Entrevista ao diretor de arte João Pedro Frazão

Estreou-se na realização com Canção de Embalar, filme de terror premiado em vários festivais.

«Quero fazer filmes como eu gosto, mas não vou ser “umbiguista” e fazer filmes só para mim. Acho que isso é mau para o mercado. Vou fazer filmes para mim, sim, mas que agradem ao público.»

É inevitável que, numa conversa com alguém que trabalha em várias áreas do cinema, venha à baila o estado das coisas de uma arte que, em Portugal, parece ainda ser só para alguns.
João Pedro Frazão é, primeiramente, diretor de arte, mas acaba por «meter a mão na massa» quando é preciso, o que o leva a trabalhar também na realização e na direção de fotografia. Diz que, quando escreve um guião, se limita a descrever ao pormenor as cenas que tem na cabeça, o que faz com que os detalhes necessários já lá estejam todos. Mas isso não o impede de envolver toda a equipa para que o filme aconteça.
Contas feitas, a sua curta-metragem de estreia como realizador, Canção de Embalar, trouxe-lhe 27 prémios e 13 nomeações, em festivais estrangeiros e nacionais.

 

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Já trabalhaste como realizador, argumentista e como diretor de arte, mas é na direção de arte que te sentes mais «em casa»?

É o que me dá mais gozo, [a direção de arte]. Há quem diga que a minha maneira de escrever filmes é muito estranha, não é muito convencional. Quando escrevo um guião, está lá tudo: adereços, luz, a direção de fotografia, a direção de arte, maquilhagem, guarda-roupa. Porque eu me limito a descrever aquilo que está na minha cabeça. Muitas das vezes, não penso naquilo que vou escrever.

 

Estás também envolvido no filme Na Hora de Pôr a Mesa Éramos Cinco, que ainda não avançou. Já trabalhaste em outros dois filmes de terror do Paulo A. M. Oliveira (A Herança e Calipso). Mas, no Canção de Embalar, escreveste, realizaste e fizeste direção de arte. 

A escrita desse filme fluiu, e foi com ele que ganhei os meus primeiros prémios. O filme ganhou dezenas de prémios no estrangeiro. [Para além de mim], a protagonista [Beatriz Frazão] ganhou o primeiro prémio de melhor atriz [da sua carreira], a [maquilhadora] Cidália [Espadinha] também ganhou os seus primeiros prémios, a Ana Mafalda também.

 

E o que é feito desse filme, depois dos prémios e dos festivais?

Está muito bem arrumadinho [risos]. O filme teve muita aceitação lá fora, pelos prémios que teve. Teve, inclusive, três produtoras americanas a querer comprá-lo. Só que não o fizeram porque não era uma longa, nem era uma série. Houve um produtor que me disse «tu podes ser o próximo del Toro», e pensei: «isto assim vale a pena».

 

Ponderaste transformar o filme numa longa?

Escrevi uma longa que seria uma espécie de sequela do filme e cheguei a escrever seis dos oito episódios que seriam a série, mas depois comecei a pensar que não faria sentido. Porque a atriz principal já estava mais crescida e também porque já tinha uma outra longa escrita, de terror, e a história é muito mais interessante. É um filme de terror de época, e se nos vamos esforçar para fazer uma longa, então vamos trabalhar esta.

 

Ficamos à espera dessa longa, então. Terror é o que mais gostas de fazer?

Eu gosto de fazer [filmes de] época. Terminámos um documentário sobre o Carvalho Monteiro [Acherontia Atropos] e foi um filme ficcionado à época. Porque não me interessa fazer documentários em que filmamos apenas umas pessoas a falar das outras.

 

Parte das filmagens foram na [Quinta da] Regaleira?

Foi filmado em três sítios: no Cemitério dos Prazeres, onde está o túmulo dele, na Quinta da Regaleira e em Sintra, nas proximidades da casa onde morou o Hans Christian Andersen, quando ele viveu em Portugal.

 

Descobriram segredos que confirmam o lado místico ou macabro, ou não? Quando pensamos em Regaleira imaginamos sempre rituais e bruxaria.

Uma das coisas que exigi a mim mesmo foi não escrever sobre a simbologia e os mitos da Quinta da Regaleira. Mesmo falando com guias de lá e pessoas que sabem a história, e seguindo a investigação que fiz quando escrevi o filme, cada um interpreta como quer e eu decidi que não ia falar sobre isto. Porque, antes de mais, estávamos a falar sobre a vida do Carvalho Monteiro e não sobre a Regaleira. Mas há muita coisa que se pode descobrir, sim.

 

Dizias que o que mais gostas de fazer é trabalhar época. Qual é o maior desafio disso?

Fiz uma coprodução com uma produtora do Brasil, num filme do [José] Barahona, e tive muitas dificuldades, porque o filme se passava em 2005, e para mim é muito mais difícil trabalhar coisas recentes. Às vezes, é difícil porque há que tentar tirar a complicação da época. Trabalhar época não é difícil. Eu acho que estamos muito mal em Portugal em termos de escola de fazer cinema e produções. Ou seja, para contextualizar, nota-se que os atores ainda estão muito ligados a fazer as coisas de uma certa forma. Por exemplo, estarem a fazer uma telenovela, ou um filme de época, ou um filme contemporâneo é igual. Quando fazem filmes de época, põem uma postura muito importante, independentemente do que a personagem pede. Ficam caricaturas. Acontece o mesmo em fotografia, nota-se iluminação de telenovela em filmes, provavelmente porque a equipa técnica é a mesma. Não estou a dizer que seja mau, mas pode ser melhor. Em relação ao guarda-roupa, há erros de época e não tem patine, parece que está tudo novo. É tudo muito plástico. Acho que falta uma escola de como fazer, mas ao mesmo tempo é muito difícil furar. Uma das minhas máximas é que dá tanto trabalho fazer mal como fazer bem, as pessoas só não fazem bem se não quiserem ou forem preguiçosas. Não é por causa do orçamento que se escolhem adereços maus. E depois, acho que falta muito aquilo que gosto de fazer quando estou a trabalhar em produções, que é falar com a equipa. O que é que temos, do que é que precisamos, o que é que vamos fazer, onde é que se consegue arranjar. Isto altera tudo. Dou-te o exemplo do Na Hora de Pôr a Mesa Éramos Cinco. A Anabela escreveu o argumento a partir do poema do José Luís Peixoto, e achei que se tornava muito mais interessante se o filme fosse de época, porque andava com vontade de fazer filmes de início de séc. XIX. A primeira coisa [a fazer] é arranjar uma casa de séc. XVIII, porque ninguém vai ter uma casa nova e com tudo à moda. A maioria das pessoas vestiam roupas com 20 ou 30 anos. São detalhes que têm de ser pensados. Como não arranjávamos locais para esta época, optou-se por alterar a ação do filme para os anos 20 ou anos 30, porque fomos conversando sobre estas coisas. No caso do Santanário, ainda não começámos a rodagem porque falta o espaço ideal. O filme estava pronto para ser rodado, mas não avançou por causa de autorizações.

 

Tu não tens problemas em partilhar informação, fora da tua «bolha». Isso é pouco usual na indústria do cinema em Portugal. Coisas tão básicas como falar com a equipa. 

Tal e qual. As «bolhas» que existem estão viciadas. E acredito que a maior parte das pessoas concorda com isso, mas ninguém o vai dizer. O cinema português está ultrapassado quando o comparamos com o cinema espanhol ou francês. Não estou a dizer que o cinema europeu não deve existir, aquele cinema artístico, de autor. Mas em Portugal parece que só dão importância ao cinema de autor português, e eu acho que dessa forma não nos conseguimos projetar lá fora. Aconteceu-me isso com a Canção de Embalar. Ganhei prémios em vários festivais, mas depois parece mal dizer em Portugal que ganhei dezenas de prémios. Há pessoas que pensam que os prémios foram comprados. Ninguém aceita que fazemos bem as coisas. Estamos em Portugal, mas não temos de pensar como os Velhos do Restelo, isso é que é problemático, e não há evolução. Quero fazer filmes como eu gosto, mas não vou ser «umbiguista» e fazer filmes só para mim. Acho que isso é mau para o mercado. Vou fazer filmes para mim, sim, mas que agradem ao público.

 

Mas é importante dizer-se que os filmes ganham prémios. 

Temos muitos exemplos de pessoas que fazem cinema cá e não são reconhecidas. Mas ganham prémios lá fora e tudo muda. Quando fez exatamente o mesmo trabalho que fazia cá, em Portugal. É muito estranho. Temos excelentes técnicos, excelentes atores, mas a indústria das telenovelas é que alimenta o cinema e as séries. Não tem mal nenhum, mas não devia ser só isso que as pessoas veem. Como o cinema. Não há só cinema de autor em Portugal.

 

É um problema de orçamento, de disponibilidade, que leva o cinema a recorrer às mesmas equipas das telenovelas?

Há filmes bons que são feitos com pouco orçamento. Imagina, por exemplo, se as equipas que trabalharam em A Herança ou Calipso tivessem dinheiro e tempo. E o que é feito dessas pessoas? Não sei. Se os adereços não existem ou se fazer de uma determinada forma sai caro, faço eu. Gosto do meu trabalho e gosto das coisas bem feitas. Portanto, não sei se o problema é sempre tempo, ou dinheiro, ou disponibilidade, ou aquela ideia de ninguém vai notar [uma coisa feita à pressa]. Alguém há de notar! [risos]

 

O que é que podes revelar sobre o teu próximo filme, Santanário?

Fiquei maldisposto depois de o escrever, posso revelar isso. O filme passa-se no século XVII, fala sobre relações, fanatismo religioso, comportamento humano, da falta de informação. De como uma pessoa pode ser e desconhecer-se a ela própria, de como pode fazer coisas que nunca lhe passaram pela cabeça. Trabalho muito com a imagem, e é a imagem que tem de comunicar [a mensagem do filme], por isso este filme nem sequer tem falas, à exceção de uma espécie de monólogo, que é uma reza em latim.

 

Para terminarmos, que conselho darias a quem quiser trabalhar em direção de arte?

Eu sou fotógrafo de formação académica. Os cursos são bons, mas às vezes acho que se perde demasiado a fazer tudo by the book. Não tenho nada contra os cursos, mas acho que devem ser uma base. O único conselho que dou muitas vezes é «faz». Faz o melhor que conseguires, com brio e profissionalismo.