Crítica a «A Dama Pé-de-Cabra», de Alexandre Herculano

Baseada numa lenda oral do século XI, foi compilada pelo autor no seu livro «Lendas e Narrativas», em 1851.

Esta é a versão mais popular da lenda, apesar de existir uma versão de Marialva, com contornos mais dramáticos, mas menos terroríficos.

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Laura Silva

Uma das coisas que sempre me baralhou ao crescer foi o facto de, em Portugal, não se ouvir falar de grandes lendas ou mitos sobrenaturais. Sempre me perguntei se simplesmente não haveriam, mas, num país em que muitos veem a Padeira de Aljubarrota como uma figura histórica real, claramente há mais por descobrir.

Talvez tudo esteja relacionado com a predominância do catolicismo no nosso país durante séculos; talvez a culpa seja a censura do Estado Novo que manteve certos eventos na obscuridade; talvez o problema esteja na falta de valorização da cultura portuguesa pelos próprios portugueses, que levaram ao fim da tradição oral de muitos destes mitos.

Imaginem a minha surpresa, então, quando procurava por esta obra online e descubro que «A Dama Pé-de-Cabra» consiste numa lenda portuguesa a que Alexandre Herculano decidiu deixar o seu cunho pessoal.

À semelhança de muitas outras histórias, tudo começa com um belo nobre a cavalo. Uma voz melodiosa chega-lhe aos ouvidos, e eis que a dama mais bela do reino lhe aparece à frente. O amor é imediato, naturalmente, pois nada nestas lendas é mais inspirador ao amor verdadeiro do que uma aparência divinal. D. Diogo pede a sua mão em casamento e recebe, como única condição, que nunca mais faça o sinal da cruz ou se benza, o que, por si só, já é indicador suficiente do que aí vem.


D. Diogo aceita — aliás, como penitência, compromete-se até a matar mais mouros (exceto nos Dias do Senhor, que cai mal derramar sangue nessas alturas!) — e só quando finalmente se deita com a sua senhora se apercebe que ela tem… pés de cabra.


Foi nesta altura que pensei que a obra me ia dizer para «não confiar em estranhos», não fossem eles levar-me «por maus caminhos», mas não — D. Diogo vive feliz durante vários anos, tem um filho e uma filha com a esposa, e tem a típica vida confortável de um nobre que apenas tem de pensar em comer, beber e caçar.

Até ao dia, claro está, em que um evento fora do normal o espicaça e ele se benze instintivamente — o caldo entorna, a sua esposa incorpora uma figura claramente demoníaca (que funcionaria maravilhosamente bem num filme de terror contemporâneo) e desaparece com a filha de ambos.

Daqui, o protagonismo passa para o filho de D. Diogo, e é através dele que conhecemos a origem da sua mãe e o que ela representa.

No fundo, além de «não faças pactos com o demónio» e «sê um bom cristão», a história de «A Dama de Pé-de-Cabra» mais não é do que uma recordação da importância de cumprirmos a nossa palavra — aquilo que nos torna verdadeiramente dignos e respeitosos, criaturas do bem e protegidas por ele. Desviar-nos da nossa palavra é também um pecado e, mais tarde ou mais cedo, vamos sofrer as suas consequências.

Se tenho algo a apontar, é o final, em que Alexandre Herculano decide não querer «improvisar mentiras», apesar de dar a entender o que acontece ao filho de D. Diogo. Tenho alguma pena que não se esmiúce mais essa parte, mas parece que a lenda original também não o faz.

Este conto, de diminuta dimensão, encontra-se disponível para leitura gratuita no Projecto Adamastor e é mais um excelente exemplo de como o terror sempre existiu no imaginário humano — nós é que tentamos sempre escondê-lo.

Trigger warning: referência à morte de animais num contexto de caça, ainda que não seja muito descritivo.