À descoberta do «Azoresploitation» com o realizador Francisco Lacerda

«O cinema de género é um cinema muito popular e perdem-se imensas novas vozes por não haver apoios»

O estilo particular das curtas-metragens do realizador açoriano Francisco Lacerda deu origem ao termo Azoresploitation, usado para definir o cinema de género feito nos Açores. Apesar de o próprio Francisco ainda ver este estilo como um subgénero do cinema português, é possível que, no futuro, mais realizadores se juntem ao movimento.

Na véspera da estreia da sua mais recente curta-metragem no Indielisboa, Cemitério Vermelho (2022) — e que teve a sua estreia internacional no Fantasia International Film Festival, em Montreal, Canadá —, falámos sobre os seus filmes, os desafios de fazer cinema numa região ultraperiférica e a necessidade de se continuar a divulgar o cinema (dito de) género em Portugal.

Sandra Henriques

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Nasceste nos Estados Unidos, mas cresceste nos Açores?

Sim, mas tenho muito poucas referências dos Estados Unidos. Há algumas coisas de que eu me lembro, mas muito pouco.

O Karaoke Night é a tua terceira curta-metragem?

Esta é a quarta. Há mais três: Dentes e Garras, Dentes e Garras 2 e Freelancer. E já tenho mais duas novas. Uma delas estreou no Indielisboa 2022, Cemitério Vermelho.

E são todas neste género?

Não diria todas. A minha nova não a considero um filme de terror, mas também se insere no contexto de Azoresploitation, por ser um filme de género feito nos Açores. Este é mais um take em relação aos euro westerns, nomeadamente os spaguetti westerns.

Mas é o teu estilo, sempre? Isso reconhece-se, não há dúvidas! Eu confesso que não conhecia o termo Azoresploitation, mas o Karaoke Night fez-me lembrar um bocadinho o Braindead, do Peter Jackson, aquela silliness.

É uma comédia de terror, sim. É interessante teres mencionado o Peter Jackson, porque um dos diretores do MOTELX chama-me de Peter Jackson açoriano. [risos]

Faz sentido! O Peter Jackson, de certa forma, também é um ilhéu, se bem que, neste caso, a ilha é a Nova Zelândia, que é maior. 

É mais por aí também! [risos]

De onde é que vem este termo Azoresploitation?

Foi [numa das edições do] MOTELX, quando estreei o Freelancer, o Nuno Gervásio veio falar comigo e perguntou se eu ia mostrar mais um [filme] de Azoresploitation no festival. E eu respondi «sem dúvida». E pegou. Comecei a usar o termo, aproveito-o para outros festivais para descrever o meu trabalho também. Não acredito que seja um termo completamente vincado ainda, acho que isso só vai acontecer quando fizer a primeira longa-metragem dentro desse género. Até agora, é um subgénero do cinema português.

Há quanto tempo fazes cinema?

Se não contarmos com os home movies com que dei os meus primeiros passos, posso dizer que acho que a minha carreira no cinema começou com o Dentes e Garras, em 2013, ainda a fazer o segundo ano do curso de cinema nas Caldas da Rainha. Se for contando com os home movies, acho que começou quando tinha 14 anos. [risos]

E era terror na altura?

Ah, sim, cenas com sangue, efeitos especiais e coisas assim. Extremamente amador, porque era uma criança. [risos] Mas, sim, já envolvia criaturas e sangue e coisas assim.

E porquê o terror? Porque é que é o teu género de eleição?

Eu sempre me fascinei com coisas que me metessem medo. Aquela sensação de não ter controlo sobre uma coisa. Já em criança era muito fã de animações e de filmes desse género. Por exemplo, acho que o Jurassic Park foi o meu primeiro contacto com o cinema de suspense e, mais tarde, acho que o filme que plantou mesmo a semente foi o Alien, do Ridley Scott. A primeira vez que vi o filme aterrorizou-me. Nem consegui olhar para a capa durante meses, ao ponto de ter de esconder o filme. Depois, anos mais tarde, consegui vencer o medo e, hoje em dia, é um dos meus filmes favoritos. E se quiser ir um pouco mais atrás, acho que o primeiro filme que vi e que posso considerar como terror foi o Fantasia.

O Fantasia tem elementos de terror?

Sim, pelo menos a sequência dos dinossauros e o ato final, Night on Bald Mountain.

Claramente tenho de rever o filme. Como é que é fazer cinema nos Açores?

Estou a viver na Finlândia, mas continuo a desenvolver o meu cinema todo nos Açores. Logo, a luta é a mesma. Não é fácil. A maior parte destes filmes que fizemos foi com o dinheiro que tínhamos nos bolsos e com a ajuda de amigos e de interessados que quisessem ajudar-nos. Em relação à falta de apoios, o ICA não é muito aberto a esse tipo de cinema, o que torna difícil financiar projetos [destes] através do ICA. Para o Karaoke Night, basicamente tive de recorrer  ao crowdfunding, que foi um sucesso, daí o filme ter sido feito. Mas, para o meu último filme, que vou estrear agora [2022], Cemitério Vermelho, consegui apoios. O filme foi financiado maioritariamente por apoios do governo dos Açores, no ano passado [2021].

Não é mau. Mas achas que o projeto foi financiado por não ser um filme de terror? 

Não tenho a certeza. Lembro-me de mencionar nas candidaturas aos apoios que fiz que já tinha feito filmes desse género, mas acho que o facto de ter feito filmes de terror no passado não influenciou a decisão. Acho que foi mais por ser um projeto a ser desenvolvido nos Açores, por um açoriano que está a pôr os Açores lá fora, em festivais. Acho que foi mais por aí e que a ideia também lhes agradou. Não sei se com o Karaoke Night seria a mesma coisa, mas uma coisa boa é que nunca pedem o argumento. [risos] Posso só descrever o filme de forma vaga sem contar a história. [risos] E isso provavelmente influencia as chances de ganhar o apoio.

Tecnicamente, o Karaoke Night é sobre dois turistas que têm uma noite atribulada. Já agora, como é que surge a ideia para esse filme? Foi alguma crítica ao estado do turismo nos Açores?

A ideia, inicialmente, tive com o Amarino França. Tivemos essa ideia baseada numa piada. Fizemo-la durante as filmagens do Dentes e Garras e, anos mais tarde, lembrei-me disso e perguntei-lhe se ele queria escrever comigo uma curta com base nisso. E, sim, usámos também o pretexto do turismo nos Açores, de os habitantes não serem muito adeptos do turismo nos Açores, e misturámos isso com o movimento MeToo, que também estava em alta  na altura em que escrevemos o filme. Resultou neste trabalho.

Vês-te a trabalhar com a Troma, por exemplo, como aconteceu com o Mutant Blast? Apesar de a adesão do público português ao filme não ter sido grande.

Adorava! Eles, por acaso, adquiriram os direitos das minhas primeiras duas curtas, Dentes e Garras e Dentes e Garras 2. Fora isso, tentámos fazer um pitch, mas a coisa acabou por ficar pelo caminho, houve muita falta de comunicação. Neste momento, não fazemos ideia se vai acontecer alguma coisa. Quanto ao facto de não ter havido muita gente a aderir ao filme [Mutant Blast], não quero estar a apontar dedos, mas houve um filme que saiu no ano anterior, chamado Linhas de Sangue, que teve péssimas críticas. Acho que isso influenciou o público de alguma maneira. Mas isto é hipotético, não sei se foi isso!

Também sentimos muito isso, que há necessidade de mostrar a diversidade de terror que há em Portugal. Mas voltando ao Azoresploitation. Filmas sempre nos Açores, com equipas açorianas. É uma condição que impões aos teus filmes?

São as pessoas com quem eu trabalhava, os meus amigos. São extremamente talentosos, sabem o que eu quero, facilita todo o processo. Por acaso, no último filme, no Cemitério Vermelho, trabalhei com uma equipa açoriana e com uma equipa norueguesa. Também são pessoas que conheço, mas com quem nunca tinha trabalhado, e o filme foi uma coprodução entre Açores e Noruega, digamos assim. Não quer dizer que vá sempre trabalhar com açorianos, estou aberto a trabalhar com todo o tipo de pessoas desde que queiram fazer um filme comigo, mas, se tiver sempre oportunidade de escolher, vou sempre fazer os meus filmes nos Açores.

E ficaste com a responsabilidade do legado do Azoresploitation, apesar de não ter sido criado por ti. Eu até acho que isso pode abrir portas para outros cineastas açorianos, que podem ser influenciados por isso.

Sem dúvida, sim. E a ideia é que a minha longa-metragem não se restrinja só a uma ilha, mas que seja feita em várias ilhas. Porque acredito que os Açores são muito diversificados e que há sempre uma coisa numa ilha que não existe noutra.

Nós sabemos que existe mercado para o terror em Portugal, nem que seja olhando para o exemplo do sucesso do MOTELX, mas concordo que ainda haja algum preconceito com a qualidade do que se faz cá. Achas que existe futuro, que há esperança de isso começar a mudar?

Acho que o MOTELX tem uma missão excelente de incentivar a produção de terror nacional, e tem-se visto, ao longo dos anos, que esta tem subido. Há cada vez mais curtas, de vez em quando aparece uma ou outra longa, mas continua a ser muito escasso. Acho que quem tem o poder para fazer com que o cinema de terror — ou o cinema fantástico, vamos chamar-lhe assim — se possa expandir e crescer no país são instituições como o ICA. O ICA, se quiser, tem de apostar nisso. Abre um programa dedicado ao cinema de género fantástico. Senão, acho que nunca vamos ter muito mais do que aquilo que tem sido estabelecido até agora. Os festivais fazem o que podem, mas as instituições também têm de fazer por isso se querem que alguma coisa mude. É uma responsabilidade de instituições como o ICA apoiarem a criação de cinema de género dentro de Portugal, porque é um cinema mundial. O cinema de género é um cinema muito popular, e perdem-se imensas novas vozes por não haver apoios a esse tipo de cinema.

Aqui podes ver a curta-metragem Karaoke Night