Entrevista a Camilla Ciardi e Tiago Matos

A realizadora e o argumentista de Holofote.

«Mais importante do que a mulher que se transforma na final girl são todas as outras que são eliminadas antes dela, que parecem não existir. Não têm motivação para estar lá, não conseguem pensar por elas próprias. Isso é que tem de mudar no terror.»

 

Um cenário minimalista e dois atores foi a proposta feita ao argumentista Tiago Matos, vencedor da primeira edição do Prémio MOTELX Guiões em 2023, com Trauma. Do desafio, nasceu Holofote, um filme inquietante com uma protagonista forte, realizado por Camilla Ciardi.

Conversei com ambos sobre este projeto, possíveis parcerias futuras e, como seria quase inevitável, mulheres no terror.

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Sandra Henriques

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Camilla Ciardi

Tiago Matos

Falem-me de Holofote e da história por trás deste filme.

Tiago Matos: O Holofote é sobre uma aspirante a atriz que tem pela frente uma audição muito importante, com um encenador nada simpático. É, na sua essência, uma história sobre uma jovem que precisa de ultrapassar as suas inseguranças para alcançar aquilo que deseja.
Camilla Ciardi: O filme aborda muito este receio e esta pressão artística que temos muito no nosso meio, de nos fazer ver ao mundo, de termos uma oportunidade. E também desafia a questão da hierarquia dentro dos meios artísticos. Sinto que, aqui, a personagem do encenador é vista quase acima da hierarquia e acho que é também por isso que ele interpreta este papel de «polícia mau». Este filme é muito sobre o medo e sobre o receio do que poderá acontecer numa audição. Tento passar essa tensão através dos planos, da direção de fotografia, de pequenos pormenores de direção de arte. 

Houve muita interação entre vocês os dois, entre realização e argumento?

CC: Tinha uma visão sobre como seria o espaço, que é sempre o mesmo durante o filme. Quando li o texto, pensei que seria um teatro mais clássico — e acabou por ser este universo claustrofóbico, surrealista. Isto acabou por se tornar uma coisa boa, mas não tinha sido o que eu inicialmente tinha imaginado. Em termos de casting, tive muita sorte, porque os atores ultrapassaram a minha expectativa.

Tiago, ganhaste, em 2023, o primeiro Festival Guiões MOTELX, com Trauma, e agora estás a estrear um filme no MOTELX.

TM: Desde que ganhei esse prémio, tenho não só tentado tornar esse argumento realidade, mas também tenho avançado para outros projetos ao mesmo tempo. No final do ano passado, o meu irmão David Matos, o produtor executivo deste filme, estava à procura de alguma coisa para produzir, e eu lembrei-me do Prémio MOTELX para curtas portuguesas.
Sabíamos que não íamos ter financiamento, portanto tínhamos de reduzir tudo ao mínimo, e teria de ser uma história que se passasse num único lugar e com um máximo de dois atores. 

E é o teu primeiro filme de terror, Camilla?

CC: É a primeira vez que trabalho em terror. Eu sou super fã do género, terror e thrillers psicológicos são o meu género favorito. Mas ainda não tinha tido oportunidade de fazer um projeto audiovisual nesse registo. Quando surgiu este convite do David e da Emma [Santos], a outra produtora, fiquei super entusiasmada. 

E não só o Holofote é a tua estreia no género como foi selecionado para o MOTELX. Como foi receber essa notícia?

CC: Foi surreal. Senti muito orgulho do trabalho da equipa toda e do esforço que foi fazer o filme. Mas ficámos todos super orgulhosos e muito felizes por o filme ter dito algo às pessoas. No fundo, não fazemos os filmes para não serem vistos.

Em 2024, o MOTELX teve um número recorde de mulheres realizadoras com filmes em competição. Sentem que o terror realizado por mulheres se destaca de forma diferente?

TM: Algumas das minhas realizadoras de terror preferidas são a Julia Ducorneau e a Coralie Fargeat. São realizadoras excelentes de terror. 

CC: Falo muito nesse tema, das mulheres na realização em Portugal. A percentagem de mulheres no audiovisual em Portugal é muito menor do que a dos homens. Nenhum é melhor, acho que depende muito da pessoa, mas penso que as mulheres se podem destacar apenas porque, como são menos, naturalmente vão chamar mais a atenção e têm uma sensibilidade diferente. 

Como mulher, ainda sentes que não és tão levada a sério na tua profissão, que ainda há um desequilíbrio de «poder» durante a rodagem de um filme?

CC: No ano passado [2023], ganhei uma bolsa de talentos da Câmara Municipal de Cascais, que incentivava a que existissem mais realizadoras e músicas. Realizei o videoclipe de uma artista feminina, cuja música se chamava Marcha da Paridade. Portanto, esse é um tema que me interessa muito. Não senti esse desequilíbrio, mas porque eu, a Emma e o David tentamos sempre chamar o máximo de mulheres possível, e isto é uma coisa que já fazemos em vários projetos. Assim, a equipa até estava bastante equilibrada, e tive mesmo muita sorte porque havia respeito [entre todos]. Apesar de tentar e querer transmitir a minha visão, os outros departamentos também têm a sua, e é bom haver sempre esta troca de ideias. A minha prioridade, e é aqui que acho que o ego deve baixar um bocadinho, é o filme ficar o melhor possível. Quanto mais cabeças pensarem, melhor vai ser o resultado. 

TM: Só para acrescentar a tudo isto que a Camilla disse, esta história do Holofote, em particular, tem uma protagonista feminina, está muito centrada naquela protagonista. Não acredito que exista propriamente uma escrita de homem ou uma escrita de mulher. Às vezes, relaciona-se com os temas. Acho que este é um ponto importante: o de, ao longo da história, especialmente no campo do terror, ter havido sempre muitas protagonistas femininas, mas geralmente fracas, vítimas. Tenho tentado que todas as protagonistas nas minhas histórias não sejam assim, sejam muito contra isso. Acho que isso também acontece no Holofote

O próprio conceito da final girl é problemático e já nem faz muito sentido.

TM: Mais importante do que a mulher que se transforma na final girl são todas as outras que são eliminadas antes dela, que parecem não existir. Não têm motivação para estar lá, não conseguem pensar por elas próprias. Isso é que tem de mudar no terror. 

Que projetos vossos podemos esperar no futuro?

CC: Gosto muito de experimentar géneros diferentes, mas a minha preferência será sempre o terror. De momento, continuo a trabalhar como realizadora e como produtora e a fazer algumas campanhas de publicidade. E uma nova parceria com o Tiago no futuro. Até lá, vou realizando projetos mais pequenos e estou também a escrever uma banda desenhada.

TM: Tenho alguns projetos com diferentes produtoras, tanto para longas-metragens como séries e curtas. Estou a tentar desdobrar-me o máximo possível e vou continuar a fazer isso, mesmo sem ainda ter as respostas relativamente a financiamento. Mas isso não impede que continue a abrir caminhos, a fazer mais histórias e a pensar em mais coisas para escrever. Quero acreditar que o Holofote é a primeira de várias histórias que vão continuar a acontecer. 


Sandra Henriques

Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.