A autora Martina Mendes fala da sua estreia na antologia «Sangue Novo»

«Quero dar voz àqueles que não a têm»

O conteúdo murro-no-estômago de «Conta Comigo» contrasta com a personalidade bem-humorada da autora Martina Mendes. Escrevo isto para o caso de ainda haver dúvidas de que a separação entre autor e obra é possível.

A antologia Sangue Novo marca a sua estreia como autora publicada e, arrisco, a sua longa caminhada a «dar voz àqueles que não a têm» através do terror. Entre uma curta-metragem que ficou em fase de pré-produção, mas que  gostava de recuperar, e ideias para transformar cada um dos contos do Sangue Novo em episódios para uma série, o cinema de terror também seria uma área em que Martina Mendes não se importaria de dar cartas.

De Sandra Henriques

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Como e quando é que descobres o terror e te tornas fã do género?

Desde pequena, desde os três anos de idade, talvez. O meu irmão [13 anos mais velho] ficava a tomar conta de mim e punha-me a ver filmes [de terror]. Eu acho que é por isso que [ainda hoje] adormeço a ver filmes de terror. Por exemplo, nunca vi o Alien até ao fim! Ainda hoje, não consigo. Adormeço. O meu irmão sempre foi um grande fã de terror e então, de certa maneira, foi ele que me educou em relação ao género.

 

E a tua mãe sabia que vias filmes de terror com essa idade?

Não sei! A minha mãe ia trabalhar.

 

Mas correu bem!

Sim, correu! Não fiquei traumatizada.

 

E qual foi o primeiro filme de terror que viste até ao fim?

Os filmes do Sexta-Feira 13, por exemplo. Esses vi todos.

 

Qual é o teu truque para não adormeceres a ver um filme de terror, então?

Ver os filmes com alguém [que tenha medo], para se assustarem com o filme e não me deixarem adormecer.

 

E o primeiro livro de terror que leste, recordas-te?

Provavelmente Stephen King, mas já em adulta. Porque o terror não é sempre «só» terror, mistura-se com outros géneros. Há um livro infantil que [foi o que me despertou para a leitura], da Condessa de Ségur, sobre crianças mal-comportadas que eram castigadas, e desatei a chorar quando o li.

 

Isso pode ser considerado terror. Aliás, o teu conto «Conta Comigo» [no Sangue Novo] foi um murro no estômago para muita gente. Escreves terror desde quando?

Quando partilhei esse texto com [outros autores da antologia], não tinha a certeza se podia ser considerado terror. E, nessa altura, apercebi-me, então, de que escrevo terror desde os 12 anos. Gosto muito deste género de escrita como o do «Conta Comigo», desta mistura do terror com a psicologia e traumas do ponto de vista das crianças, das vítimas. Só que, até aqui, achava que era drama e não terror.

 

Podia ser, sim, mas o teu conto mexe com emoções muito fortes e muito primárias.

Sim, depois estive a ler outras coisas minhas e apercebi-me de que todas as minhas histórias são assim. Por isso, sim, posso dizer que escrevo terror desde os 12 anos, apesar de, na altura, não ler nada [do género].

 

Escrevias só por ti, então? Não tinhas ainda influências de outras obras?

Não tinha influências. Hoje em dia, leio os meus rascunhos e penso «ainda bem que comecei a ler!». Eram horríveis!

 

Mas isso é comum a todos os autores! Há mesmo textos que nunca vão sair da gaveta!  Consegues voltar atrás a esses contos e reescrevê-los?

Sim, quero voltar a essa história que escrevi aos 12 anos e terminá-la até junho de 2022. Até porque esta personagem do «Conta Comigo» é o melhor amigo de uma das personagens principais dessa história.

 

A dada altura, oferecem-te um curso de Escrever Terror. Porquê um curso de escrita? Achavas que o que escrevias não estava num nível que querias?

Acho que não tinha a ver com estar «no ponto», porque acho que isso nunca acontece. Estamos sempre a melhorar. Gosto de aprender novos pontos de vista. Tendo em conta o que escrevo, [penso sempre] «deixa-me aprender mais um bocado disto, deixa-me aprender mais um bocado daquilo», entendes? Faço imensos cursos de Psicologia só para perceber como é que funciona. Gosto de aprender, no geral.

 

E, a meio desse curso, vem o convite para fazeres parte de uma antologia. Estavas à espera?

Nem pensar! Estava a planear fazer o curso, aprender, enviar manuscritos para umas quantas editoras, receber uns dois ou três nãos, desistir da escrita durante seis meses, voltar à carga porque sou teimosa, continuar com o meu emprego. Mas nunca pensei que fosse tão rápido. E, mesmo depois do convite, pensei «isto e ótimo, mas agora escreve!».

 

O «Conta Comigo» já estava escrito?

A ideia já a tinha, sim. Já tinha escrito uma versão deste conto que começava com a frase «a cada três segundos, morre uma criança». E [na versão do Sangue Novo] isso acontece mais para o final.

 

Cada segundo que ele conta é um murro no estômago. Tens noção desse impacto? Tens receio da reação das pessoas a este conto?

Um bocadinho. E também tenho medo de que não o leiam da forma como eu o penso. Não sou [boa escritora] logo no primeiro rascunho, sou melhor na reescrita. Sei muito bem ver onde é que estão os meus erros. Primeiro, forço-me a escrever bastante, deixo repousar durante uma semana e, depois, vou contabilizar os erros.

 

Mas tens essa frieza. Consegues fazer essa distância entre escritor e escrita. Quantas vezes reescreves o mesmo texto até chegares a uma versão final que te agrade?

Não faço ideia. Primeiro, escrevo tudo à mão. Depois, volto a ler, risco e reescrevo, risco e reescrevo mais uma vez. Depois, passo para o computador, leio, imprimo e ainda faço mais uma reescrita. Gasto muito papel, confesso.

 

Mas chegas a um ponto em que dizes «chega»?

Sim, tem de ser. E, depois, dou a alguém para ler. Acho que dá sempre para mexer mais. Esse é o meu problema.

 

Já releste o teu conto depois de estar publicado na antologia?

Reli e pensei «isto devia estar escrito de outra forma».

 

O que é que não gostaste que reescrevias?

Acho que há ali algumas coisas que não se entendem bem. Nunca estamos contentes! Acho que podia estar mais específico, mas, por outro lado, também sei que, se isso acontecesse, perdia a sonância, e aí deixo estar.

 

Como estudaste Literatura na faculdade, sabes que a interpretação do leitor nunca vai ser igual à intenção do autor enquanto escrevia o texto. Estás preparada para isso, para a eventualidade de haver várias interpretações para o teu texto?

Perguntei aos meus amigos que já leram se entendiam o final do meu conto. Uns interpretaram como suicídio, outros como uma fuga (o que, de certa maneira, também é). Pode ser uma interpretação possível.

 

Disseste na apresentação do Sangue Novo que os teus contos são baseados nos cabeçalhos de notícias. Fazes isso para todos?

Para todos, sim. Porque a temática é o meu género. Gosto [de ver as coisas] do ponto de vista das vítimas. Porque as notícias, hoje em dia, são tão frias, tão banais. Eu quero dar voz àqueles que não a têm, sobretudo se forem crianças.

 

Como é esse processo? Lês só as «gordas» ou o conteúdo também?

Leio a notícia também. Apesar de, na maioria das vezes, não ligar muito aos detalhes, porque são basicamente as respostas [às perguntas jornalísticas]: quem, como, onde, quando. E o porquê sou eu que invento.

 

E, idealmente, queres sempre colocar-te do lado da vítima?

Não. Neste conto [«Conta Comigo»], pensei em pôr-me do lado do outro, mas não estava a conseguir normalizar aquilo e tive de desistir. Mas, daqui a uns anos, quero tentar. Com este, mentalmente, não estava a conseguir.

 

Achas que o terror português é capaz de vender?

Acho. As pessoas é que não sabem onde é que ele anda. E é o tabu  que existe também à volta do terror. Porque a maioria das pessoas tem ideia de que a literatura de terror é só sangue por todo o lado, pessoas desmembradas, sem qualquer estilo ou cuidado literário. É só morte.

 

O que faz lembrar aquela pergunta na apresentação do Sangue Novo sobre se os autores se sentiam afetados psicologicamente por escrever terror. Uma pergunta que nunca fazem a autores de outros géneros. Tens consciência de que isso vai ser uma luta?

Eu acho que quem fez a pergunta sabia que respostas e reações ia obter dos autores. Acho que foi uma provocação consciente. Compete-nos a nós, agora, mostrar e provar que o terror existe [em Portugal] e que é literatura.

 

A dada altura, escreveste uma curta-metragem de terror, mas que acabou por não passar da fase de pré-produção. Como é que ficou esse projeto?

[A curta] está escrita, mas ainda não está fechada. A ideia [para o filme] surgiu-me quando estava no Soajo, e, de imediato, comecei a procurar por possíveis locais de rodagem. O que me impactou mais na localização foi o silêncio absoluto. Não se via ninguém, os cães deitados no meio da rua nem levantavam a cabeça para ver quem se aproximava. Passavas por eles e nem te ladravam! Foi um projeto colaborativo, escrito  com algumas divergências criativas que, na minha opinião, levariam o filme a ficar demasiado parecido com o que já se fez lá fora.

 

E achas que o cinema de terror português, para ter sucesso, tem de ser parecido com o que se faz lá fora?

Os fãs de terror em Portugal mais facilmente vão ao cinema ver filmes estrangeiros do que coisas feitas cá. A forma de atrair público é, muitas vezes, fazer filmes de terror portugueses parecidos com as produções estrangeiras. O cinema português ainda não é mainstream, é para um público muito específico.

 

E que expectativas tens para o Sangue Novo? O que é que achas que pode acontecer a seguir?

O meu sonho com a antologia era adaptar cada um dos contos a episódios de televisão, para um serviço de streaming como a Netflix, a HBO, ou a Apple TV. Seria um desafio enorme, porque há ali textos muito difíceis. Há coisas que se podem ganhar, mas há coisas que se vão perder. E, claro, tens de ter sempre em conta o ponto de vista do autor, que é sempre a parte mais complicada. [Quando mexes num texto para ser outra coisa qualquer, é sempre mais complicado]. Por exemplo, com a tradução para inglês do «Conta Comigo», para a futura versão inglesa do livro, já estou a encontrar obstáculos que tenho de perceber como ultrapassar sem alterar o sentido do texto.

 

É o receio de que alguma coisa se perca na tradução?

Sim, por isso prefiro que seja eu a traduzir este conto.

 

Vês-te a publicar uma edição de autor no futuro, é uma coisa que faz parte dos teus planos?

Não, porque é uma coisa que nunca vai estar totalmente pronta se for para publicar em edição de autor. Quero sempre que passe por uma editora, até porque eu me conheço. Sei que, daqui a uns anos, ia pensar no texto e não gostar dele, e ia arrepender-me de ter optado por uma edição de autor.

 

Imagina, então, que uma editora mostra interesse em publicar-te. Romance ou colectânea de contos?

Romance. É o tal texto que escrevi com 12 anos. Até escrevi três romances sobre a mesma personagem em situações diferentes. Mas, se fosse a publicá-los agora, seriam só dois. E a escrita precisa de muito trabalho, porque tinha 12 anos quando os escrevi pela primeira vez. Comecei logo a escrever romances, nunca contos ou textos mais curtos. Tenho algum receio de agarrar no texto agora, por pensar que se aproveita menos do que o que estou à espera. Já cheguei a estar um ano sem escrever, mas a história está sempre lá. Por isso é que acho que a história tem de sair, especialmente agora que o «Conta Comigo» trata de uma das personagens que fazem parte dessa história. [São histórias que falam muito] de violações, de rapto, de tráfico infantil, de violência doméstica, por isso é que acho que têm mesmo de vir cá para fora. Para mim, é essencial dar voz a essas personagens [esquecidas] através do terror. É muito difícil, mas é desta maneira que quero escrever, para as pessoas sentirem que é esta a dor das crianças reais, e que não estamos a dar-lhes atenção suficiente.

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