José Santiago, curador do Passos no Escuro, em entrevista sobre este projeto no Porto

«Não há nada que me dê mais gozo do que pessoas a bater palmas a meio de um filme»

Em 2019, o amor de José Santiago pelo cinema de género, e a ausência de um evento no Porto a ele dedicado ao longo do ano, levou-o a criar o Passos no Escuro. Quase três anos depois das restrições da pandemia, os filmes de culto estão de volta ao cinema Passos Manuel, duas vezes por mês.

Na passagem pelo Porto, a Fábrica do Terror aproveitou para conversar com o José sobre o seu papel de curador do Passos no Escuro, o seu gosto pelo cinema de terror e o que é ainda preciso fazer para levar mais longe o terror que já é feito em Portugal.

De Cláudio André Redondo

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Como é que começa o teu amor pelo cinema, recordas-te?

Sei exatamente quando é que começou, só não sei a hora [risos]. Começou quando eu tinha 8 anos e o meu pai me levou pela primeira vez ao clube de vídeo. Fiquei maravilhado com aquelas capas. E fiquei maravilhado com as capas de um sítio que o meu pai disse «ali, não podes escolher». Passei anos até poder escolher naquele sítio ali ao lado, que era o dos filmes de terror. O clube de vídeo era uma coisa muito interessante, porque não sabias nada acerca do filme, não ias ao IMDB ver qual era o rating, não ias ver a sinopse, não ias ver quem é que o tinha realizado, embora isso estivesse lá. Mas ainda não tinhas as revistas ou as fanzines que poderia haver na época. Julgava os filmes pela capa, levava e era uma descoberta. E se calhar, isso tornava-nos um pouco mais tolerantes em relação aos filmes, porque pagávamos aquele filme, que tínhamos escolhido, e estávamos mais abertos a qualquer falha que ele pudesse ter. Víamos alguma qualidade de redenção nesses filmes porque já tínhamos investido tanto neles. Agora, a coisa é um pouco mais descartável, porque se vê no streaming. O streaming é ótimo, o fácil acesso a cinema é ótimo, mas torna a experiência mais descartável no sentido de dizermos logo «o filme é uma porcaria», sem ver algumas qualidades que o possam redimir ou alguns pontos bons. Se calhar, a coisa depois passa para termos como «mas vale a pena», «porque é que vale a pena», «vê-se». Ou se gosta ou não se gosta. Mas acho que foi isso, o investimento que se tinha na ida ao vídeo clube, na escolha do filme. Às vezes, passava uma hora só a ver a capa, a ver a história que estava atrás e as imagens, porque eram a única fonte de informação. Foi esse investimento versus o resultado final que me levou a adorar o cinema e a querer saber mais coisas sobre ele. E se calhar, por ter de fazer mais algum esforço para saber coisas acerca dos filmes. Sei que começou exatamente aí, aos 8 anos, quando o meu pai me levou ao clube de vídeo.

 

Tu só és consumidor? Não estudaste cinema?

Nada! [risos] Nem tenho pretensões de fazer cinema. Gosto de consumir, gosto de ver e gosto de vibrar com o cinema, mas acho que não tinha jeitinho nenhum para fazer um filme, nem tenho aspirações a isso, embora o meu sonho sempre tenha sido ser realizador de cinema. Mas é como aqueles sonhos dos putos que querem ser astronautas. Gosto da ideia de não poder ficar desencantado com o cinema e acho que, se começasse a fazer filmes, ou se tivesse enveredado por essa área, ficaria mais desencantado com o cinema. Começava a pensar mais na mecânica do que faz um filme do que propriamente receber a emoção que recebo de um filme só na sala de cinema.

 

Quantas pessoas integram o projeto Passos no Escuro?

Sou só eu! [risos] Tenho alguma ajuda de amigos, pontualmente, para fazer algum tipo de arte gráfica, como o Eduardo Vasconcelos e o João de Almeida que construíram a imagem do projeto, mas basicamente sou só eu a fazer isso.

 

E como é que surge o projeto?

Eu já frequentava o Passos Manuel há algum tempo e tinha amigos que eram lá DJ. Via que o Passos Manuel e o auditório não estavam a ter muito uso, ou o uso que tinham era pontual, e gostava de ter alguma presença. Até então, nunca tinha programado nada de cinema, sabia que tinha uma apetência pelo cinema de géneros, ou o cinema de culto, de terror, mas não sabia como é que se faziam as coisas.


Em conversa com o dono do Passos Manuel, Becas Xavier, disse que «gostava de fazer aqui uma coisa mais regular, mas tinha de ser diferente do resto que se faz na cidade». A cidade tem uma grande oferta de cinema independente, mas não tinha uma grande oferta de cinema de género.

Achei que era aí que íamos marcar a diferença: passar filmes que não estamos acostumados a ver na grande tela e fazer disso a diferenciação do espaço. Foi assim que começou mais ou menos a ideia. Fiz a proposta, o Becas gostou e começámos a fazer de forma experimental mês a mês. Entretanto, correu bem, começámos a fazer todos os meses até à pandemia [em 2020]. [Durante a pandemia, no verão] fizemos algumas sessões, mas não resultaram tão bem. Decidimos voltar agora [em 2022] quando as coisas ficaram mais calmas, já depois da vacinação. Continuamos não com tanta força. Antes, estávamos a fazer semana a semana, mas agora estamos a fazer de 15 em 15 dias. Até é o melhor formato porque dá uma ideia de cinema-evento, não é uma coisa que está sempre a acontecer. De 15 em 15 dias, há aquele filme e podemos ter espaço para abordar mais coisas sobre ele, mesmo nas redes sociais e onde quer que seja. Dá para fazer um build up engraçado para aquela sessão.

 

A adesão tem sido boa?

Tem. Há uns filmes que têm mais do que outros, mas nunca baixa mais do que 50 espectadores, o que, por sessão, não é muito mau. Aliás, é bastante bom, tendo em conta a média dos outros sítios. Vemos não só caras novas como público recorrente, o que é ótimo. Ou seja, estamos a conseguir angariar pessoas que querem fazer parte. Era giro também fazer daquilo uma comunidade e ponto de convívio. Gostávamos de poder levar bebidas para a sala [de cinema] porque cinema é cinema, mas há outros géneros de filmes que se prestariam a isso: um comportamento contagiante, onde as pessoas reagem, de comunidade, onde podem bater palmas a meio do filme. Isso é o que mais gozo me dá, quando as pessoas já conhecem o filme e sabem o que vai acontecer naquela cena e já estão a reagir antes. Depois, há uma catarse de palmas quando as coisas acontecem. É isso que eu gostava de transmitir no Passos no Escuro. É essa maneira de ver cinema que eu acho muito diferente e que, se calhar, no grande ecrã, só se vê com um filme da Marvel. Nas salas de cinema mais pequenas e com outro tipo de filmes, isso não acontece. No cinema de culto, por ter já o conhecimento dos fãs, também há esse tipo de checkpoints: aqui vamos reagir, aqui vamos celebrar aquilo de que nós gostamos.

 

Portanto, existem fãs!

Eu acho que existem fãs! Pelo menos, nas redes sociais, são muito vocais. Para sair à rua, já é pior, mas isso também é um mal de que todos sofremos. Gostamos das coisas, mas às vezes há uma certa letargia para chegar aos sítios. Mas sabemos que o público existe. Se não existisse, não havia sessões com cento e tal pessoas, portanto, eles estão lá e gostam de ir ao cinema. Eles e elas, porque é um público muito metade/metade, e nem sequer o conseguimos caracterizar em tribos sociais, porque vemos desde o metaleiro até à pessoa que via aquele filme quando era puto, que voltou ao cinema para ver esse filme e diz «isto é do meu tempo». É uma coisa maravilhosa ver essa junção de pessoas. O cinema de género também faz isso, esse tipo de junção de públicos. São os que estão a descobrir e os que querem recordar, e isso é um conjunto muito fixe de se ter. Porque lá está, se houver esse sentido de comunidade e esse sentido de tertúlia, depois pode haver troca de ideias e de experiências, o que depois pode ir para o digital e ganhar vida própria. Acho que é uma maneira muito diferente de falar de cinema sem ter algum pretensiosismo, mas com alguma imersão. Ou seja, não estar a falar de significados, de coisas maiores, que existem no cinema de género e no cinema de terror, mas falar da diversão e partilhar um momento imersivo. Naquela altura, ou se estão a contorcer com alguma coisa nojenta ou se estão a divertir com alguma coisa. Gosto de ver como isso acontece espontaneamente, sem dar qualquer dica. Eu, no início, dou só umas trivialidades acerca do filme, de contexto. Há muitas pessoas que não conhecem o filme, mas também há muitas pessoas que já o conhecem, e é engraçado que, no final, há muitas caras de surpresa de pessoas que não estavam tão abertas a esse tipo de cinema. Talvez já fossem um público Passos Manuel, que ia lá para o Porto/Post/Doc, e que chega ali e é confrontado com aquilo que não costuma ver. Mas, com o contexto certo e com a abertura da reação do restante público, tem outra perspetiva desse tipo de cinema.

 

Fazem sempre uma introdução do filme antes.

Sim. Tento não me alongar muito porque as pessoas estão ali para ver o filme, e, sempre que possível, tento ter alguma surpresa,  como uma mensagem do realizador a introduzir. Gosto também de ter um ator ou uma atriz que entra no filme a mandar uma mensagem vídeo a receber toda a gente na sala. Já tivemos a mensagem em vídeo do Brian Yuzna, o produtor do Reanimator. Também tivemos a Barbara Crampton, que é outra atriz desses filmes de culto. Tivemos o Lloyd Kaufman, da Troma.

 

E eles aderem a isso?

Eles aderem e acham piada que as coisas estejam a ser mostradas em Portugal, que não é um sítio onde se façam muitas [dessas] coisas, embora o Fantasporto tenha uma projeção enorme, e muitos deles, especialmente os mais antigos, já tenham vindo ao Fantasporto para qualquer tipo de prémio ou de mostra de filmes. Mas não estão acostumados a que os filmes deles passem em Portugal, acham muita piada e recebem-no com muita efusividade. A Barbara Crampton, por exemplo. Estávamos mesmo a meio do processo de vacinação em outubro e a primeira coisa que ela disse foi «Portugal, muito bem, estão na frente da corrida da vacinação, é assim que deve ser» [risos]. Portanto, há essa abertura, é com muita surpresa que eles sabem que aquilo que fazem tem alguma ressonância em Portugal e gostam disso. Agora, para a próxima quarta-feira [13 de abril], vamos ter um filme do Lucio Fulci, Noite dos Mortos Vivos, e também contactámos um ator. Eu pensava que era o último ator que iria aceitar, porque ele costuma ser bastante crítico do trabalho que fez quando era mais novo — dizia que aquilo era mais artístico —, mas ele também aceitou logo.

E filmes portugueses de terror? Existem?

Eu gostava que existissem mais, o que há muito são curtas. Há muitas curtas-metragens e isso é normal, porque o orçamento não está lá e vive-se muito de apoios. E o público também não ajuda. Dá-se os apoios que se tem a dar, muito ou pouco, não me cabe a mim decidir, mas em última instância quem traz o retorno — e tem de se falar disto como um negócio — é o público. O público está a ir cada vez menos às salas de cinema e ainda há um preconceito muito grande em relação ao cinema português.


Felizmente, o MOTELX e o Fantasporto têm sido um meio para as curtas portuguesas serem lançadas, especialmente as curtas de género, e tem havido cada vez mais promoção e produção para chegar a esses festivais.

Os prémios também são interessantes e, no mundo globalizado, isso é cada vez mais uma catapulta para estes novos autores irem lá para fora e fazerem o que fazem e muito bem. Nós, no Passos no Escuro, vamos aos poucos e poucos tocando nisso. Por exemplo, o primeiro — e foi a única longa-metragem que passámos de terror em português — foi o Mutant Blast, do Fernando Alle, mas também teve um efeito engraçado. Nas salas de cinema de centros comerciais, não resultou muito bem, mas nós tivemos 120 ou 130 pessoas numa sessão, por isso não sei se também não haverá alguma falta de vontade em comunicar e promover algum tipo de filmes. Eu sei que, por exemplo, havia filmes que tinham cartazes enormes nos centros comerciais e outros que não tinham qualquer expressão. É real que esse tipo de dinheiro e esse tipo de produção também vêm das distribuidoras, mas, quando não as há, é muito difícil chegar aos olhos do público. Depois, ainda é preciso ultrapassar essa barreira do «será que o público quer ver um filme português e não vai olhar com desconfiança, e não se vai rir no mau sentido». Nós fazemos o que podemos e, durante o mês passado [março], onde exibimos alguns filmes da Troma, até foi por iniciativa deles. Fomos contactados por autores portugueses que tinham curtas dentro do serviço de streaming da Troma. Nós exibimos as curtas deles antes de cada filme e tentamos fazer esse tipo de divulgação. Especialmente curtas. Longas-metragens tivemos mais uma proposta, mas não chegou a acontecer por causa da pandemia. Mas também estamos abertos a propostas para que isso aconteça, porque não só estamos ali para criar a experiência de nostalgia, de comunidade, mas também para divulgar alguma coisa que não é exibida noutros sítios e que tem uma voz bastante válida para ser mostrada.

 

Isso, por acaso, faz-me lembrar uma questão. Quando estudei cinema, isso era muito falado, que os apoios, quando são pedidos em Portugal, nunca incluem uma parte para a publicidade, enquanto em Espanha os apoios dados têm de incluir uma parte de publicidade. E eu sinto muito que falta isso. Porque há filmes que são muito bons e nunca ninguém ouviu falar deles.

E isso, em Hollywood, é decisivo. Mesmo em grandes produções, nunca se conta um orçamento sem a parte do marketing, que é quase 50% do orçamento, uma coisa absurda. Aqui, não sei como funciona no concurso, mas isso devia estar presente na proposta. E se está, também não sei se é tido em boa conta por quem está a fazer o julgamento do concurso, no sentido [que acham que] estão a pagar a produção, não a promoção.

 

Sim, mas eu sinto que é algo que falta.

Muito mesmo. Há muitos filmes que agora estão a ter uma nova voz e há muita gente a descobrir filmes portugueses através dos serviços de streaming. Eu sei que houve um grande salto quando a HBO chegou a Portugal, porque tinha muita representação de filmes portugueses. E havia muita gente a descobrir filmes portugueses na HBO e na Filmin. Isso é só porque lhes aparece à frente, porque lhes é sugerido, porque de outra maneira [não acontecia]. Há sempre aquela luta entre o que o público conhece e gosta e aquilo que o público age para ver e para conhecer e para interagir. E é só nesse diagrama de Venn que se pode trabalhar, mas é uma inconstante. Pode fazer-se o melhor, por isso a promoção é um grande passo que falta.

 

E que dificuldades encontraste para montar o projeto Passos no Escuro?

Uma enorme dificuldade — já agora, não sei se este é o fórum certo [risos] — é conseguir os direitos dos filmes. Conseguir chegar a quem de facto tem os direitos destes filmes é das coisas que mais trabalho me dá em todo o processo de escolher um filme e exibi-lo no Passos no Escuro. Em primeiro lugar, porque em Portugal não têm representação. São filmes que deixaram quase de ter distribuição desde o tempo que era analógico, em que havia editoras de VHS. Essas editoras já não têm os direitos. Temos de ir lá fora e, mesmo assim, é muito difícil saber qual é a distribuidora que neste momento tem os direitos. Porque uma tem os direitos para video on demand, outra tem os direitos para cinema, outra tem os direitos para DVD e está tudo por todo o lado. E é uma das grandes dificuldades — chegar até aos autores ou até quem detém os direitos e consegui-los para fazer a programação. Até lá, estamos muito neste balanço de «isto é o que eu quero e isto é o que eu consigo, como é que vamos fazer isto acontecer».


Os preços desses direitos ainda são elevados e isto não deve ser assunto tabu, acho que é um assunto que se deve falar, porque não há nenhum lado a ganhar com isto. Ou seja, quem tem os direitos, ao pedir uma soma avultada, pode perder o interesse de quem quer exibir. Quem compra esses direitos, depois, vai ter uma sessão que não lhe cobre sequer os custos dessa sessão, portanto também já não vai pedir mais filmes, porque a atividade cessa.

Há aqui um meio-termo que deve ser alcançado. Algumas distribuidoras sabem isso perfeitamente e têm modelos adaptados, mas há outras que são intransigentes. Não é por terem mais exibições do que outras, é uma questão de casmurrice. É legítimo, cada um tem a propriedade intelectual que tem e faz dela o que quiser, mas essa é uma das grandes dificuldades para continuar a ter não só produção, mas para fazer com que isto não se torne uma coisa penosa, que seja um fardo no bolso não só da casa, mas também de quem faz.

 

E tudo isto foi um processo novo para ti?

Eu descobri isto da pior maneira. A primeira coisa que eu disse foi «OK, o primeiro mês do Passos no Escuro vai ser Dario Argento. Todas as semanas, um filme do Dario Argento». E o Becas perguntou-me «então e os direitos, como é que os consegues?». E eu não fazia ideia de que tinha de pedir os direitos; pensava que, como tinha os DVD e os Blu-rays, era só passar [risos]. [Depois percebi] que tinha de pedir autorização, falar com o IGAC, pedir mil e uma autorizações. Quando comecei esta pesquisa [é que percebi] em que buraco me tinha metido. [risos] Felizmente, ele é um porreiraço, e ele próprio cedeu gratuitamente os direitos. Mas a partir daí, é mesmo esse o processo. Muita pesquisa de Internet, muitas mensagens privadas com pessoas que trabalharam como assistentes de produção de um filme de há 30 anos para saber quem é que tem os direitos agora. É um trabalho arqueológico, e é mesmo esse o processo mais árduo em termos de tempo consumido.

 

E tens tido reações negativas ao facto de estarem a passar filmes de terror?

Não tive até agora. Há alguma estranheza no próprio Passos Manuel. O Becas e toda a equipa do Passos Manuel achou aquilo um pouco estranho, mas depois de estar exposta aos filmes em si [mudam a] ideia que têm do filme. Há muito essa diferença, o filme em si e a ideia que se tem dele. Tudo mudou, e mudaram completamente esse preconceito, se é que o havia, porque também foi da iniciativa deles voltar agora depois da pandemia. Podiam ter aproveitado o interregno para dizer «pronto, então olha, foi bom enquanto durou», mas não. Em outubro, disseram «então, vamos fazer o Halloween e fazer isto de novo?». E fizemos o Halloween com o Reanimator e foi uma casa cheia, foi ótimo. Mas lá está, é o Halloween, as pessoas estão todas cá fora. Mas, se foram ao Reanimator, é porque o público está aí. Só tem é de sair de casa e apanhar frio e chuva. [risos]

As sessões do Passos no Escuro ocorrem quinzenalmente às quartas-feiras e têm início às 22 h. Os bilhetes podem ser adquiridos no local, no dia da exibição.

O que é que tu achas que faz um bom filme de terror?

Isso é uma pergunta tão complexa que não dá para responder de uma forma direta. Há vários géneros de terror, alguns são feitos pelo balanço muito bom entre o humor e o terror. São duas coisas muito semelhantes, que provocam reações audíveis e que vivem muito de timing. Quando elas se conjugam muito bem, é um trabalho artesanal magnífico de se ver e é dos mais imersivos em termos de reação vocal do público. Se queremos falar da experiência montanha-russa que pode ser um filme de terror, esse é o melhor balanço e a melhor experiência. Depois, há outros que também têm uma gestão de timing muito diferente, dos silêncios e da tensão, e eu acho que os filmes de terror vivem muito disso. Do crescendo da tensão que depois tem um release, uma explosão, ou daquele que está sempre nos altos e baixos do humor e do terror que nos assusta, mas depois reconforta e está ali como uma mantinha, como quem diz «está tudo bem, não há problema, tu consegues chegar até ao fim». Mas são leituras diferentes do terror e são maneiras diferentes de ver o terror. Há terror que simplesmente nem sequer está dentro do subgénero que normalmente se associa ao terror. Não há monstros, assassinos, nada paranormal, mas às vezes há terror que advém do dia a dia ou de circunstâncias sociais e que é igualmente claustrofóbico, que pode ser igualmente cinema de género. Por isso, dizer o que faz um bom filme de terror não sei. Se calhar, o que faz um bom filme de terror é a reação. Pode-se medir pelo público aquilo que faz um bom filme de terror, porque é a génese do género, causar reação, causar coisas, e mexer connosco, e criar algum desconforto ou criar algum burburinho dentro de nós. Se isso se consegue com assassinos ou com alguém a ir preencher o IRS, ótimo. [risos]

 

Isso faz-me lembrar a série que está no Filmin, Inside No. 9, com humor e terror super bem misturado.

É desse terror que eu estava a falar. Há coisas que simplesmente não caem no género ou nas convenções do terror, mas há desconforto. Pode ser num jantar só. Como há um episódio onde há um jantar e é uma coisa completamente claustrofóbica, e cria ali uma tensão enorme. Ou pode ser um assassino, por isso não há uma única definição.

 

E já agora não sei se viste o Miss Violence, um filme grego. Começa como uma história perfeitamente banal, de uma família, e começas a perceber logo ao final do primeiro minuto que aquela família não é normal. E vai piorando, e piorando, e piorando. Eu tive de parar o filme, pausar, respirar e ver o resto. Esse filme foi dos mais pesados que já vi.

A Grécia tem alguns exemplos de filmes pesados. Tem o Yorgos Lanthimos com o Dog Tooth e outros filmes, tem criado aí uma escola de tensão. Eu não sei que escola e que eles têm acerca do storytelling, mas é uma escola muito particular acerca do terror, e cai muito nisso que estás a descrever. Há bocado, estava a falar do terror de preencher o IRS porque ontem fui à antestreia do filme Everything Everywhere All at Once, que é um filme sobre a crise de meia-idade de uma mulher, mas que mistura multiversos, e tudo é despoletado porque ela está a fazer o IRS da lavandaria que tem, é aí que começa a aventura toda. Por isso é que achei interessante essa abordagem, e o terror está em todo o lado. Pode abordar os assuntos mais mundanos de uma maneira onde as coisas são extrapoladas, podemos ver o absurdo daquilo que está a acontecer na realidade e também podemos ver como é que as coisas podem acontecer se não fizermos algo contra elas.


Acho que é interessante haver uma visão social dentro do terror. O George Romero fazia isso muito bem. O Tobe Hooper fazia muito bem isso também e agora o Jordan Peele está a fazer isso.

E muitos outros. Acho que é uma boa visão. Acima de tudo, acho que é a visão que está a trazer o terror mais para o mainstream e não tenho quaisquer problemas em que o terror seja mainstream e que aquilo de que eu gosto seja visto por muitas pessoas. Há um poço de pessoas que acha que «não, isto era meu, isto já não pode sair para o mundo», mas acho que é muito melhor quando toda a gente sabe do que é que falamos. E mesmo quando uns não gostam, que tenham o conhecimento de causa para dizer que não gostam. Desde que as coisas sejam vistas, acho que é o essencial.

 

Sim, sem dúvida. No Passos no Escuro, passam sempre curtas antes do filme?

Normalmente, é só o filme. Caso haja oportunidade, exibimos uma curta antes, ou essa surpresa do ator ou do realizador que manda uma mensagem.

 

Agora, estava a lembrar-me de como se fazia antigamente, nas sessões de cinema. Passava o filme série B e depois passava o principal.

Eu gostava e tentei fazer isso durante algum tempo. Na sessão de Halloween, fiz. Contactei a AGFA, uma empresa sem fins lucrativos que restaura filmes em película e digitaliza, e pedi para eles arranjarem uma compilação de trailers muito grindhouse, muito série B, para passar antes do filme, para ter a experiência completa de ir ao cinema. Ver o Reanimator e, antes disso, ter trailers para filmes que [os espectadores] não vão ver, mas que são filmes reais e absolutamente escabrosos e divertirem-se eles próprios com os trailers. Às vezes, a própria voz de quem está a narrar o trailer já tem uma piada incrível, e a maneira como se vendiam os filmes também é muito diferente do filme em si. Também há essa parte formativa. O que eu costumava fazer era passar o trailer do filme da próxima sessão antes do filme daquela sessão. Deixei de o fazer porque os trailers funcionam melhor isoladamente do que para promover um filme. Não sei se já repararam, os trailers antigamente mostravam tudo, mostravam as melhores cenas, quem morria. Eu não quero isso. Eu quero que a surpresa esteja no filme e por isso deixei de mostrar o trailer. Até gostava de ter uma sessão só de hora e meia ou duas horas de trailers, mas não sei se o público aguenta. Mas vamos aos poucos introduzindo a ideia, e depois vê-se onde é que as coisas vão chegando.

E para onde é que este projeto vai? Qual é a perspetiva futura?

Não faço ideia para onde é que isto vai. Eu sei o que é que eu gostava de fazer, que era 24 horas de filmes. Gostava de fazer isso porque acho que é esse tipo de eventos, que não são festivais normais, que pode levar a que haja uma interação diferente entre o público. Isto pode fazer pouco sentido, mas acho que são os eventos fora do comum que mais trazem as pessoas. E o público que já conhece, mesmo que não fique as 24 horas, se calhar quer fazer parte disso. E ao fazer parte disso, por estarem tão intensamente e tão condensados naquelas 24 horas, se calhar também se conhecem mais, vão ter maior interação com o filme, uma maior imersão naquilo que é esse cinema e com as pessoas que estão à volta dele. A minha ideia seria essa. Se vamos fazer isso ou não, não sei. Mas é uma questão de estudar. Já estou a estudar mais ou menos, mas por enquanto acho que não há nada de especial programado. Só continuar as sessões, fazer o que estamos a fazer, crescer dentro do que estamos a fazer. Porque, ao todo, acho que nem um ano tivemos. Apesar de termos começado em 2019, acho que nem um ano  de cinema tivemos, com isto da pandemia. Por isso, vamos ver para onde isto nos leva.

 

E a ideia seria também expandir para Lisboa, por exemplo? Ou manter aqui?

Não. A ideia surgiu porque não havia nenhum sítio onde as pessoas pudessem ter esta experiência.

 

Em Lisboa, também não há. Eu gostava de ter isto. [risos]

Não há? Eu pensava que o MOTELX estaria a fazer qualquer coisa por Lisboa.

 

Às vezes, mas é uma coisa muito ocasional.

OK, é uma pena porque Lisboa é grande e tem público.

 

Mas pensa nisso! [risos]

[risos] Eu não conseguia estar em Lisboa, o problema é esse. E que isto é uma operação de um só gajo. [risos]

 

Mas a Fábrica do Terror está em Lisboa e teria todo o gosto…

… e eu teria todo o gosto em partilhar o conhecimento, porque esse é o grande entrave — chegar às distribuidoras. Mas toda a informação de que precisarem, se alguma vez quiserem fazer isso, estão à vontade. E é uma coisa que eu acho que não há muito, os cineclubes, às vezes, estão um bocado de costas viradas uns para os outros e a jogar como se fôssemos concorrência, em vez de estarem a jogar como complementaridade. Eu tenho mais afinidade com o cinema de género e de terror, mas, dada a oportunidade de programar a sala do Passos Manuel, aquilo que eu iria ver era a oferta que não existia no Porto. E acho que não se deve andar a pisar nos pés uns dos outros, acho que se deve funcionar em complementaridade e, às vezes, falta um pouco  de entreajuda, ou pelo menos há uma certa retração em falarem uns com os outros. Porque, se calhar, há essa vontade de haver ajuda entre uns e outros, mas não se falam muito. Eu gosto muito quando chego a outras entidades que me podem ajudar e elas não têm qualquer problema em fazê-lo.

 

Também sinto isso, sim.

Mas é inacreditável como Lisboa não tem nada deste género.

 

O problema, também, é que as salas de cinema independente já fecharam praticamente todas. Os cinemas King eram dos poucos que passavam este género de filmes independentes, coisas que não passavam no mainstream. Mas aquilo foi morrendo. Eu sei que houve uma altura em que eles faziam umas sessões temáticas, de um realizador ou de um género, mas era uma coisa muito esporádica. 

É muito difícil conseguir fazer este tipo de exibições isoladas. Há filmes que custam 150 euros e há filmes que custam 350 euros. Se pensarmos em 150 euros a 5 euros cada bilhete, precisamos de 30 pessoas, no mínimo, para pagar aquilo. Mas  depois há o projecionista, e luz, não é fácil. E uma sala de cinema que já não tem um público acostumado a ir até lá não consegue sobreviver com esse tipo de licenças. É muito complicado. Já o Passos Manuel também é um bar, há outras coisas que ajudam a almofadar esses custos. Felizmente, nunca tivemos prejuízo, mas é sempre aquele limite.

 

E o amor pelo género do terror, quando é que surge?

Foi com o filme A Noite do Espanto (Fright Night), que foi o primeiro filme que o meu pai me deixou alugar de terror. Ele já tinha visto e também tinha gostado, e eu vi aquilo e adorei. Foi a partir daí. E depois, também há os filmes que são [uma espécie de gateway drug]. Ou seja, não são o exemplo perfeito do que é um filme de terror, mas às vezes podem levar um público mais distraído a querer saber mais sobre outra coisa, e depois descobrir outros filmes mais fixes. Mas, para mim, foi esse filme, e a partir daí nunca mais olhei para trás. Depois, comecei a consumir os Reanimator e essas coisas por aí adiante.

 

Tens um filme preferido?

Tenho. É o Evil Dead 2, que, para mim, é o filme mais divertido que eu já vi. Continua a sê-lo, já o vi vezes sem conta e não há aqui grandes rodeios. Foi das coisas mais tresloucadas que apanhei, nunca tinha visto nada assim. Um tipo a cortar a própria mão, a colocar uma motosserra, os monstros a virem em direção a ele e ele só quer sair dali porque está chateado com a situação. Era tudo novo. Acho que é um dos filmes mais inventivos em termos de movimento de câmara, de edição, da maneira como se conta uma história, da maneira como há soluções para filmar um único sítio de formas bastante diferentes, porque aquilo se passa tudo na cabana. É quase uma escola de cinema por si só, e quanto mais aprendo sobre como se fez o filme, e o engenho que houve por trás, cada vez mais gosto dele. Podia correr o risco de ficar desiludido com a maneira como aquilo foi feito, mas não. Acho que é um filme que sobrevive e que se mantém cativante. Da última vez, tive a oportunidade de o passar no Passos no Escuro e foi um festival de palmas ao longo do filme todo. E é disso que eu gosto. Não há nada que me dê mais gozo do que pessoas a bater palmas a meio de um filme.