MONSTRA 2024 — Curtas do TerrorAnim

O terror regressou ao Cinema São Jorge na 23.ª edição do MONSTRA.

Todos os que estiveram na sessão do Terroranim, na noite de 11 de março, sentiram mais do que emoções fortes.


Marta Nazaré

O nosso livro está à venda!


Foram seis curtas-metragens que nos mergulharam no nojo, nos surpreenderam pelo cómico e nos desafiaram a entrar (a medo) em universos surreais e lendários.



Carne de Deus, de Patricio Plaza (2022, Argentina)

No México do século XVII — um período de evangelização em que as culturas locais foram perseguidas e reprimidas —, exerce-se violência, abuso de poder, abusos físicos e medo nos homens, mulheres e crianças indígenas em nome de Deus.

A cena inicial deixa-nos logo pouco à-vontade, quando um padre espanhol esbofeteia uma menina por ter roubado cogumelos e, depois, lhe toca nos lábios de forma lasciva. Mas não ficamos por aqui. O realizador prepara-se para levar esse desconforto ainda mais longe na segunda parte desta animação.

Quando o mesmo padre, agora enfermo, se vê obrigado a procurar a salvação nos métodos medicinais nativos que tentou em vão erradicar, entramos num universo psicadélico de homenzinhos de fogo e um Jesus mostrengo de olhos vermelhos que sai da parede e persegue o padre, engolindo-o de uma só vez. E aqui a curta-metragem atinge o seu ponto culminante num inferno de suor e asco, bem acompanhado por efeitos visuais e sonoros que alimentam a nossa inquietação. O fim não é de libertação, mas de desassossego. Cozinhando o fantástico com o sobrenatural, este é um «terror histórico» que rompe com tabus e que ficará connosco muito para lá do desejado.


O Rapaz e o Corvo, de Tudor Om (2023, Roménia)

Um corvo fere um rapaz que se encontra a passear num prado. Quando este tenta defender-se, atirando uma pedra ao animal, vários corvos aparecem em auxílio do agressor de duas asas.

Podemos interpretar esta animação breve como uma metáfora, em que os corvos são os medos que o rapaz tem de enfrentar. Se é forte o suficiente e sai vitorioso, ou se fracassa e é engolido por eles, é deixado à interpretação de cada um.

Estrada de Ferro Vermelha: No Calor, de Ellery VanDooyewert (2023, Canadá)

A história que este thriller de animação nos apresenta é no mínimo intrigante e joga muito bem com os contrastes entre frio e calor.

Um homem ferido e angustiado, que alega ser o Pai Natal, é detido pelo homicídio de uma menina. Sentado na sala de interrogatórios, pede aos agentes para falar com o inspetor Harris, alegando que este o conhece e o vai ajudar. No fim de contas, Harris está na lista dos «meninos bons», e o homem das barbas ajudou-o tantas vezes ao longo da vida que espera que o inspetor lhe retribua a cortesia.

Porém, quando o Pai Natal começa a contar o que alegadamente se passou no apartamento do 14.º piso, a história torna-se demasiado bizarra para os inspetores acreditarem nele. Entramos na eterna luta entre o bem e o mal, com uma suposta maldição da Baba Yaga, rival de longa data, em que nada é o que parece.

Esta comédia negra «americanizada», que abordou as origens turbulentas do Pai Natal de uma forma cómica e demasiado disparatada, é uma adaptação do conto com o mesmo nome, da escritora russa Anna Starobinets, apelidada de «rainha do terror russo». 

Curacanga, de Jean Lima (2023, Brasil)

Quando estamos perdidos de amor, a nossa mente turva-se, ficamos cegos e fazemos coisas sem pensar.

Baseada num mito popular brasileiro, esta história de suspense vai beber ao imaginário coletivo do Brasil. No Sertão da Bahia, nos anos 50, um jovem vaqueiro chamado Agostinho tem de enfrentar uma criatura sobrenatural terrível com o objetivo de vingar a sua amada Jaciara. A rapariga só seria sua por inteiro se o rapaz lhe trouxesse a cabeça da Curacanga, o bicho que lhe tinha assassinado a irmã mais nova.

Com uma fotografia a preto e branco em que só o sangue aparece com cor, o desfecho desta animação pode ser antecipado, de certa forma, pelos avisos do ancião que o jovem consultou para saber como matar a criatura. Não deixa, porém, de ser uma curta-metragem com uma história de amor trágica, poética, contada através de uma linguagem onírica e uma banda sonora intensa a cargo de Celo Costa. 

De Imperio, de Alessandro Novelli (2023, Portugal)

Era previsível que a curta de Alessandro Novelli se destacasse da concorrência, pela sua técnica e linguagem. Era mais surrealista do que de terror, se bem que uma coisa não invalida a outra, e um filme de animação salta sempre à vista entre filmes de imagem real. Mas, mais do que isso, é um filme que, apesar das figuras mais abstratas ou «impessoais» (uma vez que falamos de peças geométricas e estranhos gigantes), envolveu o público numa história que desconstrói as relações de poder entre quem manda e quem é obrigado a obedecer. No final, de que serviu a revolução da resistência? Terão de ver o filme para descobrir.

Caranguejo, de Piotr Chmielewski (2022, Polónia)

O caranguejo desta animação stop-motion vive com medo, dentro das quatro paredes de vidro de um aquário, na cozinha de um restaurante. A partir do momento em que o chef o retira do aquário, vemos toda a ação desenrolar-se a partir dos olhos de um caranguejo, num misto bem conseguido de tristeza e pânico. E tudo o que esta amigável criatura quer é escapar ao seu destino: não fazer parte da ementa.

O realizador Piotr Chmielewski é conhecido pela abordagem de questões sociais nos seus trabalhos. Nesta curta-metragem, está presente a preocupação em mostrar eventos históricos importantes, em plano de fundo, da perspetiva que menos esperamos, a dos animais que os testemunham. Realmente, a desgraça de uns pode ser a sorte de outros.