastante de banda desenhada, já li histórias de banda desenhada que são melhores do que em muitos livros, mas não é «literatura a sério». Agora, já se leva mais a sério, mas no terror há esse estigma.

 

E há livros de terror que não são classificados como tal, pelo receio de não serem levados a sério. Há muito trabalho para fazer. 

Eu acho que as pessoas olham sempre para nós, que escrevemos terror, como se tivéssemos algum problema. Escrevi agora uma história sobre um homem que cria espantalhos, e as pessoas leem aquilo, ou sabem que a história é sobre aquilo, e vão dizer: «o Miguel tem problemas, o Miguel anda aí a transformar pessoas em espantalhos». [risos] Ninguém questiona se o Stephen King é normal ou não, ou se outros autores de terror são normais ou não. Quando não és muito conhecido, olham sempre para ti como se fosses esquisito. «Mas escreves sobre isso porquê? Tenta escrever uma coisa mais bonita. Tanto sangue! Tens algum problema com adolescentes para estares a matá-los? Estás a passar esses problemas para o papel para não fazeres na vida real? É como se fosse terapia?»

 

Tu sentes esse cansaço, já? De parecer que estás sempre a responder às mesmas perguntas?

Felizmente, acho que não me afeta tanto. Há duas coisas muito importantes. Primeiro, os meus colegas não pensam assim. Segundo, muito pouca gente sabe que eu escrevo. No meu trabalho, ninguém sabe que escrevo, até porque não tenho ninguém que trabalhe comigo nas minhas redes sociais. Gosto de separar as águas. Por isso, acho que ainda não sofro muito disso. Mas posso dizer que já tive pessoas a olhar um bocadinho mais de lado para mim, depois de lerem alguma coisa minha. [risos]

 

Nós não vamos a um lado mais obscuro de traumas buscar a imaginação para um conto de terror!

É uma coisa muito normal, uma coisa que acontece. Podemos ir buscar, às vezes. Se calhar, passamos alguma frustração ou então damos a alguma personagem uma característica identificativa de outra pessoa que conhecemos por alguma razão.

 

Às vezes, porque dá jeito pela própria observação.

Sim, sim. Por acaso, dou por mim a imaginar a história de certas pessoas com que me cruzo na rua. E crio uma história na minha cabeça. Mas ainda há o estigma — ou um ou vários — de que quem escreve terror não é muito normal, e de que não há terror em Portugal, porque não havia divulgação do que se fazia. Mesmo o David Soares não será um dos nomes mais conhecidos em termos de escritores portugueses.

 

Mas, se um autor conceituado começasse a escrever terror em Portugal, o caso mudava de figura.

É a questão de ser necessário validar alguma coisa com alguém que já tem algum nome e algum poder na área.

 

És o único autor português nesta antologia Devil’s Rejects. Sentes que isso é um feito? O que é que eles disseram pelo facto de seres português, ou isso é-lhes indiferente?

Da parte deles, não houve nada de especial por ser português. Acho que eles devem receber mais contos de sítios onde a língua oficial seja o inglês. Mas, lá está, se isto tivesse sido há 15 ou 20 anos, se calhar, o feito seria muito maior, devido a todas as condicionantes. Agora, com a internet, acho que continua a ser importante, para mim, um português, ter conseguido ter um conto numa antologia com tantos autores, ter conseguido ter uma história que fosse boa o suficiente para estar lá, o que prova que há coisas boas a serem feitas cá. Mas, com a internet, tanto faz eu estar em Portugal como estar nos Estados Unidos. Para eles, acho que isso não faz diferença.

 

Se calhar, ainda ligamos muito a isso, esta coisa de, como és reconhecido lá fora, és bom, mas se tivesse sido uma antologia feita cá, se calhar não. É aquela questão do nome e de teres visibilidade lá fora e tudo o mais.

Acho que, se o meu primeiro conto tivesse sido publicado numa antologia portuguesa, para mim, ia ser quase a mesma coisa, porque era o meu primeiro conto a ser publicado. Se calhar, o que muda nesta situação é o futuro. Se agora, com os contos que tenho, quiser pegar neles e fazer eu a minha antologia, talvez seja diferente para uma editora independente eu dizer que tenho um conto numa antologia portuguesa ou que tenho um conto numa antologia desta editora estrangeira. Se calhar, vai pesar mais do que algo lançado em Portugal. Até porque acaba por ter uma projeção maior.

 

O que é que te vês a fazer a seguir como autor?

Acho que vou continuar a trabalhar em contos, porque tenho muita dificuldade em escrever coisas grandes. Tenho agora uma ideia, estou a começar um conto novo para outra antologia. No início deste ano [2022], tive uma ideia para uma antologia minha ainda antes de esta história ter sido aceite. Se submeter para antologias não resultasse, faria a minha própria antologia com algumas das histórias que tenho. Tenho essa ideia.

 

Em português ou em inglês?

Provavelmente, ia manter o inglês, para aproveitar os textos. Esse é o projeto pelo qual eu vou lutar mais até ao final deste ano ou início do próximo: continuar a escrever e enviar algumas coisas para antologias. O que for aceite, fixe; o que não foi, poderá sempre ser reaproveitado para a minha antologia, com uma ou outra coisa que seja feita especialmente para a compilação. Já existe um título, e uma ou duas histórias que sei que quero incluir, mas ainda é um trabalho a longo prazo. E nunca se sabe, pode sempre haver uma dupla edição, uma em inglês e uma em português.

 

Ficamos à espera das novas obras do Miguel Gonçalves. Entretanto, a antologia Devil´s Rejects já está disponível para compra na Amazon. Lê a notícia sobre o lançamento na Fábrica do Terror.

Fotografia: Ricardo Alfaia

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