Entrevista ao realizador Miguel Ferreira
Our Tell-Tale Heart é exibido dia 16, às 19 h 10, e dia 17, às 14 h.
«Quero honrar e manter a linha de pensamento da história original, mas dar-lhe um toque nosso e original. Foi daí que surgiu a ideia de que o filme se passasse no Estado Novo.»
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«Os Melhores Contos da Fábrica do Terror – Vol. 1»
16.50 € (com IVA)Durante o MOTELX, em 2017, Miguel Ferreira cruzou-se com a edição ilustrada da obra de Edgar Allan Poe, editada pela Saída de Emergência. Contou-nos que, à medida que lia os contos, ia tendo ideias para filmes. Agora, seis anos depois, numa espécie de regresso à casa de partida, estreia a sua curta-metragem, Our Tell-Tale Heart, uma interpretação do conto clássico de Poe.
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Quando é que começa a tua paixão pelo terror?
Acho que surge por causa do Exorcista e dos filmes do James Wan. O primeiro filme que me chocou — não sei com que idade o vi, mas era muito novinho — foi o Exorcista. Na altura, fiquei assustado e dormi mal. [risos] Mesmo tendo efeitos especiais muito antigos, é um filme que ainda choca bastante. Depois, conheci o James Wan através do Saw, do Conjuring. Comecei a ver esses filmes com grandes orçamentos. Depois, fui à procura do que havia [do género] feito com bastante menos dinheiro. Não há nenhum género que faça o público sentir [qualquer coisa] da mesma forma que o terror. Adoro todos os géneros, mas é difícil pensar num filme de outro género que tenha o mesmo impacto que um filme de terror. Às vezes, só pelo facto de existir.
Estudaste na ESAP [Escola Superior Artística do Porto]? É uma escola de onde, com frequência, saem filmes que passam pelos festivais portugueses dedicados ao terror e ao fantástico.
Sim, licenciei-me em Cinema e Audiovisual na ESAP. Depois, fiz uma pós-graduação na ESMAE em Argumento e Dramaturgia. Ponderei [fazer] mestrado em Argumento, mas sempre quis fazer fazendo, e optei por focar-me mais na escrita do que na aprendizagem da escrita, por ser daquelas coisas que se aprende a fazer. Sem dúvida que, sem estas escolas, não havia este projeto que está agora no MOTELX, porque mais de metade da equipa técnica é constituída por alunos da ESAP, pessoas que fui conhecendo ao longo do meu percurso académico. Estou sempre muito grato aos sítios por onde passo. Sem a ESAP, esta curta não teria acontecido.
Como fazes as duas coisas, revês-te mais na realização ou na escrita de argumento?
Acaba por estar interligado. Se pudesse, idealmente, gostaria de ser eu a realizar ou a encenar tudo o que escrevesse. Mas nem sempre assim. Penso que isso também seja reflexo do país onde nasci. Em Portugal, há este hábito de juntar funções. Se fosse num país com o cinema comercial mais desenvolvido, como os Estados Unidos ou o Reino Unido, já não haveria essa ligação. Lá, o argumento é visto como uma coisa separada da realização e da produção. Quando entrei para a faculdade, sempre me vi como escritor, com o objetivo de me focar no argumento. Mas, à medida que fui avançando no curso, comecei a perceber que, se não fosse eu a tentar produzir e realizar, ninguém ia pegar no que eu estava a escrever. E descobri que tinha algumas características de produtor, de conseguir fazer acontecer, de conseguir reunir pessoas. Isto para não deixar os projetos morrer, porque não sou de escrever para a gaveta, a não ser que ache que não tem potencial. Hoje em dia, quando estou a escrever, é impossível não pensar em como realizaria. No futuro, não vou dizer que todos os filmes que escreva tenham de ser realizados por mim. O que mais quero é que aquelas histórias sejam feitas, independentemente de serem por mim ou não. Principalmente, no mundo do teatro. Tenho um projeto escrito e tenho noção de que ainda não terei capacidade para encenar, mas gostaria de fazê-lo chegar a um palco. Acho que vai ser caso a caso, como esta história [Our Tell-Tale Heart], em que insisti que tinha de ser eu a realizar. [risos]. E outras em que me sinta mais à vontade para largar e passar essa responsabilidade a outra pessoa.
O teu filme é baseado num clássico do Edgar Allan Poe, The Tell-Tale Heart. Porquê este conto em particular?
Na altura, em 2017, comprei no MOTELX o livro ilustrado com contos do Edgar Allan Poe [editado pela Saída de Emergência] e li-o apenas como fã de terror. Em 2021, voltei a pegar no livro e, inclusive, li os contos de que mais gostava na língua original, porque acaba sempre por se perder alguma coisa na tradução. Quando estava a fazer essa pesquisa e essa leitura, houve alguns que me levaram a pensar, de forma quase involuntária: «se eu adaptasse estes contos, como é que eu o faria?». E o The Tell-Tale Heart foi o primeiro, o que mais se destacou. Foi quase como a maçã de Newton, [a ideia] caiu e comecei logo a tomar notas de como faria o filme. Já existe uma curta muito boa, do Robert Eggers, uma adaptação literal deste conto, portanto nunca me passou pela cabeça fazer algo desse género, porque não iria conseguir muito melhor do que ele. Então, comecei a pensar em como conseguiríamos contar esta história, mas torná-la nossa. Abordei isto do ponto de vista do escritor, porque, como costumo dizer: «antes de ser realizador, sou escritor». Se um dia alguém adaptar os meus textos, gostava que tivesse em conta o início, o meio e o fim que eu criei para a história, que a base fosse a mesma, em honra do que pensei quando estava a escrever. E aqui, para este filme, a minha linha de pensamento foi a mesma. Quero honrar e manter a linha de pensamento da história original, mas dar-lhe um toque nosso e original. Foi daí que surgiu a ideia de o filme se passar no Estado Novo.
Existem muitas adaptações da obra de Poe, é verdade, mas acho interessante que tenhas optado por criar esta história durante esse período específico do Estado Novo. Este ainda não se explora muito no terror, talvez por ser ainda muito recente.
Isso surge porque os meus avós e bisavós viveram durante esse período. Quando estava a ler Edgar Allan Poe (não este conto especificamente), encontrei um texto que fala de uma fatia de pão para toda a família, ou qualquer coisa do género. Lembrei-me logo do que a minha avó contava, de que havia só uma sardinha para dividir por todos. E isto não foi assim há tanto tempo. É um bocadinho surreal para as gerações seguintes pensarem nisso. [Foi por causa dessa ligação] que decidi que o filme se ia passar durante o Estado Novo, e que começámos a pensar na mensagem que queríamos passar. Fez-nos logo sentido que a personagem fosse feminina, se bem que, no conto, o autor não liga tanto ao género da personagem, mas sim à relação emocional com o crime que cometeu. Como tenho o exemplo em casa do que se sofreu na altura, embora muitos políticos de hoje não queiram que nos lembremos disso, fez sentido. Quando comecei a contactar as várias pessoas para integrarem a equipa, elas também sentiram essa ligação, porque todos têm familiares que viveram durante o Estado Novo. A história [do filme] é ficção, mas é muito provável que tenha acontecido algo semelhante. Há de ter havido muita injustiça dentro de uma sala de interrogatório da PIDE.
Gostava que houvesse mais histórias de terror focadas nesse período. Porque, quando falamos em terror português, há logo a ligação ao folclore, mas acho que há mais para lá disso.
Eu adoro terror folclórico e mítico, mas, para mim, o terror mais assustador é o político e mais actual. Aquilo que já aconteceu e o que pode vir a acontecer. Mas é uma área que ainda não se explorou tanto. O Cartas de Guerra, do Ivo Ferreira, não é de terror, nem para lá caminha, mas tem a habilidade de nos colocar frente a frente com o que aconteceu na Guerra Colonial. Porque ainda se olha para esse acontecimento de forma patriótica, e não da perspetiva das famílias que sofreram com as mortes dos filhos e dos maridos. Se se fizesse um filme sobre este tema, num formato pensado para terror, seria interessante.
Poderias ser tu, um dia, a agarrar nesse tema e a fazer filmes de terror sobre a guerra.
Nunca se sabe. [risos] A guerra não deixa de ser um filme de terror, mas penso que há um caminho para se fazer e que há lugar para o terror em Portugal. Um realizador de quem gosto muito é o Gonçalo Almeida e [o seu filme, Thursday Night, que ganhou o MOTELX em 2017] é das curtas de que mais gosto e que serviu como inspiração a nível técnico e cinematográfico. O Guilherme Daniel, também, já venceu algumas edições do MOTELX. Acho que cada vez vai havendo mais lugar, embora, no geral, sejam sempre filmes mais ligados ao mítico do que ao político. Mas haverá lugar para tudo.
Para terminarmos, como é que foi quando tiveste a notícia de que o teu filme tinha sido selecionado para o MOTELX 2023?
Quando recebi o telefonema, não queria acreditar. [risos] Quando reuni esta equipa, pedi sempre que o nosso grande objetivo fosse o MOTELX. Porque era onde gostávamos de fazer a estreia. Acima de tudo, é um sinal de que estamos no caminho certo. É um projeto de paixão, e acreditamos que a história merece ser vista. Não importa ganhar ou perder, já é um louvor poder fazer esta estreia nacional no que é, para mim, o maior palco de terror de Portugal.
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Sandra Henriques
Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.