Entrevista à realizadora Sylvia Caminer e à argumentista Dani Barker, do filme «Follow Her»

Grande Prémio de Melhor Filme Fantasporto 2022
Prémio de Melhor Atriz e
Prémio de Escolha do Público

Realizado por Sylvia Caminer e escrito por Dani Barker, o filme Follow Her ganhou o Grande Prémio de Melhor Filme no Fantasporto 2022. Falámos com ambas antes da antestreia mundial deste thriller norte-americano.

 

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De Ricardo Alfaia

Muito obrigado, Sylvia e Dani, pela vossa disponibilidade em falar com a Fábrica do Terror. Podem falar-nos um pouco sobre o vosso filme?

Sylvia Caminer: O Follow Her é um filme de terror psicológico e, ao mesmo tempo, um thriller erótico. Foi escrito pela Dani [Barker] e é sobretudo uma reflexão sobre as redes sociais e a importância que lhes damos, a forma como avaliamos quem somos como pessoas, baseando-nos no amor e nos seguidores que temos, em pessoas que estão de fora a observar-nos. E é também sobre como uma jovem mulher está tão desesperada para ter sucesso e encontrar o seu valor que acaba por chegar a extremos e correr riscos que não deveria mesmo correr.

 

E a Dani escreveu o argumento?

Dani Barker: Escrevi muitas, muitas, muitas versões deste guião. [risos]

 

Quando iniciou a escrita, pensou em escrever logo como guião ou como um livro?

Dani: Essa é uma pergunta muito interessante, porque a minha intenção inicial era escrever esta história como um guião, mas depois de o fazer, nem de propósito, o meu irmão insistia comigo para escrever antes um livro. Ele dizia-me: «os guiões têm mais sucesso se o livro tiver sucesso». Mas eu pensava «como é que eu vou escrever um livro de sucesso?». [risos] Não é assim tão fácil fazer um livro. Por isso, a minha intenção foi sempre a de escrever esta história em formato de guião.

 

Bem, o filme vai ser um sucesso e depois pode escrever o livro baseado no filme! Como foi o vosso processo de trabalho juntas? Como é que surge esta parceria?

Dani: Foi o John Gallagher, uma das figuras icónicas de Nova Iorque, que me apresentou à Sylvia. Infelizmente, o John faleceu o ano passado e ele era um dos produtores executivos deste filme. Ao início, ele queria realizar o Follow Her, mas eu tinha uma ideia demasiado ambiciosa de quando ia conseguir fazer este filme e disse-lhe «vamos começar a filmar para o mês que vem! Daqui a um mês estamos em rodagem!». E ele disse-me «nessa altura, não estou disponível, mas conheço alguém que se calhar está, Sylvia Caminer, devias falar com ela». Resumindo, só começámos a filmar passado um ano e meio, mas todos os meses eu dizia «no próximo mês, começamos a filmar».

 

A Sylvia, nessa altura, estava sobretudo a realizar documentários?

Sylvia: Sim, estava a produzir muitos filmes independentes e realizei duas longas-metragens documentais. E fiz muita televisão, também, para o Discovery, para o Travel Channel e, atualmente, para a PBS.

 

E porquê esta mudança?

Sylvia: Há muitos anos que queria fazer um filme de ficção, mas o tempo foi passando. Estava ocupada, tinha contas para pagar e divirto-me com o meu trabalho porque tenho a oportunidade de viajar pelo mundo. Por isso, decidi que, quando realizasse o primeiro filme, teria de encontrar algo bastante comercial. Foi nessa altura que comecei a ler guiões para encontrar algo que fosse comercial, mas em que eu acreditasse, algo que me interessasse. Estava prestes a fazer uma oferta pelos direitos de um guião, mas houve uma proposta melhor do que a minha. Então o John contactou-me e, a partir daí, a ligação foi quase imediata.

 

Foi amor à primeira vista?

[risos]

Dani: Foi uma decisão muito fácil, porque a Sylvia compreendeu logo a história que eu sempre quis contar. Desde a nossa primeira conversa ao telefone que sentimos a mesma energia, estávamos as duas no mesmo comprimento de onda e sabíamos como falar uma com a outra. Os egos ficaram de fora e eu não pensei duas vezes em escolhê-la.

 

Isso é muito importante!

Sylvia: Há escritores que são tão apegados aos seus textos, e não é o caso da Dani. Essa é uma das suas maiores qualidades. Tem um enorme talento, acima de tudo, mas não tem medo de fazer as alterações ao texto que sejam necessárias. A atitude dela foi sempre «se vai melhorar o texto, então faz».

 

Como também desempenha o papel principal no filme, como é representar uma cena que também escreveu? 

Dani: Achei bastante difícil. Lembro-me de estar no plateau e pensar «eu nunca vou escrever algo sem fazer realização», e isto não reflete de todo o trabalho da Sylvia, porque ela é uma realizadora talentosa. Mas quando eu tenho uma imagem na cabeça, e penso que ela vai ser representada de uma determinada forma, é muito difícil ver os outros atores a representarem e não lhes dizer nada. Essa foi a parte mais difícil para mim.

 

É nessa altura que tem de pôr o seu ego de parte e dizer «não, é a Sylvia que está a realizar e ela sabe o que fazer».

Dani: Basicamente. Mas eu falei quando achei necessário. Se havia alguma coisa que estava muito fora daquilo que eu pensava, alguma coisa que tivéssemos de refazer, eu lembro-me de falar com a Sylvia sobre isso. Houve efetivamente alturas em que falei porque senti essa necessidade, mas na maioria das vezes deixei o papel da realização para ela.

 

É uma questão de confiança? Confiança cega na outra pessoa? 

Dani: Acho que, se nos conhecêssemos antes deste filme, seria mais fácil dizer «OK, ela sabe o que está a fazer». Como era a primeira vez que trabalhávamos juntas, havia um certo grau de confiança, porque ambas conhecíamos a história que queríamos contar, mas não nos conhecíamos há tempo suficiente para dizer coisas do género «tu sabes fazer isto». Era mais «eu espero que tu saibas fazer isto». [risos]

Sylvia: E para dizer a verdade, eu tinha a mesma preocupação. Eu nunca tinha visto a Dani representar e isso era uma enorme preocupação. E pensei «será que vou estar a realizar um daqueles filmes que a protagonista escreveu e ela é horrível?». E é impossível fazer um filme sobre uma rapariga se ela não souber representar.

Dani: Há alguns anos que eu não representava também. Tinha abandonado a indústria [dos filmes] por algum tempo, tinha feito uma pausa deliberada, por isso também estava muito nervosa.

 

Houve algumas cenas que tenham sido difíceis de representar? Porque eu sei que houve alguns desafios.

Dani: As cenas mais difíceis para mim foram no primeiro dia de cada gravação, porque a produção se prolongou ao longo de dois anos. Nós filmámos, parámos para angariar mais dinheiro e depois filmámos o resto. As gravações no celeiro com o protagonista masculino foram as primeiras, e isso foi intencional. Porque queríamos finalizar as filmagens com ele e no celeiro para depois filmarmos a abertura. O primeiro dia no celeiro foi o mais difícil porque era uma cena de sexo e não estava previsto começarmos logo com essa, mas tivemos de o fazer por causa do tempo. Essa cena exigia muita confiança como personagem, e eu estava bastante nervosa. Felizmente, conseguimos adiá-la para o dia seguinte, e tive mais tempo para me preparar. Mas, no geral, acho que não tive muitos problemas. Eu conheço esta personagem tão bem, ela é uma mistura de partes de quem eu era antes, mas também tem partes que eu gostaria de incorporar. Com bastante mais conhecimento do que aquele que eu tinha quando fazia a minha web series, por isso eu conhecia esse mundo da web series. Mas tentar encontrar essa confiança nela, isso é outro nível de conhecimento, porque eu era bastante ingénua [na altura].

Sylvia Caminer

Dani Barker

Há alguma vantagem em ser uma mulher a realizar este filme?

Sylvia: Tipicamente, os thrillers eróticos têm sido dominados por realizadores masculinos, e chegou a altura [de mudar isso], e há mais mulheres a ver esse género pela sua perspetiva. Mas o filme pode parecer que foi realizado por um homem, eu acho que não se nota a diferença. Não é sobre o empowerment feminino, não é esse tipo de thriller. Na realidade, é mais sobre uma mulher que é manipulada. Mas ela está a fazer isso a si própria. Sim, há fatores externos e o protagonista é um homem, mas acho que, para compreender a personagem e a ameaça a ela como mulher, é melhor que seja [uma mulher a realizar]. É engraçado, e eu não vou revelar muito sobre o filme, mas, se recebermos algum retorno negativo sobre algumas das cenas, essas reações vão vir de homens que dizem «ela não seria capaz de confiar assim, sem mais nem menos». Como mulher, posso dizer que «sim, ela seria capaz». E a Dani pensa o mesmo.

Dani: E eu passei por isso! Tenho provas!

Sylvia: Eu acho que eles projetam essas ideias nas suas filhas ou namoradas e pensam «a minha filha nunca faria isso». Detesto dizer-vos isso, mas fariam! Com um homem australiano bem-parecido, fariam. Hitchcock é um dos meus heróis. Eu gosto mais de assustar através da imaginação e da sugestão do que mostrar. É deixar pistas. O Hitchcock era um mestre ao deixar que, muitas vezes, os espectadores estivessem um passo à frente da personagem principal, por isso deixámos algumas pistas visuais no Follow Her, das quais as pessoas podem não se aperceber à primeira, se só virem o filme uma vez. Ela acha que está em segurança, mas não está, e os espectadores sabem isso muito antes de ela saber.

 

O Hitchcock é uma das suas principais influências? 

Sylvia: Em relação a este filme, sim, sem dúvida, mas no geral eu adoro o cinema italiano, os filmes neo-realistas. Os filmes do início de carreira do De Sica e de Fellini. Claro que também gosto muito dos primeiros filmes do Scorsese. Gosto muito do John Sayles, e da forma como ele realizou o City of Hope, e do John Cassavetes. Eu penso que a Gena Rowlands e a Giulietta Masina eram algumas das melhores atrizes de sempre. A expressividade delas. Eu adoro noir.

 

Notei a influência do noir em algumas cenas, sim. Como fotógrafo, presto muita atenção ao visual. É importante para a Sylvia colocar as personagens no visual certo?

Sylvia: Sim. Nós procurámos muito bem os locais para as filmagens. [Há quem diga] que, se a localização e os atores forem os certos, o realizador só tem de se certificar que ninguém vai contra a mobília. Eu não acredito totalmente nisso, mas em algumas situações é verdade. Se encontramos a localização certa — e encontrámos, o local principal é espetacular. Houve uma ou duas das quais tivemos de desistir porque não tínhamos dinheiro.

 

Noto que vocês têm uma ligação muito forte e que trabalham bem em equipa. Foi difícil fazer este filme de duas mulheres (argumentista, produtora e realizadora) numa indústria cinematográfica dominada por homens?

Dani: Angariar dinheiro foi provavelmente mais difícil por sermos mulheres. Eu tenho noção de que me fizeram muitas mais perguntas, como «quem é a Sylvia?», «porque é que confias nela?». E eu acho que não perguntariam o mesmo a um homem. Estas perguntas eram recorrentes e sempre feitas por homens. Não caía bem.

Sylvia: O meu pai era alemão, e não estou de modo algum a subvalorizar a experiência das mulheres na indústria, mas ele deixava-nos fazer tudo. Nunca sentimos que tínhamos limites por sermos raparigas. Por isso, acho que nunca tive essa visão do mundo, nunca o senti na pele. Talvez tenha sentido por causa da idade, porque tinha uns 20 anos quando comecei. Mas eu sei que existe. A minha carreira como realizadora provavelmente teria sido mais fácil e angariar dinheiro teria sido mais rápido, mas nunca deixei que isso fosse um obstáculo. Quando olhamos para os números em Hollywood, notamos que há mais filmes realizados por mulheres nos últimos dois anos, mas antes disso não chegava a 7%, o que é de loucos. E na televisão, ainda é bastante mau.

 

Isso é tema de conversa nos Estados Unidos e no Canadá?

Dani: Há imensa discussão à volta disso, sim. Eu trabalhei num filme em que a equipa era maioritariamente composta por mulheres e nota-se a diferença. No meu caso, tenho lidado com a misoginia na indústria desde que comecei a minha carreira.

Sylvia: Na parte da representação, sobretudo?

Dani: Sim, sobretudo na parte da representação, e é bastante preocupante. Tem sido muito difícil ser respeitada, ter uma voz e ser tratada com o mesmo respeito. Sentir que me menosprezam, que me calam, ou fazer com que sinta que estou maluca, ou que o que eu digo não é importante, ou que devia ignorar o meu desconforto. Como atriz, tenho lidado com tudo isso. Durante o Follow Her, não senti isso uma única vez. E acho que é importante refletirmos sobre isso, destacarmos isso.

Sylvia: Acho que está relacionado com a forma como tratamos as pessoas em geral. Quando comecei a minha carreira, trabalhei com alguns dos meus ídolos. Fui assistente de produção no Age of Innocence, do Martin Scorsese, e fui responsável pelos figurantes no A Bronx Tale, do Robert DeNiro. Os figurantes eram tratados como cidadãos de terceira categoria, de forma horrível. E isso fez-me pensar «tu não podes fazer o teu filme sem estas pessoas», por isso tinha um carinho especial pelos figurantes. Consegues muito mais das pessoas se as tratares como iguais. Se toda a gente fosse tratada de forma igual, não havia sexismo, essa necessidade de dominar. Senti isso na pele algumas vezes, mas sempre achei que tinha a ver com a minha idade. Era ingénua a esse ponto, quando estava a começar.

 

Em relação a esta crítica moral que está presente no filme, acham que as redes sociais vão assoberbar os jovens?

Sylvia: Ou já não estão assoberbados?

Dani: Eu acho que eles não foram sempre assim. Acho que tudo mudou quando os computadores foram inventados. É essa a minha sensação. Mas vocês andam por cá há mais tempo, se calhar têm outra perspetiva.

Sylvia: Julgo que só houve algumas mudanças na humanidade. E acho que a mais recente, e provavelmente a maior e talvez a menos boa, seja a tecnologia. Começou com os computadores, mas [a mudança aconteceu] mesmo com os telemóveis. Porque podemos levá-los para qualquer lado.

 

Mas não acham que são as pessoas que são mesmo assim, e apenas usam a tecnologia dessa forma? Porque há muita gente que usa a tecnologia de forma normal. 

Dani: Acho que é a forma como ela foi criada. Cada aplicação é criada de forma a viciar-te. Usam algoritmos para gerar anúncios, para que continues a fazer scroll. É a conveniência de que podemos ter acesso a tudo no telemóvel, em conjunto com os algoritmos e os anúncios e tudo o resto que é criado para nos manter agarrados. Isso, para mim, é o maior problema. Quando ouço alguém dizer que vão voltar a usar um daqueles telemóveis antigos, eu incentivo-os e respeito-os por isso.

Sylvia: Além disso, porque é que criam essas aplicações para estimularem a competitividade? Porque nós gostamos de competir uns com os outros. Quantos seguidores? Quantas pessoas gostaram disto? Porque é que não podemos apenas partilhar as coisas?

 

Eu gosto de filmes com mensagens, quando são um espelho da sociedade. Foi esse o pensamento inicial por trás do Follow Her?

Sylvia: Sem dúvida. Mais como um aviso sobre em quem confiar e onde isso pode levar. Pensámos nisso, definitivamente. Estamos a querer passar uma mensagem social, mas também estamos a tentar fazer um filme que entretenha.

 

Queriam que os espectadores tirassem as suas próprias conclusões do filme ou queriam passar uma mensagem muito concreta?

Dani: Acho que não tentámos ser demasiado óbvias com isso. A mensagem está lá, mas está um pouco aberta a interpretações.

Sylvia: Absolutamente. Especialmente o final. O final é bastante aberto.

 

E como tem sido a vossa experiência aqui no Fantasporto?

Dani: Espetacular!

Sylvia: Que festival magnífico! Desde a comunicação inicial com o Mário [Dorminsky] e conhecer a Beatriz [Pacheco Pereira]. Toda a gente! A Filipa [Moredo] e todos com tanto carinho pelas equipas dos filmes. Que equipa tão simpática. Conhecemos mais uns realizadores e membros do júri. Das pessoas mais simpáticas. E os portugueses e as pessoas do Porto são tão hospitaleiras, e fazem tudo para agradar.

Dani: E sentimos que é genuíno. Sentimos que as pessoas são genuinamente generosas com a sua atenção e o seu tempo. Querem simplesmente conversar connosco e não há nenhum motivo escondido. Não há mais nenhuma motivação além de quererem estar connosco.

Sylvia: Sim, e conseguia sentir o mesmo até nos e-mails. Muita simpatia até num e-mail curto.

Dani: Esta é a minha primeira vez na Europa e num festival. Por isso, cheguei sem expectativas, mas vou-me embora cheia de gratidão por esta experiência. Completamente fora deste mundo.

Muito obrigado, foi um prazer!