O primeiro filme de ficção português foi de terror

Os Crimes de Diogo Alves (1911)

De Cláudio André Redondo

 

Quando falamos dos mais infames assassinos de Portugal, o nome de Diogo Alves é incontornável. Talvez seja pela quantidade de crimes violentos que cometeu (três confirmados e que levaram à sua captura, mas especula-se que terão sido mais de 70), pela forma inusitada como os executou (Alves assaltava e atirava as suas vítimas do topo do Aqueduto das Águas Livres), ou talvez pelo facto de a sua cabeça continuar preservada em formol, de sorriso sereno, no museu da Faculdade de Medicina de Lisboa. Apesar de os seus crimes terem sido cometidos há quase 200 anos, a sua história continua viva, sobrevivendo através de conversas populares, artigos, livros e documentários.

Não é por isso estranho que, quando a produtora e estúdio cinematográfico Portugália Film pensou em fazer um filme de enredo, se tenha inspirado na história deste terrível assassino, que voltara a ser tema de conversa após o sucesso dos folhetins Criminosos Célebres Portugueses,  acabados de sair.

O  filme, porém, precisou de duas versões para ver a luz do dia. A primeira, de 1909, realizada por João Freire Correia e Lino Ferreira, acabou por ser um projeto inacabado, pois alguns dos atores da companhia de teatro do Príncipe Real tiveram de abandonar as filmagens para seguir numa digressão no Brasil. A segunda acabaria por se concretizar devido à insistência de João Freire Correia, que convidaria João Tavares para o realizar, depois de este ter participado na primeira como ator e assistente de realização.

Tavares optou por atores secundários e, guiado pela sua paixão pela nova arte do cinema, levou o projeto até ao fim. O realizador mostraria uma atenção ao detalhe e à estética muito superior ao que se fazia na época, tirando várias fotos aos cenários para ver o que resultava melhor na imagem antes de filmar e repetindo várias vezes os diferentes planos para poder escolher o melhor. Dois métodos comuns hoje em dia, mas que praticamente não existiam na altura.

O filme estreou em 26 de abril de 1911, no teatro da Trindade, tendo recebido uma publicidade nunca antes vista. Ao mesmo tempo, o filme estreou a venda de bilhetes em Portugal. O sucesso foi tanto que as oito sessões diárias, que se realizavam das 14 h às 22 h, estavam sempre esgotadas.

João Tavares diria mais tarde que o sucesso tinha causado muitas invejas, o que levou a que o filme fosse retirado. Outras fontes dizem que o dono do Trindade decidiu retirar Os Crimes de Diogo Alves de exibição com receio de afastar a clientela mais burguesa daquele espaço. Esta versão talvez seja corroborada pelo facto de ele mesmo o ter voltado a colocar em exibição no recinto O Paraíso de Lisboa, contando esta sala com o atrativo de ter atores a falar por detrás da tela durante a sessão, dando voz às personagens deste filme mudo.


O filme seria ainda exibido no Chantecler dos Restauradores, pela mão de um novo proprietário, onde seria proibido pela polícia com o pretexto de ter uma influência nefasta sobre a «clientela de marginais e excêntricos» que frequentavam o local, podendo levá-los a cometer crimes.


A proibição terminaria com a censura das cenas mais chocantes, sendo a de maior destaque a final, onde se vê o enforcamento do vilão, cena essa que só voltaria a ser acrescentada ao filme aquando do seu restauro, quase cem anos depois, em 2002.

Não deixa de ser interessante que a primeira temática usada num filme de ficção em Portugal tenha sido a história de um criminoso tão marcante, usando um vilão como a primeira personagem do cinema português. E não menos fascinante o sucesso que essa história teve. Ao mesmo tempo, é também interessante verificar que o filme, apesar do seu enorme sucesso, não só foi retirado por não ser aparentemente digno das classes mais altas como foi ainda censurado por medo da sua influência nas mentes mais fracas. Isto mostra-nos que o terror sempre foi um género capaz de encantar e entusiasmar uma grande parte da sociedade, enquanto que a outra parte há demasiado tempo ostraciza o género, considerando-o indigno e uma má influência.

É também interessante ver que, quase 111 anos mais tarde, pouco mudou. Talvez esteja na altura.

Factos interessantes sobre este filme:

É um dos primeiros filmes de que há registo, em todo o mundo, com um vilão como personagem principal.

Rodado em três semanas com um custo total de 200 000 réis (cerca de 1 €). João Tavares recebeu 14 000 réis (menos de 0,10 €) por semana e mais tarde foram-lhe dados 50 000 réis (cerca de 0,25 €) como reconhecimento pelo seu trabalho

Antes deste filme, a Portugália Film tinha feito uma primeira experiência no género dos filmes de enredo: O Rapto de uma Actriz, sketch que fazia parte da revista Ó da Guarda. Depois do primeiro ato, o público era informado de que a atriz principal tinha sido raptada, mas que não havia motivos de preocupação porque a polícia já estava a tratar do assunto. Descia então uma tela onde se via que a atriz tinha afinal feito uma escapadela romântica e terminava com ela a voltar ao palco em carne e osso. Não existem cópias sobreviventes deste filme.

O filme conta com oito cenários interiores, e vários exteriores, com destaque para a passagem no local dos crimes no Aqueduto das Águas Livres, que hoje se encontra vedada ao público.

João Tavares foi ainda convidado a realizar mais um filme, que não terminou por falta de dinheiro. Só voltaria a estar ligado ao cinema como ator secundário no filme Lobos da Serra e terminou os seus dias velho e praticamente esquecido por todos.