Falámos com a escritora Maria Varanda, autora com contos nas antologias Sangue Novo e Sangue

«Tens de escrever para ti tanto quanto escreves para o outro»

A Maria Varanda (ainda) não faz da escrita a sua profissão principal e vive bem com isso. Como nos conta nesta entrevista, para já está satisfeita com escrever para sentir que está a viver. Fã de terror desde os oito anos, sentiu, desde essa altura, que este seria o género pelo qual nutriria sempre um carinho visceral.

Foi um dos quatro alunos pioneiros que se inscreveram na primeira edição do curso Escrever Terror, estreou-se como autora publicada com o seu conto «Godigana» na antologia de terror Sangue Novo e é uma das autoras selecionadas para integrar a antologia Sangue, a ser lançada pela Trebaruna em junho de 2022.

De Sandra Henriques

 

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Vou começar por aquela pergunta que faço a todos os fãs do género. Como é que descobres e começas a gostar de terror? 

Na minha família, sempre [contámos] histórias de terror. A minha família vem de uma aldeia no Norte em que há uma ponte com muitas histórias, e sempre nos contaram isso. A minha avó tem uma história de uma rapariga do antigo bairro onde ela morava que supostamente estava possuída. E desde aí que o terror sempre foi mais ao menos normal. O meu pai cantava-me a música do papão. O primeiro [filme de terror] que vi foi O Sexto Sentido, na televisão. Acho que devia ter uns oito anos. E depois acho que, a partir daí, fui vendo filmes de terror propositadamente, e a partir dos 15 não queria ver mais nada que não fosse de terror.

 

E aí assumiste logo que era disto que gostavas, sem enganos.

Há qualquer coisa em estar sentada no sofá a tremer e a ter de tapar a cara para conseguir ver certas cenas, mas querer ver. Mexe ali com o ossinho do medo que é mesmo a minha praia. Como diz o Stephen King, nós somos aquelas pessoas que, quando há um acidente na estrada, abranda e depois diz «bolas, não há mortos» e avança.

 

O que é que te levou a inscreveres-te no curso Escrever Terror?

Eu estava há muito tempo sem conseguir escrever por causa do curso de enfermagem e precisava de ter um incentivo. Primeiro, [inscrevi-me] numa pós-graduação de escrita criativa, [mas] não funcionou bem. Eu gosto de escrever terror, já há muito tempo que me tinha apercebido de que era isso que eu gostava de escrever, e aquele curso [não] era focado nisso. Ou seja, eles ensinavam escrita criativa da perspetiva histórica da evolução da escrita de ficção e queriam que [os alunos] escrevessem em todos os formatos. E eu escrevia em todos os formatos, mas [o tema era sempre]  terror. A professora dizia sempre que [a minha escrita] era muito infantil. E na altura, comecei a pesquisar na Internet outros cursos, porque me recusei a acreditar que não houvesse um curso só de escrever terror. Tinha de haver um curso de terror! E lá apareceu a Escrever Escrever. Quando fiz a primeira edição do Escrever Terror, não fazia ideia de que ia haver mais edições sempre com gente interessada. Honestamente, achei mesmo que não havia gente para uma segunda edição. Eu lembro-me de, quando me inscrevi no curso, me dizerem que era preciso um número mínimo de pessoas para abrir a turma, e de pensar que nunca ia haver o número suficiente para que isso acontecesse. E, no final de contas, éramos quatro alunos.

 

Porque é que a professora dizia que escrever terror era infantil?

Ela não dizia que o terror era infantil em si. Ela dizia que a minha escrita era infantil. O currículo do curso era gigante [e ocupava] um semestre inteiro. Tínhamos aulas pelo menos uma vez por semana, e apenas duas aulas seriam dedicadas à escrita de ficção especulativa. A primeira coisa que ela me disse, quando eu disse que o Stephen King era o meu escritor favorito, foi «mas ele escreve tão mal». A partir daí, fiquei um bocadinho de pé atrás e talvez algumas coisas que tenha escrito não tenham sido o meu melhor. Mas lembro-me perfeitamente de ter escrito uma história que até achei que estava boa (e vou pegar nela outra vez, um dia) e [de a reação dela ter sido] «terror outra vez, isso é tão infantil».

 

Chegaste a concluir o curso?

Não. Estava quase no fim, ainda faltavam as aulas de ficção especulativa, mais uma ou duas outras aulas e depois era fazer o projeto final. [No fundo], o erro foi meu porque o que eu queria era um curso de escrita criativa e não foi isso que me entregaram. Mas a melhor coisa que fiz foi desistir, porque foi logo na altura em que o Escrever Terror estava a começar.

 

E inscreveste-te num curso mesmo sem saber quem é que era o Pedro Lucas Martins. 

Sim, eu fui fazer uma pesquisa [sobre ele] no final da primeira aula.

 

Tu não conhecias terror em português antes do curso?

Não. Não há secções próprias de terror [nas livrarias e nas bibliotecas]. Temos tudo misturado no suspense, no policial, na literatura estrangeira. Precisamos de uma secção de terror, mesmo que lá não estejam coisas que sejam 100% terror, seja lá o que isso for.

 

Há algum momento na tua vida até agora (independentemente de os cursos correrem mal ou bem) em que tu dizes «não, vou parar de escrever»?

Eu não escrevi nada entre os 18 e os 23 anos. Não conseguia. O que queria era fazer [da escrita] a minha vida. Quando andava no secundário, participei em alguns concursos e foi engraçado. E teve sucesso. Mas apercebi-me de que, em Portugal, não ia fazer disto a minha vida, particularmente porque, para agradar aos outros, achava que tinha de escrever coisas de que eu não gostava. Depois, fui para faculdade [de enfermagem] e simplesmente não tinha tempo. Estava a estagiar cinco ou seis dias por semana, tinha uma carga horária de mais de 300 horas de estudo autónomo. E então, acabei por me «perder». E depois, naqueles primeiros anos de estar a trabalhar, continuei a ter de estudar como se fosse uma aluna, chegava a casa cansada e tentava começar a escrever, [mas só] saía porcaria.

 

Mas saía porcaria, se calhar, porque não tinhas retorno na altura sobre a tua escrita…

Sim, eu sei que os nossos textos podem ser sempre melhorados, mas agora escrevo um texto e ele deixa-me feliz, mesmo que veja que precise de ser melhorado depois. Na altura, aquilo que escrevia não me deixava feliz. Tanto que deixei um projeto pendente, [que comecei na adolescência e] que já teve umas três ou quatro versões. Na altura da faculdade, peguei nessa ideia para começar outra vez, mas não passei do resumo. Tentei pegar nela outra vez antes de ir para a pós-graduação e antes do Escrever Terror, e foi aí que me apercebi de que estava sem ferramentas.

 

Ainda bem que não disseste «sem inspiração»…

Não, não. A [falta de] inspiração é a desculpa que usamos quando estamos cansados e não conseguimos trabalhar na escrita.

 

A dada altura, na apresentação do Sangue Novo, dizias que, na adolescência, escrevias má fan fiction. Porquê escrever fan fiction em vez de textos originais?

Eu também escrevia coisas originais, que publicava num blog que entretanto foi apagado, mas eram coisas muito infantis. Poemas muito dark e muito sofridos, mas não era nada de terror ainda. [Escrevia] fan fiction porque, quando és adolescente, e te começas a identificar muito com personagens que são fictícias, acabas por querer envolver-te mais na história. E a maneira, na altura, de o fazeres era inventar histórias para aquelas personagens que já existiam.

 

Já consideras que tens uma voz, já sentes «este é o meu estilo, eu escrevo sempre assim, as minhas temáticas são estas» ou ainda estás à procura? Ou isso, para ti, não é importante (até porque não tem de ser)?

Neste momento, não. Eu sei que provavelmente, quando leem os meus textos, já identificam ali muita coisa que é minha, mas eu não consigo.

 

Curiosamente, em algumas coisas, sim. Eu consigo ver a Maria Varanda. Se me dessem o texto sem nome, conseguia identificar-te como autora. Quando estou a ler um texto teu, percebo e não percebo que é a Maria Varanda. Isto é extremamente complicado de explicar. Consigo perceber que és tu, mas ainda bem que tu não tens uma «caixa», estás a perceber? É nesse sentido.

Eu tento não ter. Sei que há coisas em que, se calhar, ficaria mais confortável em escrever. Mas tento sempre escrever alguma coisa fora daquilo que me deixa confortável. E acho que o primeiro conto em que fiz isso a sério foi quando refiz o Sexta à Noite, [que partilhei numa das sessões do Teias de Aranha]. Andei a matutar no texto uma semana ou duas, [depois] escrevi-o, parei dois dias antes de agarrar nele outra vez, e senti a náusea. O meu propósito não é criar nojo, mas aquele tipo de náusea não é «que nojo corporal», é a náusea mental. O quão perturbado aquilo é, aquela corrupção da inocência.

 

E a personagem encarava aquilo que fazia de uma forma muito banal. Mas isso é a parte curiosa. Há coisas que percebo que são tuas. Eu estava a ler o «Godigana» outra vez, e, não sei se te apercebes disso, mas incluis pormenores muito cirúrgicos que vão dando ao texto aquele toque de legitimidade. Tu percebes daquilo que estás a falar, isto não foi escrito por uma pessoa que foi à Internet pesquisar o Dr. Google. Apercebes-te disso?

Apercebo-me e não me apercebo. Ou seja, eu sei que estou a falar daquilo e tento conscientemente não puxar para esses assuntos. Estão sempre a dizer-me que eu devo escrever os contos das 13 Camas da Intermédia, mas quero muito evitá-lo porque tenho medo de passar a ser conhecida só por isso. Se bem que sei que só seria conhecida por isso se só escrever sobre isso. Mas são coisas que eu conheço, e é algo que está integrado em mim como pessoa. Sou como uma pequena enciclopédia andante de dados completamente inúteis. Apercebo-me de que tenho mais facilidade em escrever sobre as coisas que conheço, e esse é um dos motivos pelos quais estou sempre a querer aprender qualquer coisa. Gosto muito de tirar cursos por causa disso. Tirei um curso de fitoterapia porque quero perceber de plantas, mas porque sei que, além de ser útil para a minha vida pessoal e profissional, vai ser útil para a minha escrita. No «Godigana», a parte dos inspetores foi uma coisa arriscada, porque não faço a mínima ideia se aquilo está fidedigno.

 

Mas, para mim, está verosímil o suficiente. A picardia entre os dois inspetores, um que está lá há mais tempo e o outro que acabou de chegar. Para mim, isso é o suficiente para aquelas personagens serem reais. 

Sim, acho que só faria impressão a alguém que perceba [muito] do assunto.

 

Até gosto que ainda não tenhas uma imagem de marca ou que te recuses a ser reconhecida por uma só coisa. Mas isso pode gerar uma reação negativa por parte de quem te lê à espera dessa imagem. Por isso, pergunto-te: como escritores estamos aqui para servir os leitores ou não?

Eu acho que não. Quero que as pessoas gostem, apreciem e se entretenham a ler aquilo que escrevo. Mas não quero escrever para elas. Ou seja, pode haver algo que queira escrever muito e vou escrevê-lo mesmo que ninguém goste disso. Não me quero apagar como indivíduo ou como escritora só única e exclusivamente porque sei que o outro não vai gostar, porque isso já me aconteceu. [Apesar de não as publicar], eu escrevia coisas que as pessoas à minha volta queriam ler e não aquilo que eu queria escrever. E isso levou-me a não conseguir escrever nada, porque estava constantemente a pensar «ninguém quer ler isto». Há sempre alguém que quer ler; só tens de chegar às pessoas corretas. Posso modelar alguma coisa, se calhar, se for demasiado chocante para alguém. Se for um tema muito sensível, posso tentar falar dele de outra maneira. Ou se calhar não. Acho que tens de escrever para ti tanto quanto escreves para o outro. Não podes eliminar nem a pessoa que quer ler, nem a pessoa que és a escrever.

 

Que expectativas tinhas para o Sangue Novo, quando aceitaste o convite para integrar a antologia? 

Gostava que, com este livro, revolucionássemos o terror em Portugal, que abríssemos mais janelas de publicação para escritores como nós, que conseguíssemos despertar o interesse em pessoas que, até agora, achavam que não gostavam de terror. Fazer qualquer coisa diferente. Chamar a atenção das pessoas. Mudar isto [ao ponto de] as bibliotecas e as livrarias, um dia, terem uma secção de terror e que seja maioritariamente português, nem que seja pequenina. E despertar o interesse das editoras para fazermos algo deste género, porque, na realidade, ainda temos muita dificuldade.

 

E planos para o futuro?

Não tenho ainda planos muito definidos. Tenho de escrever. Tornar isto a base da minha vida, não para viver disto, mas fazer isto para sentir que estou a viver. Quando acabo um texto e vejo o que está ali à minha frente, há uma sensação dentro de mim que é próxima à plenitude e que me deixa mesmo satisfeita. Porque o que eu quero é escrever e vou tentar concorrer a tudo o que haja para concorrer e habituar-me ao facto [de poder ser recusada]. [Aceitar que isso não] quer dizer que a história não era boa, quer dizer que estavam à procura de outra coisa. Acho que isso é o meu objetivo para 2022. Porque eu sei que não concorro a muita coisa e não trabalho para enviar mais textos para outros sítios porque tenho medo da recusa. E isso é um medo que, como escritora, tenho de perder em 2022. Alguém quer ler aquilo que escrevo, só tenho de descobrir onde é que estão.

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