Autoras de terror português

Existem escritoras de terror em Portugal? Ou o género ainda é dominado pelos homens?

A resposta (nunca simples) a ambas as perguntas é sim. O que provavelmente não é surpresa nenhuma.

Sandra Henriques

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Hoje, comemora-se o Dia Internacional da Mulher, pelo que fazia sentido que se escrevesse algo sobre o terror em Portugal, escrito por mulheres. O objetivo não é abrir a discussão sobre as mulheres ainda precisarem de assinalar este dia todos os anos; até porque, se estão a colocar essa questão, é porque estão num patamar de privilégio (seja de género, seja de estatuto social) que não vos permite ver a realidade. Mas adiante.

Este artigo também não serve para assinalar unicórnios. Não somos. Há muitas mulheres em Portugal a escrever terror, algumas mesmo a publicar livros em nome próprio com editoras tradicionais, muitas que optaram por edições de autor, e outras que têm vindo a integrar várias antologias (portuguesas e estrangeiras) ao longo dos anos.
Se o género do terror é dominado pelos homens? Não é uma questão de domínio. É um problema de representatividade. Já nem vou trazer à baila o facto de o terror ser muitas vezes visto como um género literário menor — essa é outra batalha que há de ficar para mais tarde.

Assumindo que os motores de busca de Internet têm falhas, se pesquisarem por autoras de terror português, recebem resultados genéricos que listam livros de terror portugueses ou artigos sobre o género. Nada, em específico, sobre autoras. Por isso, vou facilitar-vos a pesquisa e deixar-vos uma lista (que não está, nem pretende ser, completa) de algumas obras de terror em português, escritas por mulheres. No caso das antologias, assinalo aquelas em que a maioria são escritoras.

Logotipo Fábrica do Terror

Secção de contos da Fábrica do Terror

Tinha de começar por casa, não é verdade? Dos 95 contos que já publicámos até à data, 57 são de mulheres. A maioria. Algumas destas autoras ainda não se tinham aventurado pela escrita de terror, mas gostaram tanto do desafio (e identificaram-se tanto com o género literário) que continuaram a escrever e a submeter-nos contos. Seguramente, posso dizer-vos que não há aqui preocupações com quotas. Quando estamos a selecionar contos, estamos somente focados na história. Se as submissões fossem anónimas, o critério seria o mesmo.

Insanidade (2021), de Raquel Fontão

Publicado em edição de autor na Amazon, através da Kindle Direct Publishing, este livro-estreia de Raquel Fontão deixa antever uma mente retorcida e fértil de imagens grotescas. Tudo isto no bom sentido, claro. A Raquel vai ao fundo da sua imaginação para escrever as suas histórias e isso nota-se. E escreve terror sem pedir desculpas por isso, o que nós apreciamos.

Conta-me, Escuridão (2021), de Mafalda Santos

Esta antologia em nome próprio, editada pela Suma de Letras, é a estreia de Mafalda Santos na ficção. Uma coleção de contos de terror inspirados por quadros (sim, muito para lá daquelas imagens que parecem seguir-nos com o olhar). Mesmo que o romance que se seguiu (O Outro Lado, 2022) tenha sido comunicado como uma distopia, e não terror, a escrita da Mafalda pende sempre um bocadinho para o lado macabro e dos finais infelizes. O que, para os fãs de terror, são excelentes notícias.

Sangue Novo (2021), vários autores, com organização e edição de Pedro Lucas Martins

falámos muito desta antologia aqui na Fábrica, até porque temos uma relação emocional (e visceral) com ela. Em 15 autores, 10 são mulheres, e assinam contos com estilos bastante diferentes. O Grande Prémio Adamastor de Literatura Fantástica Portuguesa 2022 foi muito bem-vindo, claro, e ajuda à confirmação de que construímos algo excelente juntos.

Sangue (2022), vários autores

Talvez das antologias mais surpreendentes do ano passado, porque o objetivo não era que fosse de terror. Porém, sendo o tema «sangue» (com mais interpretações do que as que possam pensar à partida), os 16 contos selecionados acabaram por rotulá-la como uma antologia de género. Do total, 12 contos foram escritos por mulheres, e a abordagem do tema-chapéu «sangue» é bastante diversificada, mas todos os textos têm aquela pontinha de terror (mesmo que não tenha sido propositado).

Outros textos de terror português, escritos por mulheres

Fui, nos últimos dois anos, descobrindo outros contos de terror português, escritos por mulheres, espalhados por várias antologias onde a escrita no feminino não está em maioria ou, em alguns casos, quando o terror não é o género principal. Julgo, por causa disso mesmo, ser importante referi-las, porque ainda se precisa de «fazer número»:

Ana Cristina Luiz: «Sorte ao Jogo», (in Nos Limites do Infinito, 2015);
Liliana Duarte Pereira: «Fertilidade», (in Rua Bruxedo, 2022);
Patrícia Lírio: «O Lamúrio», (in Rua Bruxedo, 2022);
AMP Rodriguez: «A Memória da Pedra Trabalhada», (in Os Medos da Cidade, 2022);
Safaa Dib: «Vale de Sombras», (in A Sombra Sobre Lisboa, 2007);
Inês Fonseca Santos: «A Parte Pelo Todo», (in MOTELX – Histórias de Terror, 2015);
Verónica F: «Canção de Ninar», (in MOTELX – Histórias de Terror, 2015);
Patrícia Portela: «Suicidem-me, ou o Diário de Alva» (in MOTELX – Histórias de Terror, 2015);
Alexandra Torres: «A Essência do Mal», (in Os Monstros que nos Habitam, 2017);
Carina Rosa: «Páginas Assassinas», (in Os Monstros que nos Habitam, 2017);
Patrícia Morais: «Génesis», in (Os Monstros que nos Habitam, 2017);
Soraia Matos: «O Canto da Sereia», (in Os Monstros que nos Habitam, 2017);
Daniela Maciel: «A Maldição da Casa da Colina», (in O Resto é Paisagem, 2018);
Inês Montenegro: «Rogos e Mitos», (in O Resto é Paisagem, 2018);
Lívia Borges: «O Espírito do Vento», (in O Resto é Paisagem, 2018);
Raquel da Cal: «A Última Missa» (in O Resto é Paisagem, 2018).

Deixo esta nota (pessoal): o terror português escrito por mulheres não é (nem tem de ser) necessariamente feminino ou feminista. Às vezes, é apenas um exercitar saudável dos recantos mais obscuros da nossa imaginação. Isso é importante que se diga, para evitar cairmos numa classificação ligada ao género do autor. Eventualmente, pela proximidade, um ou outro tema desses textos será porventura interpretado de forma diferente por leitores que se identificam como mulheres.

Desse lado, conto encontrar mais mulheres que escrevem terror em Portugal, sem medos e sem desculpas. Porque estamos em 2023 e de nós ainda esperam romances cor-de-rosa ou literatura ligeira. E porque já ouvi homens dizerem que não leem terror escrito por mulheres porque elas não sabem escrevê-lo. Hoje (e sempre) é dia de provarmos o contrário.