Entrevista a João Monteiro e Pedro Souto

O MOTELX 2022 começa a 6 de setembro

Entrevistei o João Monteiro e o Pedro Souto, diretores artísticos do festival, no dia em que foi comunicado o regresso  de Dario Argento à 16.ª edição do MOTELX, 10 anos depois da sua primeira presença. Falámos dos desafios de fazer um festival de género em Portugal, do livro Quarto Perdido,  do que pode ser o futuro do terror em Portugal e dos destaques (sem spoilers) para a edição de 2022.

Sandra Henriques

O nosso livro está à venda!

Antes de falarmos da edição de 2022, que balanço fazem dos últimos 15 anos de festival?

João Monteiro: Melhor é impossível. Tivemos um crescimento sustentado ao longo deste tempo. Nunca tivemos uma espécie de passo atrás. Creio que estamos a fazer as coisas bem, naquele sentido amador, em que vamos aprendendo à medida que vamos fazendo. Porque não há uma escola para isto, de programação, de organização deste tipo de eventos. E porque também, quando começámos, não havia muitos festivais de cinema em Lisboa e muito menos de género. Tem sido bom no sentido em que criámos um público que é fiel e um público novo que se renova todos os anos. Temos conseguido trazer alguns dos nossos maiores heróis do género e diria que é uma história de sucesso.

 

Qual é o maior desafio de fazer um festival destes em Portugal?

Pedro Souto: Não sei se, em Portugal, há algum desafio especial. Acho que o maior desafio de qualquer evento é sempre o financiamento. Os eventos culturais com este tipo de modelo e de proposta, até mesmo aqueles mais comerciais, como um festival de música, não querem conseguir viver só dos bilhetes, porque isso vai diminuir muito a dimensão, o tipo de coisas que se pode trazer, o tipo de coisas que se pode fazer. E, portanto, são sempre eventos que funcionam muito com parcerias, com patrocínios, com outras entidades que também trazem conteúdos. Mas o dinheiro é sempre o mais difícil de arranjar, porque chegas sempre a um momento em que já não há contrapartidas de serviços que te valham, vais mesmo precisar de dinheiro. E depois, também vives num país em que, pelo menos nos festivais de cinema, não é tradição ainda teres preços muito elevados nos bilhetes. Juntando isso tudo, o desafio é sempre esse. Temos a sorte de, na Europa, termos políticas culturais e políticas de apoio do Estado que dão uma ajuda grande, que são um incentivo e que permitem que, logo a seguir [ao festival terminar], se tenha um ano de trabalho [garantido]. E aí, podes trabalhar o resto dos meses a angariar o resto dos apoios, o resto do dinheiro, com essa ajuda que tens das Câmaras Municipais ou do Estado, neste caso do ICA. Eu acho que esse acaba sempre por ser o desafio. No início, é muito fácil, de certa maneira, fazer as coisas com pouco dinheiro, porque estás a começar. Às vezes, estás no início e és jovem, que era o nosso caso. [risos] São duas coisas juntas que te levam a fazer um maior esforço, só que depois essa continuidade não é fácil.

 

E se calhar, na altura, as pessoas não levam a mal que as coisas pareçam «menos» profissionais. Vocês sentem que agora a expectativa é outra? Apesar de o programa ser diversificado e haver muitas coisas a acontecer durante uma semana.

PS: O público dos eventos, mesmo que seja inconscientemente, não dá muita margem para que as coisas andem para trás e para a frente em termos de dimensão. E portanto, quando se acrescenta qualquer coisa, é um risco perceberes: «para o ano, se isto sair, é muito grave ou não é?». Eu acho que temos, pouco a pouco, acrescentado uma coisa aqui, outra ali, seja em termos de secções seja em termos de eventos. Temos conseguido manter.

JM: Eu acho que o que o público nos cobra mais tem a ver com o género de filmes. E isso é compreensível. Obviamente, o público não tem a obrigação de saber o desafio que enfrenta o programador que há 15 anos vê este tipo de filmes e que, às vezes, quer variar, porque são muitos filmes que passas e não queres sempre passar o mesmo, mas sabes que há público que vai lá com uma ideia preconcebida do que quer ver. Ou porque acha que aquilo é que é terror, ou porque só vai ver uma sessão e depois sai de lá desiludido, porque apanha a sessão que não queria. Isso, se calhar, é a coisa onde temos sido mais chamados à atenção, digamos assim.

 

Em relação ao livro que vai ser lançado neste festival, Quarto Perdido, como é que surge a ideia para este projeto?

JM: A ideia inicial [vem de]  2007: tentar arranjar uma forma de passar cinema português no MOTELX. Obviamente que a primeira ideia são as curtas-metragens, mas era uma produção muito indigente de curtas, e nós tínhamos de ir à procura delas, o que ainda era pior. E depois, por um golpe de sorte, conhecemos o António de Macedo no primeiro ano do MOTELX. Devemos ter falado sobre esta nossa preocupação, e ele arranjou-nos uma lista de cinema fantástico português elaborada pelo José Matos Cruz, que trabalhava na Cinemateca. Depois, fomos acrescentando alguns, porque de facto havia uns que davam, outros que não, e descobrimos uma história alternativa do cinema de terror [àquilo] que nos tinham contado, que era que não havia, que não existia, ou era só o [Luís] Noronha da Costa ou o Macedo. Mas começou a ser uma piada fazer isto todos os anos, inventar motivos para passar os filmes, contextos, e acabámos por involuntariamente fazer este trabalho que começava e acabava na própria exibição. Achámos que devíamos deixar um registo qualquer disto que fizemos para a posteridade, nem que seja para alguém pegar e fazer melhor. Não é um tratado académico. É uma lista que elaborámos com critérios de filmes de terror portugueses, cada um acompanhado por um texto.

 

Sendo que há filmes que provavelmente nem estavam classificados como terror.

JM: Sim, e há pelo menos um filme que não existe, que é o Três Dias sem Deus, o primeiro filme realizado por uma mulher em Portugal [Bárbara Virgínia]. Mas existe o argumento, que já dá a entender que se tratava de um filme de terror. Tens o período do mudo, em que não há classificação de género. Depois outros — quando entras, digamos assim, na era moderna —, é mais uma questão da própria crítica portuguesa sobre o cinema em Portugal não querer referir essas coisas. Mas depois vais ler sobre os festivais onde passaram no estrangeiro e vês que olharam para aquilo como um objeto de género. Nesse sentido, isso ajudou-nos também a não ter o medo de passar por cima desse preconceito que começa a cair.

PS: A ideia também era encontrar indícios. Há filmes que estão como terror e depois saem, e depois voltam. Isso também é uma coisa que procuramos no próprio festival, em termos de filmes recentes. Se pensares que é uma coisa que vai surgindo pouco a pouco em ti, enquanto programador ao longo dos anos, depois torna-se natural estar sempre nesta busca. Às vezes, os filmes recentes que nos dão mais trabalho, mais discussões e que demoram mais tempo a decidirmos se pode, se deve, se tem sentido entrar são esses.

JM: A piada do cinema português é que há uma liberdade incrível para fazeres o que quiseres. Permite que um festival de género possa fazer uma coisa que nunca ninguém fez, que é um estudo deste género, ou um livro deste género, e que possa passar esses filmes e chamar-lhes de terror. E com esta postura, acabámos por desenterrar filmes que já estavam perdidos. A Cinemateca tem sido incrível como parceiro. Por exemplo, A Caçada do Malhadeiro, um filme que não estava em condições de ser exibido, e que eles recuperaram a cópia de propósito para passar no MOTELX. E de repente, o filme existia. [Tem-se a ideia de] que antes do Cinema Novo há só o cinema fascista, e isso não é bem assim.

PS: Não havendo filmes óbvios, puro género, puro exploitation, puro slasher, como foram acontecendo ali no século XX, acho que também é normal para alguns críticos não terem sentido essa catalogação, ou essa perspetiva de acordo com esses subgéneros, mas tem todo o sentido, e nós temos comprovado isso com [a secção] Quarto Perdido. Essas propostas que temos feito ao público, de certa maneira, têm resultado, e também foi normal que o livro refletisse isso. O livro também só foi possível, nestes moldes e nestes timings, pela candidatura que fizemos ao ICA, que permitiu esse financiamento para fazermos as coisas com as mínimas condições.

 

Quais são os grandes destaques para 2022?

JM: Temos o regresso de um mestre, Dario Argento, 10 anos depois. Estamos muito contentes porque temos um filme novo dele. Temos um filme da A24 para abrir o festival chamado Bodies Bodies Bodies que está agora a dar cartas na América. Temos uma boa seleção de Cannes, que é agora o festival onde vamos buscar a maior parte dos filmes. Desde o Holy Spider [do Iraniano Ali Abbasi] ao filme de abertura [Final Cut], que é o remake do One Cut of the Dead. Temos também cinema português moderno. Temos uma estreia mundial, o Criança Lobo do Frederico Serra, que vai ter outro momento no festival com a exibição do Coisa Ruim. Temos uma animação muito interessante chamada Os Demónios do Meu Avô, que tem feito uma carreira interessante nos festivais lá fora; esteve no Fantasia e aterra agora no MOTELX. E temos uma coprodução espanhola e portuguesa chamada Um Corpo Aberto, um filme falado em português e em galego, que vai estar em competição para o prémio da melhor longa europeia. No meio disto, há uma grande variedade a nível geográfico. Temos mais filmes africanos, temos o Senegal em estreia, temos o iraniano Zalava, que é um filme muito interessante. Vamos ter um filme da República Dominicana [Parsley], sobre o genocídio ocorrido no país. E depois temos aqueles filmes típicos de festival, que é o caso do Fall, um filme para quem tem medo de alturas.

PS: Seguindo essa ideia de novos países representados, temos o Luxemburgo com um filme de lobisomens, Wolfkin. Temos também um representante de violência extrema, o Hunt, da Coreia do Sul, que nos traz um modelo de filme de gangsters, mas aplicado à política. Acho que vai ser divertido e vai trazer também alguma animação às sessões da meia-noite. Temos alguns filmes de destaque de realizadoras, alguns em competição, como é o caso de A Banquet, de Ruth Paxton, que está na competição de melhor longa europeia. Temos também o checo Nightsiren, que esteve agora em Locarno e ganhou um prémio. Para nós, é de certa forma divertido, apesar de já ser muito comum, trazer alguns destes filmes dos festivais generalistas de classe A, não sei porquê. [risos] Não é nenhuma abominação especial por estes festivais, mas às vezes tem piada quando são filmes de puro terror.

JM: Nós temos quatro ou cinco [filmes] de Cannes, três de Locarno.

PS: Acho que também é um certo reflexo do que tem vindo a acontecer nos últimos 10 anos, que é essa abertura dos festivais aos filmes de género. Às vezes, até um certo aproveitamento. Não é que seja uma coisa exclusivamente nossa, ou dos festivais de género, não é isso. Mas há um reconhecimento da importância destas novas visões, comparando com o cinema mais dramático e mais realista.

JM: Há festivais que estão a dar uma volta total, onde surpreende ver essa programação.

 

É propositado? Tem a ver com as crises que estamos a viver agora?

PS: Isto já começou há mais anos, e penso que tem a ver com duas questões. Uma é os programadores estarem sempre atentos a todos os filmes e a todos os festivais, não vão só a um tipo de festival. E depois, também vão mudando, vão-se renovando as equipas de programação.

 

Conseguem ver o filme pelo objeto em si e não pelo género.

PS: Exato. E às vezes, muda o diretor artístico ou entra alguém para a equipa que traz outra visão. É um pouco o que nós tentamos fazer, porque pode ser perigoso ficar sempre focado no nosso gosto pessoal, ou até a nossa evolução levar-nos para outros caminhos. Depois, também há o sucesso comercial que esses filmes têm, em sala ou nas plataformas [de streaming]. Portanto, é um bocadinho difícil de ignorar.

 

E em termos das microcurtas a concurso, este ano pareceu-me haver menos filmes.

PS: Houve menos, sim. Nós também queremos, em breve, se calhar, reinventar o formato da competição. Mas acho que é um formato que tem de continuar porque também é o formato que está mais acessível aos jovens. Acho que neste formato, a maneira de pensar as histórias é diferente e portanto faz todo o sentido continuar. Até porque queremos sempre essa presença do público mais novo.

 

Existe futuro para o terror em Portugal?

PS: Eu digo que sim.

JM: Acho que nunca houve tanto futuro para o terror em Portugal. Eu não sei se há futuro para o cinema. Fazer filmes de terror vai ser sempre possível e vão fazer-se mais, até porque agora há mais sítios que os procuram, tens imensas plataformas de streaming. Agora, se me perguntares se há futuro para o cinema de terror em Portugal, eu diria que não. [risos] Mas os filmes de terror portugueses, sim, acho que vão aparecer muitos mais, e vai ser mais fácil até, porque, se estes canais como a Netflix ou a HBO começarem a entrar com dinheiro, vais ver mais produções nacionais de certeza. O futuro são as plataformas. E eu espero que esta malta que tem vindo a ganhar o prémio MOTELX e que tem vindo a tentar concorrer ao ICA possa ter outra forma de se safar, porque há gente com muito talento e que sabe o que quer.

PS: As coproduções são o único caminho possível, até porque é uma maneira de mostrar aos futuros júris do ICA — que acaba por ser sempre a ferramenta fundamental para financiar um filme — não só essa qualidade e essa identidade artística que vai surgindo, mas também o próprio sucesso que podem ter. Mesmo que as coisas estejam cingidas a essas plataformas, é possível medir o sucesso delas. Eu acho que o cinema em sala vai adaptar-se naturalmente, não sei bem ainda como. Mas se pensarmos, por exemplo, no sucesso que, apesar da pandemia, mantêm os festivais de cinema, há ali qualquer coisa.

JM: Os festivais de cinema oferecem qualquer coisa extra a uma sessão normal. Suponho que aí o festival esteja sempre protegido, mesmo que o circuito comercial termine. Os festivais vão ser sempre tipo Cinemateca, o sítio onde vais recordar como era antigamente. E no caso do terror, vai ser o mesmo.