A fotografia e a identificação de criminosos natos
Visita à Cadeia da Relação do Porto
De Patrícia Sá
Durante a minha visita ao Porto para cobrir o Fantasporto – Festival de Cinema Internacional, resolvi ir a um dos locais mais icónicos da cidade: A Cadeia da Relação.
Mais conhecido por ter retido Camilo Castelo Branco de 1 de outubro de 1860 a 17 de outubro de 1861, este monumento é atualmente a casa do Centro Português de Fotografia.
Quando o visitei, fui prendada por várias exposições fotográficas, dedicadas à imagem e ao equipamento que a captura. Aquilo que aguçou o meu interesse, no entanto, foram as explicações que decoram as paredes da Sala da Memória, que contam a história do edifício, fazem menção a nomes importantes que por lá passaram — tais como Camilo, Ana Plácido, Zé do Telhado e Alves Reis — e ainda referem uma curiosidade: o papel da fotografia na catalogação dos criminosos e na elaboração da teoria do «criminoso nato».
Uma das placas informativas é intitulada A Cumplicidade da Fotografia e começa da seguinte forma: «A fotografia nunca foi neutra e o fotógrafo sempre o soube. Ao desnudar o detido de signos identificáveis, ao obrigá-lo a fixar na câmara fotográfica o seu olhar assustado ou desafiador, o fotógrafo sugere a culpa ou o culpado».
Estas afirmações têm a sua raiz na teoria que se popularizou no século XIX, de que, através da fotografia, se poderia definir um «criminoso nato», desenvolvida por Cesare Lombroso.
Lombroso, considerado o pai da criminologia, acreditava que a criminalidade tinha uma origem biológica e hereditária e que os criminosos poderiam ser identificados através de características físicas.
Essa teoria surgiu aquando do estudo do crânio de um criminoso que o fascinara, no qual havia uma indentação na parte de trás, semelhante à que se podia encontrar em símios. Assim, concluiu que alguns indivíduos nasciam com uma «propensão para ofender e eram também evocações selvagens do homem primitivo» (tradução livre).
Deste modo, naquela placa, e segundo Lombroso, «o crime inscrevia-se na cara dos culpados». Através de um retrato do «delinquente», Lombroso propõe, na sua obra, O Homem Delinquente (1876), que certas características físicas seriam «provas de degenerescência», associadas a uma regressão a um estado animalesco ou selvagem.
Segundo outra placa na mesma sala, intitulada Do Arquivo de Preventivos à Tipologia dos Criminosos, «para aqueles que temia — ladrões, vagabundos, delinquentes, pobres, loucos e, também, trabalhadores e revolucionários —, a sociedade disciplinar soube encontrar dispositivos teóricos e práticos de desindividualização, e de esvaziamento do eu social».
O papel da fotografia é de extrema importância neste processo. Adianta esta placa que «a polícia é o primeiro organismo a ver o alcance da primeira prática fotográfica, o daguerreótipo, para a catalogação dos presos». Essa prática interessou os cientistas da época, onde que a frenologia («teoria segundo a qual o estudo da conformação do cérebro pode ter relação com aptidões, instintos e faculdades intelectuais») ainda ocupava um lugar de destaque na ciência, e, por isso, foi propícia ao desenvolvimento de teorias dos criminosos, tais como a de Lombroso.
Note-se que, como aponta a placa em questão, «a Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, como de resto as suas congéneres na Europa, fotografa crânios de criminosos célebres, que a ciência da época afirmava serem mais diminutos que os das pessoas normais e inteligentes […]».
Contudo, é importante salientar que estas fotografias não eram tão objetivas como se pretendia que fossem, pois, na sua base, estava um processo de humilhação e tortura que resultava num ser humano de aspeto miserável. Como se afirma na placa, «o detido é um objeto que se ajusta a régua e esquadro […]».
Assim, as «bestas», os «monstros» que a sociedade definia como tal — e que ainda hoje produz os seus ecos — não passavam de construções com o intuito de desumanizar os criminosos, de os afastar do que seria considerado um ser humano «normal».
A placa dedicada à cumplicidade da fotografia nota que, apesar de a teoria de Lombroso ter sido «cientificamente abandonada, informa ainda grande parte do senso comum que continua a acreditar no criminoso nato».
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Patrícia Sá
Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia «Sangue Novo». Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com «post-its».