Crítica a «Assim Falou a Serpente», de Luís Corte Real (2022)

Quatro contos e uma novela, todos com demónio dentro

Este é o segundo volume das aventuras de Benjamim Tormenta, detetive do oculto. Não sei se há uma forma «correta» de ler estas histórias, mas eu furei as regras e li este antes do primeiro (O Deus das Moscas Tem Fome).

Sandra Henriques

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Não só não li os livros por ordem (o primeiro, que vai ser o meu segundo, está na minha pilha interminável de obras por ler), como o confessei ao autor quando o entrevistei para a Fábrica. Pondo de lado a gafe, e assumindo que há por aí leitores como eu, saber pouco desta personagem — além de que é atormentada por um demónio que vive dentro dela (Lamashtu) — foi o que me fez querer ler o primeiro. Não que tenha sentido que a história fique com buracos (não fica), mas porque agora quero respostas àquelas perguntas que me deixaram com a pulga atrás da orelha.

Aos bem comportados, que respeitaram a ordem do autor e não leram o Assim Falou a Serpente antes de terminar o outro: depois tiramos teimas.

Tirando algumas viagens que o Benjamim Tormenta faz (no caso deste livro, ao Porto e ao Egito), o seu território de ação é quase sempre Lisboa, no século XIX. É certo que detetives do oculto (ou do sobrenatural, se preferirem) parecem pertencer às cidades escuras, húmidas e fumarentas, como Londres, mas esta personagem, em Lisboa, não destoa. Pelo contrário, as descrições da cidade oitocentista são tão fidedignas que me transportaram por completo para aquele ambiente, sem que nunca tivesse questionado se «na altura era mesmo assim». É aí que a pesquisa exaustiva de Corte Real sobre a referida época brilha. Até no tipo de bife que se servia nas cervejarias da altura.

Além do ambiente, o sobrenatural está sempre lá; não é uma sugestão de qualquer coisa maligna ou inexplicável que depois descobrimos que afinal era o mauzão com uma máscara.


Damos uma mão a Benjamim Tormenta (e a Lamashtu, por defeito), a outra ao seu fiel criado, Ramanujan, e mergulhamos, sem saber quanto tempo estaremos sem regressar à tona para apanhar ar.


Luís Corte Real

Tormenta, às vezes, salta da página como uma figura cheia de soberba, com mulheres que lhe caem aos pés e lhe fazem olhinhos, um tipo que enche qualquer salão de baile com a sua presença, sem que percebamos bem o que é que tem de especial. E sabem porquê? Porque estamos completamente imersos naquele mundo, observadores da história que se está a desenrolar à frente dos nossos olhos e não somente leitores. Se fôssemos uma personagem oitocentista, provavelmente estaríamos a fazer o papel da alcoviteira matrona, sentada no canto com melhor ângulo, a esconder os impropérios (e as faces coradas) atrás de um leque desenfreado.

Têm de já ter lido Eça de Queirós (e gostado) para apreciar este livro? Não. Mas não desesperem com as descrições pormenorizadas. Faz parte. E ainda bem que faz parte, porque faz sentido, porque não é mero info dumping, e porque volta e meia o demónio (que li com a minha voz interna de bruxa-Karen que liga para todos os apoios ao cliente só para reclamar da reclamação) entrecorta o pensamento (nosso e do Benjamim) com tiradas e queixas e tentativas de desencaminhamento.

Se odeiam Eça de Queirós, vão fugir deste a sete pés? Claro que não. Até porque ninguém odeia Eça de Queirós; só o leram na altura errada (e, quase de certeza, as obras erradas). Sim, era por «obrigação» e «para a escola», eu sei, mas não precisam de voltar a ler Os Maias.

Além de escrever, Luís Corte Real também assina as ilustrações. No caso d’«A Mulher Gorda que Sussurra» (o meu conto favorito), se eu achava que a imagem que estava a criar na minha cabeça, só pela descrição, já era desconcertante o suficiente, tudo «piorou» quando vi a dita senhora ilustrada.

As últimas páginas do volume funcionam como o quebrar do feitiço (pelo menos, até ao próximo livro): listam a bibliografia e os vários easter eggs com que o autor vai prestando homenagem aos seus favoritos.