A Encomendação das Almas

Um ritual executado depois da meia-noite, todas as sextas-feiras da Quaresma.

De forma acidental, com cerca de 13 anos, tive a oportunidade de assistir a um ritual que, devo confessar, meteu respeito. Para mim, pelo menos, que não o conhecia.

De Liliana Duarte Pereira

 

Numa aldeia do distrito de Viseu, um grupo de pessoas, envergando mantos negros com capuz, mantinha os olhos fixos no chão, não sendo possível ver-lhes o rosto. Estavam parados, em forma de círculo, numa encruzilhada. Naquele local ermo, à noite, alumiavam-se por velas ou candeeiros a petróleo. Entoavam, em tom fúnebre, cânticos de louvor, penitência e súplica. Apenas as rezas ritmadas quebravam o silêncio absoluto.

Descobri, depois, que este ritual se chama a Encomendação das Almas e que acontece no período da Quaresma, encarado pelos crentes como uma fase de resguardo e reflexão. Os vivos são, nesta altura, relembrados da importância de não caírem em pecado, uma vez que só assim poderão evitar a entrada no Inferno.

Esta tradição secular e de cariz religioso é uma prática quase perdida no tempo, assume características diferentes consoante a zona do país e é cumprida, maioritariamente, nos meios rurais. É um ritual executado depois da meia-noite, todas as sextas-feiras da Quaresma.

Os participantes rezam por todos aqueles que já partiram do plano terreno; sobretudo, pelos que se foram abruptamente e que, por esse motivo, não dispuseram do tempo necessário para se prepararem para a passagem.

No fundo, é uma forma de se interceder pelos mortos, recomendando a Deus que perdoe os pecados dos que agonizam no Purgatório, para que possam assim alcançar o descanso eterno. Esta devoção às almas do outro mundo poderá estar relacionada com o medo da morte, a saudade, a dor da perda e o luto.


Dizem os supersticiosos que, quando esta tradição se cumpre, não é bom agouro abrir portas ou janelas, sob pena de as almas penadas entrarem pelas casas adentro. Na dúvida, não experimentem. 


Que o ritual de Encomendação das Almas perdure no tempo, servindo de lembrete para a importância do «não cair em tentação» e como forma de socorrer as almas encalhadas no Purgatório.

Considerando que os vivos de hoje serão os mortos de amanhã, que, por salvaguarda, se ouçam no período da Quaresma cânticos como este que se segue:

 

Acorda, cristão

Acorda, cristão, que és terra!
Lembra-te que hás-de…
Lembra-te que hás-de morrer!
Hás-de dar estreitas contas
Do teu bom e mau…
Do teu bom e mau viver!

Não sei que p’ra ali ouvi
Para os lados do…
Para os lados do Nascente;
Eram as benditas almas,
Estão no fogo…
Estão no fogo ardente.

Acorda, cristão, acorda
Desse sono em…
Desse sono em que estais!
Lembra-te das benditas almas
Que elas clamam…
Que elas clamam e dão ais!

Acorda, cristão, acorda
Desse sono tão…
Desse sono tão profundo!
Lembra-te das benditas almas
Que já estão no…
Que já estão no outro mundo!

Rezemos um padre-nosso
Com uma ave…
Com uma ave-maria!
Seja por o amor de Deus.

Acorda, cristão, acorda!

 

Letra e música: Tradicional (S. Miguel, Guarda, Beira Alta)
Intérpretes: César Prata e Sara Vidal (Cantos da Quaresma, Sons Vadios, 2018)

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