Entrevista ao ilustrador Edgar Ascensão
O criador de pósteres alternativos para filmes de terror (e não só).
«Da perspetiva ética e legal, toda a plataforma [de inteligência artificial] foi alimentada com trabalhos de outros artistas que não foram recompensados por isso. Foi trabalho roubado para fazer ali uma salada de fruta. E isso é péssimo. Devia ser legislado.»
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«Os Melhores Contos da Fábrica do Terror – Vol. 1»
16.50 € (com IVA)Por causa dos seus pósteres alternativos de filmes (muitos de terror), o ilustrador Edgar Ascensão estava na nossa lista de pessoas a entrevistar desde antes da abertura de portas da Fábrica. E, enquanto preparávamos a melhor forma de o abordar para marcar esta entrevista, ele trocou-nos as voltas submetendo um microconto (que podes ler em breve).
Era como se o Edgar nos tivesse entrado casa adentro, ao que nós aproveitámos para lhe pedir que se demorasse, para falarmos da sua arte conceptual, que envolve desenhar pósteres alternativos para filmes, sem spoilers. Para a maioria, é impossível perceber o póster (ou que este seja spoiler) sem ter visto o filme.
Fez um póster oficial para o filme Mutant Blast, de Fernando Alle; já lançou quatro artbooks com as suas criações — Posters Caseiros — e o quinto volume está já em pré-venda, com lançamento previsto para 2023. O seu póster para a saga Halloween integrou o John Carpenter’s Halloween Artbook — An Illustrated Celebration of the Night He Came Home, editado pela Printed in Blood, em 2022.
Além de tudo isto, falámos de inteligência artificial, de exposições, de processo criativo e do… Barcelossauro.
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Como é que começas nesta vida de ilustração? Porque não é nesta área que trabalhas atualmente.
Não, sou repórter de imagem. Houve aqui uns anos em que tinha alguma flexibilidade de horários e tinha mais tempo para fazer coisas. E, quando não tinha filhos, ainda tinha tempo para fazer mais coisas. [risos] Mas sempre gostei de desenhar, desde criança. Depois, fui crescendo, adoro cinema, e, por volta da adolescência, quis ser realizador. Rapidamente percebi que podia estudar nessa área, mas sem perspetivas de ter emprego no final do curso. Optei por uma área mais abrangente, de artes da imagem, que tinha uma especialização em multimédia e audiovisuais. Estagiei na SIC como repórter de imagem e é onde ainda trabalho atualmente. Não é nada artístico, mas costumo dizer que faço microcurtas todos os dias. [risos] Como adorava cinema e ilustração, comecei a brincar com as duas áreas, a fazer pósteres fictícios.
Em que altura é que começas a ter essa ideia de juntar as duas coisas?
Tinha um blog de cinema, quando toda a gente tinha blogs de cinema, de 2005 a 2010. Gostava de criar imagens, templates e cabeçalhos para os artigos que escrevia. Em 2008, começou a surgir a tendência dos alternative movie posters, quando a Mondo (nos Estados Unidos) começou a fazer pósteres especializados, todos ilustrados, para a exibição do filme dessa semana. E tornou-se popular. Quando vi que havia tanta coisa criativa, também quis fazer.
Entretanto, essa coleção de ilustrações já originou cinco volumes de Posters Caseiros.
Nos livros, mostro muito o processo criativo de como cheguei ao resultado final. Nos primeiros que fiz, peguei em imagens de sinalética e associei a um filme. Atualmente, ainda é uma coisa que faço muito. Tenho uma ideia e penso: «este conceito é muito bom». Às vezes, em vez de arranjar uma ideia para um filme, arranjo um filme para uma ideia. Os meus primeiros trabalhos eram coisas muito minimalistas.
E as pessoas têm de ver o filme para perceber o póster.
Sim, inicialmente era tudo muito minimalista. À medida que as pessoas foram gostando do que eu fazia, fui evoluindo como artista também. Atualmente, tenho estado a fazer remakes de alguns desses pósteres mais minimalistas e simples que fazia ao início.
Já estás naquela fase da tua criatividade e da tua carreira como ilustrador em que te reinterpretas, ou reinventas?
Às vezes, deixo pósteres por fazer porque estou a trabalhar numa ideia e descubro que já alguém a fez. Já aconteceu lançar um póster terminado e, um mês ou dois depois, encontrar a mesma ideia. Mas, como já tinha publicado, deixo ficar.
Mas voltas a fazer?
Não. Porque depois comparo os dois pósteres e são muito diferentes. O conceito pode ser o mesmo, mas graficamente consegue distinguir-se quem é quem, não é plágio. Isso acontece com muitos artistas. É normal, as pessoas veem o mesmo filme e têm a mesma associação de ideias.
Como é que chegas ao conceito para o póster?
Não há uma fórmula. Às vezes, estou a ver um filme, aparece aquela cena e eu penso: «o póster está aqui». Com o Annihilation, aconteceu isso. Podia estar a fazer vários pósteres para o mesmo filme, mas eu prefiro ver filmes. [risos] Há tantos! A não ser que seja um filme mais popular como o Star Wars, nem que seja para depois ter mais prints para vender. Mais de metade dos meus pósteres são de filmes que a maior parte das pessoas não conhece. Por exemplo, costumava fazer uma minissérie de pósteres MOTELX. Ia ao festival, via os filmes e fazia os pósteres dos quatro ou cinco filmes de que gostava mais. O que é mais divertido de fazer, porque são filmes que não têm muitos pósteres alternativos, além do oficial (e às vezes nem isso). Dá para brincar mais com os conceitos.
Pensas em fazer mais exposições?
Tenho feito algumas. Fiz uma na Fábrica Braço de Prata, em 2014, só de filmes portugueses. Eram 24 pósteres e, na altura, pensei fazer mais 24, ou até chegar aos 50 no total, para fazer um livro, uma série lusa. Ainda não foi publicado, mas tenho estado a juntar mais filmes que quero fazer e mais ideias. Não tenho é tempo. [risos] Fui fazendo coisas oficiais, fiz o póster oficial para o Mutant Blast. Quero juntar isso tudo num livro. Houve outro que quero publicar nesse livro, um póster alternativo «oficial» para o Sleepwalk, do Filipe Melo. Ele comissionou-me esse trabalho, mas, no final, não era bem aquilo que ele tinha em mente. O conceito que imaginei para o filme não coincidiu com a imagem que ele tinha na cabeça. E está tudo bem. Como o póster é criação minha, quero incluí-lo no livro, com conhecimento e autorização do Filipe. Em Portugal, não há muitas pessoas que me contactem para fazer pósteres e, como não há mercado para edições especiais e versões alternativas, não há muitos trabalhos comissionados. Depois dessa exposição na Fábrica Braço de Prata, fiz mais algumas, incluindo uma que ainda está a viajar pelo país, para o Centro de Ciência Viva, com cada póster de filme associado a um tema científico. Por exemplo, os anos 50, com a revolução nuclear, associado ao Godzilla. Os anos 70, com a robótica, associado ao Star Wars. O Parque Jurássico, associado à descodificação do código genético. Pegava num tema e fazia um póster a partir daí. Foram 25 filmes ao todo. Depois, fiz uma retrospetiva de 10 anos com tudo o que criei, desde que comecei estas artes, que esteve em exposição na Cossoul.
Eras capaz de fazer isto para o resto da vida? Criar estes pósteres alternativos?
Sim, sim. Só preciso de um mecenas. [risos].
Achas que as pessoas não veem esta arte de fazer pósteres alternativos como uma coisa inovadora, em que cada artista tem o seu estilo? Não querendo aqui ir pelo «ser levado a sério».
É uma coisa mais pessoal, mais minha. As pessoas veem um póster meu e veem-me a mim, mas não ao filme que ele representa, às vezes. Mas eu vejo estes meus trabalhos mais como um quadro, que talvez precise de explicar. O póster do Mandy, por exemplo. Não faço pósteres para vender o filme. O filme já foi vendido, já foi visto. Eu costumo dizer que esta é a fase after-movie. É o póster para quem viu o filme, na minha vertente pessoal. E mesmo pessoas que tenham visto o filme podem achar que havia outras coisas que eu podia ter explorado. Foi o caso do póster do Hereditary. O conceito deste póster é mais sobre o que eu senti quando o vi do que um resumo do filme.
Há algum filme para o qual ainda não tenhas feito o póster? Algo que te atormenta, no sentido de ser muito difícil ou de ainda não teres chegado ao conceito ideal?
Sim, é o The Fountain. Não vou dizer que é o filme da minha vida ou um dos meus filmes preferidos. Costumo dizer que filmes preferidos tenho um punhado deles, numa bola em que vou mexendo, dependendo do género e do meu sentido de humor. Mas quando vi o The Fountain, que esteve uma semana numa só sala em todo o país, saí de lá extasiado. Ainda o revi há uns anos, e é aquele filme que é cinco estrelas. E eu raramente dou cinco estrelas. Tenho vários conceitos para esse filme, várias ideias, quero brincar com muita coisa. Tenho esboços e umas composições no Photoshop para ver como é que podiam ficar, mas acho que tenho de simplificar, como o do Hereditary. Ou se calhar fazer dois ou três, como para o Interstellar.
Vou fazer-te uma pergunta difícil. Qual era o filme para o qual nunca farias um póster? Ou que te arrependes de ter feito?
Há vários, ligados às minhas séries Óscares. Comecei o desafio de criar pósteres para filmes nomeados, como um estímulo criativo cronometrado: via os filmes, selecionava aqueles de que mais gostava e fazia os pósteres. Fiz para filmes que não estavam nomeados para Melhor Filme, só porque gostei deles ou porque estavam nomeados para outra coisa. Só nos últimos anos é que optei por fazer só para os Best Picture. Os outros, se gostar, faço mais tarde. Na altura [em 2016], estava a fazer [para essa série], por exemplo, o Moonlight, mas nem sou fã do filme. [Se não fosse a série], talvez não tivesse feito. E esse póster é o mais popular, e que viralizou na altura. Foi quase um ponto de viragem para fazer esta série mais a sério. Mas, claramente, se não fosse o Óscar, não tinha feito um póster para este filme.
E agora uma pergunta como provocação. Imagina que alguém te queria comissionar um póster para um filme que tiveste de ver, mas de que não gostaste, e tens total liberdade criativa? Farias?
Vou ser honesto, faria. Mas há um valor [a pagar]. O visionamento do filme é obrigatório, é indissociável do processo. A não ser que fosse um filme que tivesse quatro ou cinco horas, não ia perder tanto tempo a ver um filme. Sim, há muitas variantes, mas a primeira é a de quanto pagariam. [risos] Por isso é que faço essa série dos Óscares, que é um bocadinho esse desafio — o que é que consigo extrair deste filme em tempo recorde. Porque são dez filmes em dois meses e meio, mais ou menos. Às vezes, faço o póster antes de o filme sair. Foi o caso do Dune. Fiz assim que vi o trailer. Adoro o Villeneuve, é o novo mestre.
Como é que estás com a inteligência artificial? Porque se fala muito nisso agora.
É mais uma ferramenta. Da perspetiva ética e legal, toda a plataforma [de inteligência artificial] foi alimentada com trabalhos de outros artistas que não foram recompensados por isso. Foi trabalho roubado para fazer ali uma salada de fruta. E isso é péssimo. Devia ser legislado. Já experimentei, para ver se a ferramenta recriava aquilo que tinha na cabeça, mas, quanto ao meu trabalho, para já, estou tranquilo. O problema é para nós como comunidade. Há muitas editoras de livros, principalmente nos Estados Unidos, que estão a fazer capas através disso. Isto tem de ser legislado, tem de ser regulado. Arranjar uma base de dados de imagens em que os artistas recebem um fee, como fez o Spotify, por exemplo.
O que é que estás a fazer agora? O que é que vem a seguir? Sei que o volume 5 do Posters Caseiros já está em pré-venda.
Estou a apontar o lançamento para final de julho, vai depender do processo de impressão. Não tenho muito tempo, e o pouco tempo que tenho gosto muito de gastá-lo em pósteres, mas também gosto muito de banda desenhada. Há vários projetos colaborativos, nomeadamente com a H-ALT, de pequenas histórias de três a nove páginas. E tenho muitas histórias escritas para a H-ALT, algumas já publicadas e outras que estão à espera de alguém que as desenhe. Quero dar liberdade ao artista para usar o traço dele, mas são histórias guionizadas, com indicações muito precisas. Há lá umas histórias que até estou a pensar em transformar em conto. Hei de fazê-lo, um dia. E depois, há sempre os projetos a longo prazo de acabar os pósteres portugueses. O outro, que é o projeto quase impossível, é o de fazer uma coleção de pósteres de filmes portugueses jamais realizados. Seria uma cronologia fictícia do cinema português, de filmes que não existem, puramente fictícios, mas baseados na nossa realidade. Por exemplo, um filme de 1978, inspirado no Star Wars, Os Lusíadas no Espaço. É este conceito. Fazer o póster e um texto sobre o filme, uma sinopse, um texto sobre o momento [do filme] que marcou as pessoas, como se fosse um universo alternativo.
E ponderavas lançar isso sem dizer que era ficcionado?
Mas a ideia é essa! O título da exposição seria FIlmes Portugueses Jamais Realizados. Teria a space opera dos Lusíadas baseada no Star Wars. Para os filmes dos anos 50, com monstros, teria o Barcelossauro, um galo de Barcelos inspirado pelo Godzilla. Há muita coisa que vai surgindo. Os [meus] livros vão aparecendo, apesar de tudo o resto que vai sendo adiado. As coisas vão-se fazendo e, quando dou por mim, tenho material para mais um livro. É saber conjugar o trabalho com os pósteres e os filhos. [risos]
Ainda não te passou pela cabeça fazer uma série de pósteres para crianças?
É mais uma que está nos planos para fazer. Uma série do Ghibli e outra da Pixar.
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Sandra Henriques
Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.