Alma Penada
Já todos ouvimos este termo, certo?
É um fantasma. Um ser do imaginário português agarrado às suas penas. Mas talvez estas particularidades revelem qualquer coisa sobre os vivos.
Alexandre Parafita fala-nos da crença rural segundo a qual as almas que carregam culpa enfrentam um de dois destinos possíveis: o Inferno ou o Purgatório, sendo o primeiro eterno, irremediável, e o segundo representando a oportunidade de redenção. Neste caso, as almas regressam ao mundo dos vivos e procuram formas de se redimir dos seus pecados. Estas almas são chamadas na literatura orla de «mortos mal mortos», que atormentam e perseguem os vivos.
Num outro artigo da Fábrica do Terror, falou-se do ritual da «encomendação das almas», e esta cerimónia relaciona-se também com a alma penada, enquanto meio de atenuar as penas que os espíritos enfrentam no Purgatório. O «Resgate das Almas» é outro ritual do género, que assenta na crença de que Santo André das Almas «tem o poder de libertar as almas dos pescadores que naufragaram no mar». Como estes, há muitos outros rituais espalhados pelo país.
Já José Leite de Vasconcellos salienta que a alma penada é um ser que morreu com dívidas pendentes e que regressa ao mundo dos vivos para rogar a um ente querido que lhe salde a dívida. Esses vivos devem então despejar uma saca de painço do alto de uma ponte e recitar os versos:
«Triste alma penada,
Vae para sempre degradada,
Por esse mundo alem,
Tantos anos quanto tem
A saca que vou despejar:
Vae p’ra nunca mais voltar!»
Leite de Vasconcellos relata também que, no Algarve, de sete em sete anos, aparece uma alma penada «na figura d’uma zôrra, e que, se algum mortal a arremeda, é perseguido pela sombra d’ella até à morte». A esta figura chamam a Zôrra berradeira. Aqui, a crença da alma penada é singular, pois esta transforma-se «em varios animaes, vagueando assim por alta noite pelos campos, juntos das egrejas e cemitérios».
Sobre as crenças de Trás-os-Montes, destaco o texto de Francisco Gouveia, um documento que pertence à obra Não Há Terra Como a Nossa (Contos serranos – Volume II), supostamente publicada em 2008, mas cuja existência não encontrei. Gouveia refere que esta ideia da alma que regressa do além geralmente se associa a pessoas que cometeram grandes maldades e que assombram os vivos mais assustadiços. Segundo o autor, vagueiam de noite — «e nas noites mais escuras» —, zurram, sopram ventos, gemem, arrastam correntes (uma imagem bem à Dickens) e ouvem-se a «gargalhar em eco».
Na minha pequena pesquisa, encontrei uma notícia do Público, de 2007, sobre uma mulher que encontrou almas penadas numa igreja. A entrevistada conta a experiência de uma mulher que viu um aglomerado à porta de uma igreja e, pensando tratar-se de uma missa, decidiu participar. No entanto, depressa percebeu que estava rodeada de almas penadas quando falou com dois homens, um que morrera tuberculoso e outro que morrera afogado.
Também no Público, Valter Hugo Mãe escreveu uma crónica em 2015 sobre as almas penadas que encontrava a vaguear pelos cemitérios antigos a caminho de casa. Conta que, no seu primeiro encontro com um destes seres, teve «um susto triste, porque havia uma noiva morta a olhar para mim com severo abandono, como se pedisse um amor a qualquer desconhecido».
Se é ficção, uma alegoria, ou uma metáfora, é outra questão…
Com base em todos estes testemunhos, parece-me evidente o que representa a alma penada: os receios da morte, e isso está longe de algo exclusivamente português. Contudo, quero salientar um certo fundo de bondade que este ser transparece, porque a ideia principal parece-me ser a da redenção, a crença na possibilidade de até a alma mais malvada pode encontrar salvação. A morte não é o fim da alma penada. E não precisam necessariamente de adotar uma leitura cristã. A capacidade de mudança está ao alcance de todos.
Parece-me, também, que a alma penada, tal como todos os monstros, é um espelho do ser humano. Reflete o que o atormenta, o que guarda dentro de si e que não deseja enfrentar. Mas apresenta a ressalva de que esses males não definem necessariamente um destino eterno.
Por isso, se virem uma alma penada, não tenham medo. Se olharem bem para ela, talvez descubram que se parece mais convosco do que pensam.
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Patrícia Sá
Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia «Sangue Novo». Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com «post-its».