Entrevista à autora Raquel Fontão

«Será de Madrugada» é a sua obra mais recente.

«Não é só o sombrio, não é o receio, não é o medo. Às vezes, a tristeza também é terror. É por isso que também exploro muito esse tema.»

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Laura Silva

Olá, Raquel. És professora, música, escritora… és mãe. Há mais alguma coisa que te falte fazer?

Não, espero não me meter mais em mais nada [risos]. Chega de aventuras, [isto] dá muito trabalho… Quer dizer, se aparecer alguma coisa que me apaixone, acabo sempre por querer esse desafio, mas estou bem como estou.

E no meio disso tudo, como é que arranjas tempo para escrever?

O tempo é muito complicado; chego ao final do dia mesmo muito esgotada, mas são fases da vida. Tenho três filhas, mas duas [são] muito pequenas. Portanto, há três anos e meio que não durmo [risos]. Giro com o pai o tempo como posso. [Escrevo] um bocadinho à noite; às vezes, nos intervalos das aulas; às vezes, na hora do almoço… Se chego mais cedo à escola, consigo escrever um pouco… É um bocadinho difícil de gerir. Mas, como gosto mesmo de escrever, consegue-se.

Considerando isso, costumas criar algum plano para escrever as tuas obras ou é conforme o feeling no dia?

Nem é o feeling, nem tenho nenhum plano. Eu não faço outlines. Penso muito na história antes de começar a escrever, mas fica tudo na cabeça. O máximo que consigo fazer é uns brainstorms no meu caderno. Tenho de construir bem a personagem dentro da minha cabeça, os seus motivos, quais são as partes de terror que quero que apareçam na história… Mas não crio nenhum plano. Aquilo que faço é, durante a semana, [quando] escrevo, ter já na mente o capítulo ou a cena que vou fazer, mas depois, a escrever, deixo-me levar por aquilo que as personagens me ditam. Não faço nenhum outline de capítulos porque não consigo trabalhar dessa maneira.. E tira-me a pressão da escrita.

Então Será de Madrugada também surge um pouco assim…

Foi o primeiro livro que escrevi em formato mais longo. Eu sou uma escritora muito intuitiva, e acho que tenho uma noção da estrutura normal de um romance. Portanto, sabia que tinha de ter ali uma estrutura muito maior do que uma novella ou do que um conto. Tinha de ter um número maior de personagens, essa estrutura da história a que não estava tão habituada. Porque eu só escrevia contos. E cheguei a escrever uma novella, Insanidade. [Agora], tive de pensar um bocadinho mais: como é que vou alongar uma estrutura [a] que não estou habituada? O prólogo saiu como tudo o resto me costuma a sair na escrita: saiu-me e pronto. [Depois, tive de] começar a pensar: como é que vou aumentar o número de palavras? Como é que vou aumentar aqui estas personagens? Apaixonei-me pela música do Piazzolla, que é Balada para Mi Muerte, e Será de Madrugada vem da inspiração que tive dessa música, [em que] disse: «agora vou ter de transformar isto em história». Foi a partir daí que fui construindo personagens. [Por exemplo], pensei que a Maria, a personagem de 1962, seria a personagem principal, e é uma das personagens principais, mas disse: «não, agora vou ter de enveredar por outro caminho; se calhar, uma personagem masculina». Comecei a pensar mais nessas coisas, a experimentar um bocadinho, e acabei por seguir o rumo normal que sigo na minha escrita, que é deixar-me levar pela história.

O prólogo, sem dúvida, é um baque enorme. Às vezes, estou a lavar a loiça e lembro-me dele [risos]. Eu fui à tua apresentação no Fórum Fantástico e, a certa altura, disseste que havia algo que querias explorar no livro por seres mãe, porque querias respostas e, mesmo assim, não as encontraste. É daí que surge esse prólogo também?

É. Queria sentir alguma empatia, tentar perceber o que faz uma mãe querer matar os seus filhos. Não estou a dar spoilers, porque é o prólogo, não é? [risos] Às vezes, quero explorar essas questões da maternidade, [porque] as mães são todas diferentes. Mas não consegui encontrar essa empatia, embora a história da Maria seja triste. Eu escrevo muito sobre a maternidade, por isso é que queria esse choque. Queria perceber e também escrever algo em que as pessoas pensassem: «não, eu não gosto desta personagem», mas depois, ao ler a história, acabassem por simpatizar um bocadinho com a história dela. Mas a resposta que ela encontrou para sair dali não era a resposta certa. Para mim, não é a resposta certa, nunca é.

Jogas muito com a dualidade do ser humano; há o lado da empatia, mas ao mesmo tempo também a parte mais negra. Aliás, nos contos que tens na Fábrica do Terror, misturas muitos elementos que parecem inocentes com coisas que, na verdade, não são nada inocentes. Consideras que isso é um pouco o teu cunho pessoal, essa exploração da inocência versus a negrura das coisas?

Sim, a ideia é essa, encontrar as trevas na simplicidade. No fundo, não somos inocentes. A inocência é uma coisa muito pueril. É uma coisa muito bonita, mas que, ao estragar-se, é muito triste. Não é só o sombrio, não é o receio, não é o medo. Às vezes, a tristeza também é terror. É por isso que eu também exploro muito esse tema.

Faz todo o sentido. Lá está, em Será de Madrugada, também exploras isso com várias personagens, ao longo de toda a trama. Apesar de teres o conceito de casa assombrada, a casa é quase um reflexo, é quase um acessório.

Acaba por ser uma construção da assombração das próprias personagens. A ideia era criar essa dúvida no leitor: será que é a casa ou será que são as pessoas que estão assombradas? Assombradas no termo de vícios, de miséria, de mente humana, dos nossos castigos. A casa é mais um reflexo disso mesmo. É o espelho daquilo que vivemos como humanos; neste caso, da família Romero. Tudo acaba por ser essa corrupção, o fruto dessa assombração das personagens.

Ainda pegando um pouco na música, disseste que as músicas do Piazzolla te inspiraram muito para o Será de Madrugada. Sentes que a música agora nunca te vai largar quando diz respeito a obras de terror ou foi um caso único?

Estava a pensar nisso hoje de manhã [risos]. Estava a lembrar-me de algumas histórias ou alguns projetos que estou a escrever e pensei: «acho que a ideia que as pessoas agora têm é de que tudo o que eu vou escrever se vai relacionar com música». Acho que não é preciso ir por aí, [nem] tudo aquilo que escrever no futuro se irá relacionar com música. Mas acho que vou ter de dar um bocadinho mais de atenção a isso. Gosto de explorar este tema de música escrita em quase todos os projetos que estou a desenvolver. O último livro que escrevi (ainda estou no primeiro rascunho, portanto, só daqui a dois anos é que, se calhar, irá ver a luz do dia [risos], se sair da minha secretária) tem a ver com música. O próximo tem a ver com música. [Mas] um que já está em processo de edição não tem a ver com a música. Tem a ver com a maternidade, por isso, acho que as pessoas podem esperar isso de mim: ou maternidade ou música, por enquanto. Eu espero que assim seja, porque a estrutura de uma história é muito semelhante à música: os silêncios, os espaços em branco, o ritmo das frases. E a ideia que quero incutir nas minhas histórias é mesmo chegar a esse ponto, que é o de conseguir transmitir um ritmo muito bom na prosa — ainda não estou lá, [mas] espero ainda ter muito tempo para o explorar.

Já deste o tango. Se calhar, as pessoas vão ficar à espera de outros géneros [risos].

Ideias não me faltam! Sempre tive a ânsia de escrever algo com música clássica, de explorar outro tipo de música na escrita. Portanto, por enquanto, isso pode acontecer.

E a verdade é que existe um grande paralelismo entre música, seja com letra ou não, e a escrita.

Até estou a falar mais de instrumentais, a estrutura é completamente similar: estou a falar de fugas, o género de música, as repetições dos temas. Tem tudo a ver com a estrutura da escrita e, para mim, é muito mais fácil pensar nisso, até, do que estar a pensar numa estrutura de prosa, de linguagem. É-me mais fácil pensar em teoria musical e passar [a história] para a escrita, para a prosa, a repetição de compassos, repetir aquele tema, inserir aquelas pausas. Para mim, é o essencial na linguagem também, e há muita semelhança entre as duas coisas. [Por exemplo], quando há um sistema enorme com mais naipes a tocar, ou seja, com muitos instrumentos, é aquele ruído com mais personagens. Uma cadência ou solo de um instrumento é a cadência de uma personagem.

Sim, notava-se muito essa conexão. Eu não sou de música, mas lembro-me de estar a ler Será de Madrugada, e a forma como introduziste e associaste o tango transparecia muito no texto em si, até pela forma como construíste a história. Notava-se que havia momentos que eram pausas. Momentos que eram a tal cadência, momentos em que havia ruído. Acho que, de facto, tens aí o processo muito interconectado.

Eu não tenho tempo para estar a pensar ou para explorar uma estrutura mais convencional da escrita. Tem de ser tudo muito intuitivo. Depois, na parte das edições, acabo por sofrer mais um bocadinho, porque esta intuição também acaba por ser um bocadinho mais desestruturada. Mas é isso, eu já toco piano desde os três anos, tenho 38; são muitos anos no mundo da música, quer queira quer não. Aliás, segui música porque era o caminho mais fácil, era o que eu sabia fazer. E [para] explorar a escrita, que também sempre me apaixonou, tem de haver esta ligação entre as duas.

Tu és mais uma música que virou escritora do que propriamente o contrário.

Sim [risos], é isso mesmo.

Para escrever uma história de terror, sentes que essas pausas são essenciais para contares a história, para deixares o leitor preencher os buracos com a imaginação?

Sim, para mim, o silêncio é o mais importante, tanto na música como na escrita. Quando vejo um texto muito preenchido, [como] aqueles livros formatados sem margens, aqueles parágrafos enormes, fico completamente perdida. Não consigo estar a pensar no que se passou antes. A minha atenção acaba por ser muito desprendida. E acho essencial ter essas pausas, essa calma, para deixar o leitor assimilar o que acabou de ler: o susto, o incutir de um novo  receio. Se for tudo muito seguido, o leitor acaba por se perder. Eu acho [que] escrevo como quero ler, acho isso muito importante.

Sim, acho que o truque costuma ser esse: se gostas de ler, mais alguém vai gostar também. E deixar o leitor preencher as pausas também é importante. Faz-me lembrar o final do Será de Madrugada, que permite que o leitor continue a história na sua cabeça. Uma pessoa até fica a pensar: será que vai haver mais?

Se calhar! 

Ai, Raquel, ai que eu fico já aqui entusiasmada! [risos] Vê lá, não prometas essas coisas! [risos]

[risos] Para mim, vai haver mais. Se verá a luz do dia, já é diferente! Depois, logo se vê se a minha editora quer. Mas, já que tocaste nesse ponto, acho que há aí mais tango para explorar.

O que é que podemos esperar depois do sucesso que foi Será de Madrugada?

Espero continuar a escrever contos, [pois está associado] àquela ideia de estar a explorar a minha linguagem, a minha voz; espero continuar a escrever, espero continuar a submeter à Fábrica do Terror e, se puder ser publicada, melhor [risos]. Também antologias, também tenho essa ideia. Estou a escrever agora um livro — acabei o primeiro rascunho e quero editá-lo ainda este ano, para depois submetê-lo no próximo ano. Também é relacionado com música. Também estou a escrever um livro de não-ficção sobre a música e a escrita, mas esse ainda vai demorar. Os meus projetos demoram sempre. Porque isto [de] ter sessões de escrita diárias de quinze minutos, dez minutos aqui e acolá, por mais vontade que a gente tenha, faz com que as coisas não evoluam tanto como se tivéssemos mais tempo. Tenho também um projeto que está a ser editado agora, na editora, que talvez saia este ano [2025].

Excelentes notícias.

Sim! E vou escrever mais. No prazo de dois anos, tenho pelo menos três livros para escrever. [Mais] para a frente, vamos ver.

Até agora, do que sei, a tua escrita foi sempre muito focada no terror. É sempre esse o género em que te vês a escrever ou imaginas-te a ir para outros lados, tirando esse de não-ficção que já mencionaste?

Sim, o de não-ficção é algo que acho que vai ser único. Embora adore ler não-ficção, não é algo que queira seguir como escritora. O género de terror vai ser sempre o meu género predileto. E vou tentar explorar quase todos os meus projetos nisso. Gostava de experimentar um policial, mas não thriller; aquele policial cosy, tipo Agatha Christine, mas isso é difícil [agora]. Se calhar mais tarde, quando tiver quase a idade da Miss Marple [risos]. Por enquanto, vai ser só terror. Também gosto muito de literatura. Aliás, foi aí que começou a minha paixão por terror, porque há muito terror literário. As pessoas têm aquele preconceito de chamar terror à literatura. [Por exemplo,] Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, de Afonso Cruz, é terror. Outros que são terror: do José Saramago, o Ensaio Sobre a Cegueira. A Samanta Schweblin também só escreve terror. Mesmo Os Prémios, [de] Julio Cortázar, é terror. Portanto, gosto muito de literatura, e terror literário é o género que quero alcançar. Mas sempre dentro dessa narrativa muito sombria, muito triste. A tristeza também tem um cunho de terror. [Acho que] o terror é explorar esses receios dos leitores. E, às vezes, não é o receio de um corpo mutilado. O meu maior receio, por exemplo, é perder um filho. Isso é tristeza, não é aquele terror corporal, não é um terror gráfico. É apenas mesmo muito triste, muito mau, e é isso que quero explorar, esses meus receios na minha escrita.

Sentes que o mercado português tem um preconceito com o terror?

Sinto, tanto internacional como nacional. Acho que há mais livros nacionais de terror [à venda] do que internacionais. Há mesmo esse preconceito nas outras editoras [portuguesas]. A Divergência, por exemplo, é uma editora que sempre apostou no terror. A Fábrica do Terror veio-nos ajudar imenso a dar voz e visibilidade ao terror, finalmente. A Fábrica tem tido um papel excelente. Mas, nas outras editoras, não vês nada, nem sequer vês terror internacional publicado cá. Vês um caso ou outro. Ou só vês Stephen King, pronto. É o único que é publicado [cá]. De resto, não vês nada. Vês talvez dois ou três livros de terror publicados em Portugal num ano editorial. Há muito esse preconceito e não é dos leitores — acho que é muito mais do mercado; os leitores procuram sempre. Embora haja agora esta moda dos thrillers e, portanto, [por vezes], se for terror, as editoras publicitam como sendo thriller — mascaram muito as coisas por causa desse preconceito. Mas estamos aqui para isso, não é?

Claro e, sinceramente, acho que tem havido também algumas mudanças no mercado.

E acho que há mais procura por parte dos leitores. As pessoas acabam por ler os livros de terror e dizem: «ah, afinal até gostei». Depois, pegam noutro e dizem: «ah, afinal terror até é bom». E também depende da faixa etária. Temos aquela ideia [do terror] dos anos 70-80. O terror aparecia nas revistas, aquele terror muito comercial. Acho que as pessoas ainda o associam muito a isso. É o que eu digo, [acho que] acabam por ler muito terror literário e nem se dão conta disso.

Eu acho que as pessoas associam o terror àquela questão gráfica, para dar nojo, e às vezes não é. Às vezes, é mesmo só uma exploração psicológica do terror.

Aliás, há pouco terror mórbido; aquele terror que choca não há assim tanto. Agora, há mais psicológico. Antes, exploravam mais esse [terror mórbido]. Pelo menos, é a ideia que tenho como leitora.

Também tenho sentido isso. Acho que os autores também têm tentado explorar mais essa vertente.

Sim, também concordo.

Ficamos a aguardar os projetos de 2025. Pessoalmente, fico a torcer pelo Será de Madrugada 2.

[risos] Está bem, mas, se aparecer, não se chamará Será de Madrugada 2. [risos]

[Risos] Sim, dá-lhe um título melhor, que eu não tenho jeito para isso!

Vamos ver. Ainda vou ter de escrever, mas vou escrevê-lo para mim. Se a minha editora o quiser, depois vê-se, mas vai sair, porque eu preciso mesmo disto — de deitar cá para fora as minhas histórias, nem que fiquem só para mim. Se saírem para fora, melhor ainda.

Exato, espero que as tuas histórias continuem sempre a encontrar casa.

Desde que esteja cá fora, o que me interessa é que as histórias encontrem leitores. E que haja mais leitores de terror, que é o que nós precisamos, que as pessoas acabem por ler e digam: «afinal, até gostamos». Porque nós temos os nossos leitores nicho, os nossos leitores fiéis. Os leitores que gostam de terror procuram tudo, procuram qualquer terror que exista, qualquer escritor. Eu, quando vejo um livro de terror a ser publicado em Portugal, vou comprá-lo, mesmo que depois não goste, mas vou comprá-lo! Nós temos esses leitores. Agora, é preciso largar esse preconceito e alargar o género a outros leitores também. E a Fábrica está a fazer isso, acho que nos está a dar muita visibilidade. 

 

Nota editorial: 

A versão em áudio pode não corresponder na totalidade ao texto que aqui publicamos. A versão em texto da entrevista foi editada para, entre outros aspetos, limar traços de oralidade e condensar algumas respostas por uma questão de coerência.