Entrevista ao realizador Miguel Andrade
Umbral recebeu a Menção Especial no MOTELX 2024.
«Tinha esta missão muito clara de instigar o debate sobre uma zona cinzenta, neste caso o trauma.»
Miguel Andrade estreou o seu primeiro filme, Umbral, no 18.º MOTELX e ganhou a Menção Especial. Ligado à música e com uma carreira profissional na área de gestão, não se considera «do cinema». Mas nós sabemos que é do cinema, sobretudo de género, que ele faz parte e esperamos ver novos filmes em breve.
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Antes de mais, muitos parabéns pela Menção Especial. Até ouvir o teu discurso de agradecimento, não tinha percebido que a tua área profissional nada se relaciona com o cinema. Como é que foi esse percurso?
Sim, a minha área de base académica é Economia, licenciei-me na Faculdade de Economia do Porto. Tirei um mestrado em Modelação, Análise de Dados e Sistemas de Apoio à Decisão, que depois mudou de nome para Data Analytics. Fui consultor numa empresa de software e implementação de software de scheduling. Atualmente, estou na Porto Business School a liderar o departamento de Quality and Accreditation. Já vou chegar onde é que o cinema entra aqui! [risos] Paralelamente, sempre tive uma vida ligada à música. Principalmente com a guitarra, o meu instrumento de base, e depois expandi para sintetizadores, vozes, etc. Sempre tive bandas desde o tempo da faculdade e comecei a experimentar fazer vídeos. Gosto muito de escrever histórias e comecei a fazer videoclipes, mas coisas absolutamente experimentais. Algures no pós-Covid, realizei um videoclipe que é, no fundo, uma desconstrução do quadro The Lovers, do René Magritte, um quadro muito famoso. Como gosto muito do Harry Potter, admito esse guilty pleasure, vejo os quadros «a mexerem», quase tenho vontade de ver o que aconteceu para eles chegarem ali. Então, fiz essa desconstrução para o videoclipe que acabou por ter alguma tração em festivais de cinema. Ganhámos alguns prémios, nomeações, que é uma coisa absolutamente surreal. Não estava à espera de todo. Na sequência disso, e por causa dessa banda que se chamava Feral, tínhamos um concerto no Armazém 22, no Cais de Gaia, onde conheci o Ricardo M. Leite, que nos gravou o concerto, e ficámos amigos. Foi ele que me incentivou a estudar cinema, e é o que tenho feito nos últimos dois anos. O Umbral surgiu durante o Mestrado em Cinema e Fotografia na Escola Superior de Media Artes e Design, porque tinha o sonho de realizar uma curta-metragem.
Acho que essa interseção de áreas acaba por ser interessante, porque tu vens de uma área profissional mais analítica, mas também estás ligado à música. Como foi o teu processo criativo para este filme? Escreveste o argumento e é um filme de época, que é outro desafio.
É um filme de dupla época, porque ele está a ser julgado nos anos 20 e a lembrar-se da infância que aconteceu no virar de século. Em termos de arte, foi uma aprendizagem enorme. E o argumento é tudo para mim, a história tem primazia, mas isto acontece na música também. Havia uma mensagem muito clara a passar. O argumento foi feito no primeiro ano de mestrado, e escrevi-o já a pensar no futuro, em transformá-lo no projeto final, queria algo que tivesse impacto. Aqui, entrou a minha veia de gestão, não na parte analítica, mas porque escrevi uma missão e uma visão para o filme desde o início, e partilhei-as com a equipa. E, além de querer contar uma história que tivesse impacto, sinto-me um bocadinho inquieto ou até revoltado pelo extremismo em que vivemos. Não estou a falar do espectro esquerda ou direita, mas sim de opiniões e de certezas absolutas que temos, e isso faz-me impressão. Acho que a arte tem este papel, e cada vez mais estamos a ir para um caminho estranho, sem querer entrar em conversas políticas, mas cada vez mais acho que devemos fazer as pessoas pensarem. Tinha esta missão muito clara de instigar o debate sobre uma zona cinzenta, neste caso o trauma. Por outro lado, tinha uma série de restrições impostas pela própria escola. Estamos a falar do número de personagens, de cenários, etc. Consciente de que era um projeto académico, não tínhamos fundos praticamente nenhuns e, portanto, tinha de ser fazível. Daí, despir os cenários todos, gravarmos tudo no interior. Quando era exterior, filmávamos de noite para controlar a luz. Assim, houve uma série de decisões de produção tomadas desde o início. E o cinema é incrível por causa disso. Quando se despe de tudo, há certas coisas que ganham uma potência enorme. Desde logo, a performance do elenco. Estou completamente siderado por ter conseguido trabalhar com um elenco destes. Foram todos incríveis. E as decisões de fotografia, de luz quando só há uma luz que vem de cima, tudo é relevante. Como tirar adereços maximiza tudo e como o filme é uma regressão mental, valia tudo.
E foram sempre decisões conscientes, em equipa.
O que vou dizer é um clichê gigante, mas o filme não é meu. É impossível fazer um filme sozinho. E, outro clichê, rodeei-me de pessoas que eram melhores do que eu a fazer essas coisas. Por exemplo, gosto muito mais de fazer banda sonora, sound design, e o meu colega diretor de fotografia é muito melhor do que eu para a câmara, mas tivemos várias conversas na pré-produção. Para mim, é absolutamente fulcral a pré-produção. Ela e o argumento têm de estar sempre, sempre, no centro até ao fim, para tomar decisões. Na base, está sempre o que é melhor para o filme.
Os filmes portugueses em competição no MOTELX 2024, tinham muito foco na arte, não apenas como um acessório, mas como parte da narrativa. Começo a ver aqui uma mudança, uma evolução na produção de terror português. Submeter o Umbral ao festival era um objetivo desde o início?
Sim, fazia parte da nossa missão desde o início, daí a pós-produção ter sido uma loucura. Estou muito grato à equipa de pós-produção por ter conseguido levar com o nível de ambição, porque submetemos no último dia. Rodámos em fevereiro, depois foi montagem, correção de cor, sound design, soundtrack e VFX. Tenho muitos VFX. Não são os óbvios, são mais «limpezas» de imagem. Queríamos os pretos pretos, a escuridão escuridão. Houve ali um trabalho gigantesco da malta da pós-produção. Foi um trabalho dantesco e estou super grato. Na parte de sound design, e aqui estou mais consciente do trabalho que dá, temos imenso foley: os passos, o mastigar, a parte do rádio, a porta a bater. Tive também a sorte de trabalhar com o meu amigo e artista, mais conhecido como o Marta. Ele agora tem uma produtora, a Xibita, focada sobretudo na pós-produção de áudio.
Qual foi a sensação de ganharem a Menção Especial?
Eu não sabia que havia menção especial [risos]. Não estava à espera. A sensação foi ótima e é surreal para mim. Fico muito feliz de ter sido tão bem recebido e só [o facto de] termos conseguido entrar no MOTELX, que era a nossa missão, foi dar um início de vida digno ao filme. Isso era uma coisa que eu queria fazer, por todos nós. Vi os outros filmes e pensei: «só estar aqui é incrível». Isto é outro clichê, mas é verdade. [risos] E ser assim destacado pelo MOTELX, no primeiro filme que faço, foi incrível, fiquei mesmo contente.
Vão continuar a submeter a festivais?
Estamos a fazer a distribuição com a RAW Filmes. O filme foi uma coprodução com esta produtora do Ricardo M. Leite. Em princípio, vamos ter um primeiro ano com um percurso mais nacional e um segundo ano mais internacional.
Uma última pergunta, sem te querer pressionar. Vais continuar a fazer filmes?
Sem dúvida que sim. Isto foi uma aprendizagem excelente, nomeadamente a questão de fazer mais com menos. Há formas inteligentes de fazer filmes. Como disse, gosto muito de escrever e tenho dois argumentos ali na gaveta, um dos quais é particularmente fazível, porque também se baseia muito na parte sonora, na parte sensorial. É algo que gosto muito de explorar. Vou sem dúvida querer continuar a fazer filmes, possivelmente continuando com o apoio da RAW Filmes e de certos colegas com quem trabalhei. Não sei o timing das coisas, mas não gosto muito de estar quieto quando já sei que tenho aquele argumento a chamar por mim. Vou ter de o fazer de alguma forma. [risos]
Mas ainda bem que tens essa frieza de perceber que, dos dois argumentos, um é fazível e o outro não. São duas curtas ou já estás com vontade de fazer uma longa?
Para já, são curtas. E gosto muito deste formato de contar histórias. É uma parte muito bonita: despir tudo e, em 15 minutos, contarmos uma história que tem um impacto direto, visceral. Acho que isto, muito possivelmente, também vem da música. Comecei numa banda de rock progressivo, e o tempo, portanto, não era uma limitação, mas depois acabei por tocar noutras bandas em que era muito importante haver canções. A canção foi uma coisa que, no início, posso ter desprezado um bocadinho, mas é extremamente difícil de fazer e tem um impacto brutal. Comparo muito fazer uma curta-metragem a uma canção, e uma longa-metragem é um álbum. Temos de cortar cenas e pôr só os elementos fulcrais. Acho que faço muito este paralelismo com a música. Pelo menos, na minha cabeça, é o que estou a racionalizar. [risos]
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Sandra Henriques
Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.