Entrevista a António Miguel Pereira e Tiago Pimentel
Argumentista e realizador de Era Uma Vez no Apocalipse.
«A nossa ideia é entrares naquele universo e sentires que aquilo é muito maior do que é, mas não sais daquela casa.»
Já passou quase meio ano desde que conversei com o António Miguel Pereira e o Tiago Pimentel a propósito de Era Uma Vez no Apocalipse. Desde então, o filme tem continuado o seu percurso pelos festivais de cinema independente, arrecadando prémios. Os mais recentes, atribuídos a 5 de abril de 2025, na 3.ª edição dos Prémios Curtas, foram para Sérgio Godinho (Melhor Ator), Paulo Calatré (Melhor Ator Secundário), Susana Cruz (Melhor Caracterização), Luís Sequeira (Melhor Direção Artística) e Gonçalo Homem e Johnny Rodrigues (Melhores Efeitos Visuais).
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Contem-me um pouco do vosso percurso até aqui. Não sei se é bom ou é mau, mas não consegui encontrar muita coisa sobre vocês.
Tiago Pimentel: Somos muito discretos. [risos]
António Miguel Pereira: Já começámos nisto há algum tempo. Acho que [o que] ajuda a explicar o facto de não haver muita informação [é] não sermos do meio; não somos do cinema, não frequentamos os meios artísticos. Somos dois entusiastas. O Tiago dedicou-se muito e é um autodidata em termos de realização.
TP: Escrevia sobre cinema na Première e no Independente há muitos, muitos anos.
A minha ligação ao cinema terá começado por aí.
Vocês trabalham sempre juntos? Pelo menos, encontro sempre esta dupla em quase todos os vossos filmes.
AMP: O Tiago fez um filme — quer dizer, por acaso, ajudei numa coisinha, mas, pronto, [esse filme] foi trabalho dele — que é A Máscara dos Porcos.
TP: Sim, fiz [um filme] durante a pandemia, em reclusão, durante o confinamento. Disse, «epá, vou fazer um filme sozinho».
AMP: E ainda foi ao Fantas.
TP: E ao MOTELX, em 2021. Fiz esse filme ao meu tempo, sozinho.
AMP: Sim, mas, regra geral, trabalhamos em conjunto desde os primórdios.
TP: O [nosso] primeiro filme que teve reconhecimento foi o Photomaton. No âmbito do 48h Film Project.
AMP: Sim, ganhou [alguns prémios], de melhor argumento, sonoplastia.
TP: E ganhámos, em ex-aequo, o prémio Criatividade ZON.
AMP: Eram 50 000 € que depois distribuíram por 10 filmes, e essa foi a primeira vez que tivemos, de facto, algum reconhecimento.
TP: Depois, fizemos O Outro Lado, que também foi importante. Era uma microcurta de um minuto que ganhou o concurso para o qual foi feito, também da ZON – Lusomundo. Era um concurso de curtas [sob o tema do] paranormal, e [o filme que] ganhasse passava antes do Atividade Paranormal 4 no cinema.
AMP: E isso lançou-nos. Só que não. [risos]
TP: [risos] Sim, mas temos no currículo uma curta com estreia comercial.
Que, para quem trabalha nesta área, em Portugal, é um grande feito. Para quem diz que não é do cinema, já fizeram muita coisa na área.
AMP: Sim, muita carolice.
TP: Acho que o primeiro projeto a sério, com dinheiro a sério, foi o Projeto Delta.
AMP: Mas, antes disso, ainda tiveste uma curta que fez um percurso internacional, Cá Dentro. Chegámos a ganhar um prémio de Melhor Curta Internacional num festival do Texas, em Fort Worth. Para todos os efeitos, foi [um filme] produzido por nós, feito em 48 horas, apesar de não ser no âmbito [do projeto] 48 Hours.
TP: A montagem [demorou mais um] bocadinho, claro, mas a produção foi dois dias.
AMP: Foi um contrarrelógio. E ainda conseguiu mais uma ou outra distinção, portanto, foi interessante. Mas a profissionalização propriamente veio com o Projeto Delta. Foi uma série financiada pelo ICA, candidatámo-nos já com o respaldo da SIC.
Mas preferem fazer mais filmes ou séries? Ou é indiferente?
TP: Pessoalmente, quero fazer uma longa-metragem; é aquele sonho do cineasta.
AMP: Temos uma longa-metragem escrita, mas não estamos em condições de ser esquisitos, não é? Tivemos a oportunidade de escrever a série, e acho que não estamos muito amarrados a um formato, queremos contar histórias. E [isso] até joga um bocadinho contra nós nas curtas, porque até aí aproveitamos para tentar contar uma história, o que, às vezes, perverte um pouco o conceito da curta-metragem.
Não estão agarrados a um formato, mas estão agarrados a um género ou nem por isso?
TP: Tendencialmente, costumamos ir para o género de terror ou suspense. Quando começamos a escrever, é para aí que vamos.
AMP: Como gostamos de terror e suspense, é natural para nós, sentimo-nos confortáveis.
TP: Mas, curiosamente, a longa em que estamos a trabalhar não tem nada a ver com isso.
É uma comédia romântica? [risos]
TP: Não, é mais dramático, chamemos-lhe assim. Dramático q.b. É um filme sobre o envelhecimento.
Pode ser terror, dependendo da forma como contas a história.
TP: Não é, não é.
AMP: Não é como aquele filme Old, do Shyamalan. [risos]
TP: É um filme extremamente realista. Se quisermos enquadrar em algum género, seja ele depois um realismo dramático ligeiro, uma comédia, seja o que for, é um filme realista. Temos isso escrito e uma visão para contar essa história, mas não é fácil arranjar o financiamento que estamos a tentar [arranjar].
AMP: De uma forma geral, nos últimos tempos, temos procurado virar-nos muito para a nossa diáspora na América do Norte. De facto, temos lá muitas pessoas com ligações a Portugal, que estão bem integradas e que são bons profissionais na indústria, e que até têm disponibilidade em considerar projetos de baixo orçamento, feitos cá e falados até em português. Mas isto, para o ICA, é absolutamente desinteressante, e até sentimos que é um bocadinho penalizador. Quando chega a parte da avaliação, o ICA está muito vocacionado para a Europa, para financiar projetos para produções europeias, eventualmente alguns da América Latina. Tudo menos os Estados Unidos. O que não deixa de ser curioso. No Tribeca, onde esta curta [Era Uma Vez no Apocalipse] foi exibida, tivemos a oportunidade de falar com o produtor Jon Kilik, na esperança de que ele nos apontasse alguns caminhos em termos de como obter financiamento na América, por exemplo. Mas o retrato que ele pinta é desolador.
TP: Tem existido ultimamente no cinema americano uma tendência para algo mais confortável, nomeadamente na produção de filmes que partem de histórias que sabemos que vão ser um sucesso ou as histórias da Marvel que já vêm de um universo de banda desenhada, já têm uma fanbase consolidada. Ou então remakes.
AMP: Andam sempre a contar as mesmas histórias, mas com uma roupagem diferente.
TP: Acho que também tem a ver com a renovação do modelo de negócio, das plataformas de streaming que trouxeram toda uma nova realidade. As pessoas já não se deslocam ao cinema tanto quanto faziam antigamente, portanto, os filmes estreiam em sala e, quase ao mesmo tempo, nas plataformas. Isso implicou uma mudança de realidade. Quando escrevia para a Première, ia ver praticamente tudo o que tinha estreado. Apanhava muito lixo, mas apanhava surpresas incríveis, e essas surpresas é que acho que estão cada vez mais raras, aqueles filmes independentes que, de facto, contam muito.
Vou fazer uma confissão. Quando me enviaram o filme, a minha primeira reação foi: «é mais uma curta que não vai conseguir contar a história toda em 20 minutos». Não estava preparada para a chapada de luva branca, porque vocês conseguem contar uma história do princípio ao fim, que está contida, mas que também pode ser o início de outra coisa qualquer, se um dia quiserem.
AMP: E queremos.
TP: Queremos e estamos no processo.
E têm uma equipa de peso e com muito talento: Luís Sequeira, Sérgio Godinho, Susana Cruz. É um risco fazer um filme comercial, de género, e com poucas «falhas»?
AMP: É sempre uma experiência estranha. O feedback tem sido bom, inclusive o internacional, porque, nesta tentativa de espalhar a palavra, temos mandado para críticos estrangeiros. Em dois casos, já conseguimos na Horror Buzz e na The Good, The Bad, and The Verdict. E ambos foram bastante entusiásticos relativamente à qualidade do filme, um deles refere que foi uma masterclass de representação, e todos eles realçam o facto de a história estar coesa.
TP: A nossa ideia é entrares naquele universo e sentires que aquilo é muito maior do que é, mas não sais daquela casa.
AMP: Por outro lado, estávamos à espera de que o impacto fosse maior, até pelo Sérgio Godinho, por exemplo, que é uma figura que toda a gente conhece e tem a projeção mediática que tem, para o ver completamente fora de água neste papel. Mas não tem tido o entusiasmo que esperávamos, a recetividade. Críticos e outras pessoas que vivem isto com mais intensidade reconhecem esse valor, mas de alguma forma, depois, com programadores e pessoas que podiam ajudar a divulgar o filme — e se calhar o próprio público, não sei — isso é um fator que parece não pesar muito.
TP: O formato de curta também não ajuda, é difícil de vender.
AMP: Para efeitos de festivais, é limitador.
TP: Os tutoriais que existem sobre o assunto dizem que uma curta com mais de 10 ou 15 minutos começa a ser difícil de programar.
Mas estiveram no MOTELX. Portanto, conseguiram encaixar o filme na programação, apesar de estar fora de competição. Pela duração?
TP: Sim, por ter mais de 15 minutos.
AMP: E depois no Fantas, fora de competição porque já não era estreia, como tínhamos estreado no MOTELX.
O que não faz muito sentido no mercado nacional.
TP: Sobretudo nas curtas, não faz sentido nenhum. Ainda por cima em festivais em que um é em Lisboa e o outro no Porto. Que exijam uma estreia na cidade, até percebo; mas estreia nacional ficas completamente limitado a um festival.
AMP: Parece que a oferta é assim tão grande e tão boa e tão diversificada que podes dar-te a esse luxo [de cada festival exigir uma estreia nacional].
TP: Mas estamos agora a tentar adaptar esta história a um formato longo. Estamos a escrever a versão longa desta curta porque temos potencialmente umas pessoas interessadas em produzir o filme.
O filme tem essa vantagem, de ser local e universal ao mesmo tempo. Qualquer pessoa em qualquer lado do mundo vai perceber a história, mesmo sem contexto social ou político. Não precisam de estar por dentro da história. E isso é muito complicado porque o cinema português de género vai para duas tendências: ou tenta fazer uma coisa muito colada ao que se faz lá fora ou tenta fazer uma coisa tão portuguesa que nunca vais conseguir exportar, porque ninguém vai perceber o que está por trás.
AMP: Falta o meio-termo.
TP: Nós dizemos isto há anos. O cinema português parece ser uma dificuldade histórica em existir no meio desses dois limites. Ou fazem um filme português que imita os americanos e que o faz quase sempre pior, de uma forma tão genérica, tão generalista, que se torna uma coisa completamente anónima, ou então fá-lo de uma maneira tão intelectual e elitista, tão específica daquele cinema de autor [que não chega a todos]. Não tenho nada contra, qualquer linguagem tem o seu lugar. Mas em Portugal parece que a linguagem que fica no meio destas duas não tem lugar. Não percebo muito bem se é por falta de interesse dos artistas de ocuparem esse lugar ou se existe aqui uma falta [desses artistas].
Fala-se muito da democratização do cinema e de que a inteligência artificial vai ajudar, mas acho que não é isso que resolve o problema. Sinto que Portugal continua a ser o país dos contactos, das pessoas que se conhecem todas.
AMP: Podemos queixar-nos muito da falta de orçamentos, da dificuldade de financiamento — e é real, por isso é que eu e o Tiago ainda não temos conseguido fazer uma longa-metragem —, mas a verdade é que muita gente consegue financiamentos do ICA que não são nada maus, quando comparamos com financiamentos internacionais. Acho que, nesse aspeto, somos privilegiados. Mas é preciso boas ideias, e também haver uma visão, e o realizador não se limitar à preocupação com a fotografia e à mise-en-scène, preocupar-se também com a entrega dos atores. Que os atores até apreciam.
É mais difícil dirigir atores que já tenham grandes carreiras?
TP: Tive oportunidade de dirigir grandes atores portugueses, e a experiência tem sido sempre positiva. Convém termos confiança na nossa visão, isso é importante. Se eu não tiver confiança nela, todas as pessoas à minha volta não vão ter confiança em mim. Por exemplo, a Carla Chambel, que é das melhores atrizes em Portugal, disse-me que adorava trabalhar comigo porque dirijo os atores, e ela adora ser dirigida porque lhe dá confiança. O ator não tem de ter a visão global do filme, nem lhe é pedido que tenha. Se ele sentir que tem um realizador que o está a guiar, sente-se muito mais confortável para poder ser dono da sua arte.
Mas, como realizador, dás espaço para outras pessoas opinarem sobre a tua visão? Tens uma pessoa de confiança que te pode dizer abertamente «isto resulta» ou «isto não resulta»?
AMP: A nossa parceria tem funcionado bem. Não estamos sempre de acordo, mas é nesta confrontação de ideias, nesta dialética, que conseguimos burilar e polir as ideias que vão surgindo. Chegamos ao fim, e ambos sentimos que o que resultou desta troca é algo melhor. É melhor do que a soma das partes ou do que as partes isoladamente. Fico mais satisfeito com o que resulta disto do que com a minha ideia inicial.
Não há ego.
TP: Nesta parceria, o meu ego é mínimo. O que quero é que aquilo que funciona no final seja o melhor possível. Portanto, o que é que me adianta estar a martelar numa ideia que até sei que não é tão boa, mas que vou teimar só porque sim?
AMP: Às vezes, acho que uma ideia é muito boa e insisto uma vez, e ela volta para trás e é rechaçada. Eu ainda volto [a insistir], porque acredito na ideia e, quando à segunda e à terceira, ele insiste que não, começo a pensar que, se ele está tão convicto de que isto não resulta, se calhar mais vale abandoná-la. Há essa plasticidade.
No filme, esse espírito de equipa, de colaboração, também se nota na direção de arte que esteve a cargo do Luís Sequeira. Como é que chegam a ele? Porque, numa entrevista à Fábrica, ele já tinha demonstrado o interesse e a vontade de trabalhar mais em Portugal.
AMP: Já tínhamos tentado para o Projeto Delta. [Quando surge este filme], mandei-lhe uma mensagem pelo Instagram e ele aceitou.
Obviamente que, com a carreira dele, ele já está naquela fase de vida que, quando diz não, é porque ou não quer ou não pode.
TP: Exato, ele é muito solicitado pela indústria americana, portanto não vai deixar de aceitar um trabalho lá em função de um trabalho cá pro bono.
Se ele disse que sim ao vosso projeto, é porque viu qualquer coisa nele.
TP: Sim, acho que ele acreditava em toda a visão.
E como é que chegam ao Sérgio Godinho? Aliás, porquê ele? Quando estavam a escrever, era ele que aparecia na vossa cabeça para aquela personagem?
TP: Nesta longa-metragem de que estávamos a falar há pouco, temos o Sérgio como personagem principal e, quando escrevemos esta curta, foi quase natural pensarmos que era um ótimo balão de ensaio para ver se resultava. Não o conhecíamos, [não sabíamos] como é que ele era a trabalhar, se era muito acessível. Costuma-se dizer «nunca conheças os teus heróis», mas, no meu caso, ainda bem que conheci o Sérgio; é um banho de humildade. Ele fez parte de todo o meu background, da minha infância. Toda a banda sonora que ele foi criando ao longo da vida dele faz parte do meu imaginário. E, depois de o conhecer em plateau, a trabalhar como ator, fiquei realmente fascinado. É uma pessoa de uma grande humildade, de uma grande acessibilidade, não há nada a apontar.
AMP: Uma pessoa que recebe indicações e não fica crispado com isso.
TP: Uma pessoa de uma humildade e de uma generosidade…
Ele passa essa imagem, mas claro que uma pessoa, às vezes, passa a imagem e depois na vida real é outra coisa. E, já agora, porquê a Susana Cruz? Como é que chegam a ela? Ela agora trabalha mais em adereços, mas na altura trabalhava mais em caracterização.
TP: Fui pesquisar no Instagram e descobri o trabalho incrível dela, que não é fácil de encontrar em Portugal. Alguém que faça aquele detalhe de make-up de terror, que precisávamos efetivamente para o filme.
AMP: Não sei se já a apanhámos nessa fase de transição da caracterização para os adereços, ou se fomos nós que provocámos essa mudança.
TP: A Susana fez o adereço que é fundamental no Era Uma Vez o Apocalipse, a bengala.
E o que podemos esperar desta dupla nos próximos tempos?
AMP: Estamos na fase da escrita de argumento da versão longa, temos potenciais interessados [para produzi-la].
TP: E podemos adiantar que estamos a escrever em inglês, porque os potenciais interessados são de uma empresa americana.
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Sandra Henriques
Sandra Henriques estreou-se na ficção especulativa em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada». Desde aí, publicou contos em várias antologias de terror nacionais e internacionais e contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.