Entrevista ao realizador premiado João Estrada

«A questão do comportamento do grupo em contraponto às opções individuais sempre foi a questão central do filme»

Em 2020, João Estrada ganhou o prémio de melhor filme português no Fantasporto, com Bunker, uma média-metragem de ficção científica focada na ganância e desespero (interpretação minha) de quatro personagens num contexto de epidemia. Um raro momento em que a ficção estava mesmo demasiado perto da realidade — Portugal entraria em isolamento menos de uma semana depois, por causa da COVID-19 —, embora fosse mesmo uma mera coincidência.

Conversámos sobre o marco que foi receber esse prémio na 40.ª edição do Festival Internacional de Cinema do Porto, nos prémios e nos festivais que vieram a seguir e nas várias lutas que rodeiam o fazer cinema em Portugal.

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Sandra Henriques

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O Bunker foi o teu primeiro filme, o teu projeto de final de curso?

Foi assim uma caldeirada, por assim dizer. [risos] Foi uma coisa estranha, um objeto um bocado estranho. Eu fiz o curso de cinema e tenho outras curtas que fiz em contexto puramente académico, porque eram exercícios de escola. Fiz uma curta-metragem de ficção e fiz um documentário. E depois havia o Bunker, um terceiro filme, extracurricular. Foi um filme que não deu para fazer com a chancela de produção da ESTC, mas mesmo assim eles deram apoio logístico muito importante em termos de equipamento e de acesso às instalações. E foi um filme que fomos fazendo ao longo do curso. Não é um filme do curso, foi um filme que fomos fazendo ao mesmo tempo que fazíamos a escola. Foi um acontecimento em paralelo, uma segunda escola de cinema, do ponto de vista prático.

Perguntei-te porque vi o filme no dia dos premiados do Fantasporto, em 2020, e, uns dias depois, entrámos em lockdown. Por isso, quando começaste a fazer o filme, estavas muito longe de achar que isto ia acontecer. Consideras o filme como sendo de terror, ficção científica, ou não encaixas aquilo em género nenhum?

Eu não o fiz com a pretensão de ser um filme de ficção científica ou um filme de terror. Foi pela história que eu queria contar, mas não tenho qualquer problema em categorizá-lo. E categorizando o filme, acho que ele está mais dentro do terreno da ficção científica. Ou, se calhar, de um thriller até.

O filme trabalha muito com a condição humana, não é? Numa situação daquelas, como é que as pessoas reagiriam?

É isso. Há sempre um contexto de ficção científica, mas é um contexto suave, vou chamar-lhe assim, porque nunca é uma ficção científica pesada, não depende de uma mitologia muito densa. A questão do comportamento do grupo em contraponto às opções individuais sempre foi a questão central do filme. Interessou-me, acima de tudo, fazer um filme de contrastes. Estes sobreviventes, num mundo lá fora que tem tudo para os destruir, sobrevivem porque trabalham em conjunto. Quando encontram um porto de abrigo, um oásis, chamemos-lhe assim, que lhes oferece temporariamente refúgio e conforto, esquecem-se de que precisam daquela união para subsistir. O dilema que depois se coloca na narrativa faz com que as prioridades individuais comandem as decisões de cada um, e isso destrói o espírito de comunidade. O bunker deixa de ser um refúgio e passa a ser uma prisão… ou pior. É um filme sobre as consequências de escolher o que é melhor para nós, individualmente, em vez de escolher o que é melhor para todos. E pelos olhos da protagonista, Mariana (Maria Estrada), julgo que posso dizer que é também  um filme sobre uma criança a observar a estupidez dos adultos. É uma parábola sobre o egoísmo, acima de tudo.

Como é que foi essa experiência de ver o filme ser selecionado para o Fantasporto?

Esse foi o grande momento de vitória para mim ao longo desses anos. O momento em que senti que tínhamos chegado onde queríamos foi no dia em que recebi o e-mail a confirmar a seleção no Fantasporto. Filmámos entre 2014 e 2016; depois, estivemos em pós-produção de 2016 a 2019; e em 2019, depois de tentarmos com os nossos recursos fazer correção de cor, montagem e mistura de som, que era o que exigia um tratamento mais profissional em termos técnicos, conseguimos um apoio muito simpático, num regime de produção associada, da Walla Post-Production Collective, cá em Lisboa. E isto foi em novembro ou dezembro de 2019. Já tinha enviado o filme para alguns festivais como um work in progress, só para testar as águas, para perceber qual era a resposta e também para tentar criar um catalisador ou uma deadline para nos forçar a acabar o filme. O filme estava a arrastar-se porque era uma coisa que íamos fazendo nos intervalos de outros projetos e das nossas vidas profissionais, que estavam então a começar. Nessa altura [quando submetemos ao Fantasporto], estávamos precisamente a acabar o filme, e parecia, de facto, uma meta final. Por essa altura, já tinha recebido também várias rejeições de outros festivais em resposta a esse work in progress.

E essas rejeições vinham com ou sem feedback?

Sempre sem feedback. Eu sabia, ou partia do princípio, que o filme ia ter uma vida de festival ou uma distribuição muito limitada, porque é um filme de 38 minutos e é muito difícil programar uma média-metragem, [porque] não se encaixa nos slots de programação dos festivais. Não tinha grande esperança de conseguir mostrar o filme em muitos lados. De certa forma, não estava super desiludido com as rejeições, estava à espera delas. Estávamos a acabar o filme e felizes por acabá-lo, mas também não havia imediatamente um «o que é que lhe fazemos a seguir». Estávamos a voltar a casa depois de uma sessão de pós-produção, eu e uma das coloristas, a Bárbara Sales, que também era a supervisora de pós-produção, e estava no metro [quando] recebi o e-mail do Fantas. E os e-mails começam sempre com «este ano, recebemos não sei quantas candidaturas, muito obrigado, foi um prazer». Como eles começam todos assim, pensei que fosse mais uma rejeição. Só mais tarde vi o e-mail com atenção e, quando vi que o filme afinal tinha sido selecionado, aquilo demorou-me a cair. [risos] Aí, de facto, senti que tudo se tinha alinhado, porque estávamos finalmente a conseguir terminar o filme, tínhamos o apoio técnico de profissionais e de uma empresa especializada que, numa parceria de coprodução, estava a permitir-nos terminar o filme como nós gostávamos e, de repente, havia uma deadline concreta, uma estreia anunciada. Era perfeito. Por isso, para mim, isso foi o grande momento de vitória, não foi o prémio a seguir.

E, de certa forma, era um risco para o Fantasporto passar um filme de 38 minutos.

Em alguns festivais, chegaram mesmo a dizer que, no processo de seleção de um filme, chegando aos 25 minutos, simplesmente paravam de ver, a menos que o filme fosse incrível. Porque não têm tempo.

Mas também sentiste que não deverias comprometer a história nem o filme por causa da duração?

Como isto foi um processo muito longo e também acompanhou um bocado o nosso crescimento e aprendizagem, houve muito tempo para matutar sobre o assunto. Enquanto estas questões de correção de cor e pós-produção de som não se resolviam, tive tempo na montagem, com uma colega minha, a Maria Maranha, montadora, para andar ali a brincar com encolher e esticar o filme, sempre na minha reflexão interior: «será que vale a pena sacrificar ou perder, estender certas coisas ou sacrificar outras para ter um filme que seja mais fácil de distribuir?». A certa altura, o peso de ter o filme inacabado era tão grande que o compromisso foi ter um filme na melhor versão possível, que tivesse o tempo que precisasse de ter, sem precisar de ser um filme com mais hipóteses de ir a todo o lado. Apesar de não ser um filme de escola, era um filme de escola. Por isso, o que fazia sentido era mesmo terminar.

Sentias que as rejeições tinham mais a ver com outras coisas além da duração do filme, de ser difícil de programar?

Os festivais têm várias agendas. Eu mandei para festivais em que o filme não estava de todo alinhado com aquelas agendas, por assim dizer, ou com aqueles tipos de programação. Por isso mesmo, também não me incomodava. Com o Fantas, estávamos mais bem alinhados.

E ganhar o prémio de melhor filme português, como é que foi essa aventura? Não estavas à espera?

Não estava, porque estava simplesmente tão contente de ir lá estrear o filme. Lembro-me de que, quando estava na escola de cinema, as pessoas passavam por mim nos corredores e me perguntavam: «então e o Bunker?». Era um fantasma a assombrar-me. Às vezes, reencontrava pessoas que estava há um ano sem ver e que me perguntavam: «então e o Bunker, já acabaste?» [risos] Por mim, tinha chegado onde queria chegar na estreia do filme. Para mim, a vitória era essa. Foi um bocadinho agridoce, porque grande parte da equipa esteve presente na estreia, ficou mais dois dias no Porto e tinham todos comprado bilhetes de regresso a Lisboa para a tarde de sábado, 7 de março, quando a entrega dos prémios era sábado à noite. Toda a gente se veio embora à tarde, porque ninguém contava com o prémio, nem mesmo eu. Só fiquei eu porque me avisaram pouco antes [risos], com a minha namorada. Foi agridoce, um bocadinho solitário. Gostava de ter lá estado com os meus colegas e a minha equipa nesse momento em específico, gostava de lhes ter agradecido naquela noite.

Que peso é que esse prémio teve?

Foi mesmo a experiência. Não foi o meu primeiro filme, já tinha tido outros filmes a circular em festivais, inclusive no Fantasporto. Mas nunca tinha recebido um grande prémio. Não era uma questão que tivesse romantizado, mas foi um choquezinho, porque de repente, quando achamos que a coisa não pode melhorar, a coisa melhora.

Sentes que te abriu mais portas ou ainda não? Porque o filme passou por mais festivais, no estrangeiro, e ganhou mais prémios.

Sim, passou por cerca de 20 e tal festivais e ganhou nove prémios no total. E foi uma coisa um bocado estranha. Não sei até que ponto é que o filme beneficiou em termos de distribuição com isso, mas a pandemia passou muitos festivais para o formato online. E o passar para o formato online é uma coisa que deve horrorizar muitos colegas meus — e até a mim, se calhar, me deixaria um bocadinho reticente —, mas na altura era a única opção, e acho que resolveu em parte este problema dos slots de programação. Já não havia um horário onde encaixar o filme, o filme era um link online. Por isso, acho que pode ter, de certa forma, aberto muitas portas para o filme ser selecionado para festivais que tinham a programação a ser mostrada em plataformas de streaming. Mas acho que sim, que o Fantas abriu [portas]. Os prémios têm esta coisa que é a atenção mediática, e o grande prémio é esse, as portas que se abrem são as do interesse mediático. É pena que, na maior parte das vezes, tenha de ser esse o catalisador para as pessoas quererem ver um filme ou para sequer saberem que ele existe. É um bocado difícil sondar em termos concretos quais foram os benefícios do prémio, mas eu sei que levantou muitas orelhas, por assim dizer. Criou-se um burburinho à volta do filme depois do prémio no Fantasporto. Esse burburinho ajudou nas ocasiões em que o filme foi exibido online — estando, ainda por cima, acessível a toda a gente. As pessoas que já tinham ouvido falar por causa do prémio, de repente, tinham o filme ali, acessível, e tinham interesse. Então, de repente, tínhamos muitas visualizações quando o filme estava disponível. Acho que, acima de tudo, o prémio nos abriu portas no sentido em que puxou pelo interesse das pessoas.

Foi a partir daí que a Querelle passou a distribuir o filme?

Não, a Querelle só entrou depois. Eu fiz sozinho a distribuição durante 2020, mas isso tornou-se um peso e eu tinha outros trabalhos em paralelo. Fazia toda a logística de marketing e produção, também. No início de 2021, nasceu uma relação com a Querelle e, a partir daí, eles asseguraram a distribuição, o que me aliviou bastante. Com os festivais, é uma aposta às cegas, e a verdade é que nunca tinha feito uma tentativa de distribuição tão alargada. Ainda por cima, com este filme, que é um objeto tão estranho — uma média-metragem, de ficção científica, um filme de género.

Se bem que temos de perder essas questões à volta dos filmes de género e aceitá-los pelas histórias que contam.

Eu senti que muitas pessoas que não são necessariamente os chamados fãs do género viram o meu filme, e não foi por esse apelo [do género] que o vieram ver. Se calhar, a história do Fantasporto e do prémio chamou mais a atenção das pessoas do que necessariamente o género do filme. Nos festivais, pela questão da curadoria e da estratégia de distribuição, tentei apostar em festivais focados em cinema de terror e em cinema de ficção científica.

Tenho pena que tenha demorado tanto tempo, depois do Fantasporto, para o filme ter chegado finalmente à televisão, ao Cinemax da RTP2. 

Aproveitei a deixa do tempo e festejámos os dois anos da estreia do filme. Acho que a experiência mais ingrata, e talvez a grande nova lição que aprendi, depois da dificuldade de fazer o filme, é que há toda uma outra dificuldade a seguir, que é manter o filme vivo. Porque parece que, se houver um mês sem ir a um festival, o assunto morre, o filme fica ali no vácuo outra vez até que aconteça alguma coisa que seja grande o suficiente ou apelativa o suficiente para alguém se interessar. E nós não estamos constantemente a reciclar espectadores, então é difícil. O Cinemax também está condicionado pelos próprios festivais, porque estes exigem uma janela de exclusividade de dois anos em que não querem filmes que estejam online, filmes que tenham passado na televisão, ou seja, querem filmes totalmente virgens. E os programas como o Cinemax passam os filmes depois do percurso pelos festivais começar a esmorecer, o que, de certa forma, é bom, porque é uma maneira de, de repente, lhes dar uma nova vida.

Mas, para quem está de fora, parece que demoraste dois anos a ter reconhecimento depois de teres passado por não sei quantos festivais.

Eu percebo a questão da exclusividade nos festivais, mas gostava que os festivais conseguissem ver um bocadinho para lá deles próprios. Uma boa sessão composta num festival tem, se calhar, 50 espectadores, mas o resto do mundo não vai saber do filme, não vai ver o filme, não vai àquele festival ver o filme. Com aquela exclusividade, estão a retirar outra vida que os filmes podiam ter. E não acho que um filme existir fora dos festivais tire vida [ao festival]. Porque quem vai aos festivais não vai pelo filme X ou pelo filme Y, vai por causa do festival em si. Como nós, que vamos todos os anos ao Fantas, ou vamos todos os anos ao MOTELX, ou vamos ao Caminhos. Somos da casa.

E tem de haver mais momentos de exibição para as pessoas não acharem que o terror (e outros géneros) só acontece em alturas específicas do ano.

É sempre esta luta de manter o filme vivo. Temos de levar o filme às pessoas porque as pessoas não vêm ao filme.

O Bunker contou com um elenco de peso. Como é que foi conseguir aqueles atores para este filme?

O elenco do filme foi uma bênção em todos os sentidos. Já tinha trabalhado com a Irene Cruz na curta anterior, por isso éramos amigos. Também conhecíamos o Diogo Lagoa, que faz o papel do rapaz mais novo. Trouxemos para a equipa o António Capelo e a Maria João Abreu. O António foi difícil, porque é do Porto e tinha uma agenda preenchida com o trabalho no Teatro/Palácio do Bolhão. Eu chateei muito o António para o conseguir no filme. Ele já tinha dito que não tinha disponibilidade, mas voltei a ligar-lhe já depois de ele ter dito que não a dizer que queria mesmo que ele participasse no filme. Sugeri-lhe que, como ele vinha do Porto e tinha disponibilidade limitada, escolhesse ele os dias de rodagem. Não conseguia contemplar outra pessoa para fazer aquele papel. Porque o António é muito carismático, é uma pessoa muito afável, muito calorosa, e tem um perfil de líder que eu queria que ele transplantasse para a personagem. Como elemento daquele grupo de personagens, ele tinha de, no início do filme, e de uma forma muito instantânea e rápida, vender o perfil do líder competente, e depois tinha de dar uma volta de 180 graus no fim do filme. Era preciso um ator que conseguisse fazer isso muito bem. A João [Abreu] foi fundamental. Nós conseguimos a Maria João quatro dias antes da rodagem. Sei que, por ter familiares que estavam a estudar ou que tinham estudado há pouco tempo no departamento de teatro da ESTC, ela estava muito familiarizada com a escola. Apesar de a escola não ser uma ponte entre nós e os atores.

Como é para ti dirigir essas pessoas que já têm carreiras longas?

Na altura, a adrenalina era tanta… Lembro-me do primeiro dia de rodagem, tínhamos uma equipa de 10 ou 12 pessoas da escola de cinema, mas a equipa ascendeu quase às 30 pessoas trazendo de fora amigos e pais e mães que vieram ajudar. Lembro-me de chegar ao estúdio, e de já estar a ficar composto este aglomerado de pessoas, e íamos filmar os primeiros planos com o António Capelo. Tenho a memória fotográfica do António a entrar pelo estúdio e pensar: «ui, é agora». [risos] Sentei-me com o António, ele tinha algumas perguntas em relação às personagens e ao contexto narrativo, eu dei-lhe uma espécie de background story sobre quem é era suposto ser aquela personagem. E depois tudo foi muito oleado, foi muito fluido. Com a Irene Cruz, estava totalmente à vontade, e a minha irmã é a minha irmã. Há uns tempos, ela contou-me que a forma como eu a dirigi na altura foi simulando as ações da personagem dela como as pretendia, e que ela depois tentava imitar ou replicar essas simulações. Eu não me lembro disso, o que é muito engraçado. Prova como o processo foi muito corrido e instintivo. Depois, havia esta coisa estranha em que havia parte do elenco com o qual eu estava muito familiarizado e descontraído, e outras pessoas que eu estava habituado a ver desde pequeno em cinema e em televisão, e que admirava imenso. Mas quando a Maria João Abreu chegava ao set de filmagens, havia ali um truque de magia qualquer que ela conseguia sempre fazer. Não é por ela não estar cá que eu digo isto. Se ela estivesse, dizia na mesma — ela transforma um set de filmagens. Foi tão divertido filmar com ela, a atmosfera mudava, ficava tudo mais leve. [Para quebrar o gelo], filmámos primeiro as cenas de luta. A minha direção foi um bocado por aí — vamos gravar estas cenas como aquecimento para o que vem a seguir. Chegar a uma escola de cinema, junto de um bando de putos, e filmar logo cenas de ação é uma coisa tão tresloucada que para eles foi divertido. [risos] Eles abraçaram o charme do cinema de guerrilha. A minha perspetiva no que toca à direção de actores é a de que, se os atores conhecem as personagens, eu devo confiar no instinto deles. Eles sabem o que estão a fazer se souberem «quem são». O resto é cumprimento de marcações. Só dizia: «faz um bocadinho menos ou dá-lhe um bocadinho mais». E o trabalho de atores foi muito isto.

Já pensaste em fazer um making of do filme?

O que eu gostava de fazer, se a minha vida profissional neste momento mo permitisse, era um documentário making of. E gostava de relançar o filme através da rede de cineclubes, para poder estender um bocadinho mais o tempo do filme em sala por circuitos alternativos, visto que a vida nos festivais está a acabar. E como o filme tem esta característica de ser uma média-metragem, gostava de fazer o making of numa duração de 20 minutos, meia hora, que pudesse complementar o filme de forma a fazer uma sessão que já tivesse 1 h, 1 h 10. Com uma discussão a seguir, já dava para fazer uma sessão longa.

Uma exibição em cinema «normal», achas que não seria possível?

Quando olho para o número de espectadores (que o ICA anuncia regularmente) a assistirem a filmes nacionais em distribuição comercial, é muito desolador. Quando penso no que custa e no retorno que isso dá, é muito desanimador. É muito difícil competirmos. Primeiro, as salas que dão aos filmes portugueses que estreiam são muito poucas. E raramente são salas nos cinemas que concentram grandes massas, para não falar da centralização das exibições disponíveis em Lisboa e no Porto, fora algumas exceções periódicas. O problema que temos de o público português não ter interesse em ver filmes portugueses não sei como se resolve. As pessoas têm muitos preconceitos, mas eu acho que é mesmo um problema de acesso a cultura e educação, que depois provoca uma falta de tolerância. É um círculo vicioso. As pessoas não veem, as pessoas não conhecem, partem do princípio que vai ser sempre o mesmo. Lembro-me de que, quando o Bunker ia estrear no Fantas, o compositor fez um post no Reddit, e alguém foi lá comentar: «eu, por mim, não dava nem mais uma carica para esses fundos de apoio ao cinema». Eu ri-me imenso, porque pensei: se o trailer do meu filme de ficção científica, com estes atores, à partida considerado «acessível», ofendeu este senhor, o que é que o irá contentar? [risos] É claro que o problema é bem mais profundo do que isto, e eu não faço campanha por filmes mais «acessíveis», porque honestamente a produção nacional, apesar de escassa, tem sido diversificada. A verdade é que grande parte dos portugueses não sabe sequer (não tem como saber) que os filmes existem quando estreiam; talvez combater essa invisibilidade fosse um primeiro passo para mudar as coisas.

E agora? Continuas a trabalhar em cinema?

Sim, em cinema qb. Tive uma formação um bocado mista, a minha licenciatura é em Som, ironicamente. Nos primeiros anos, ainda fazia alguns trabalhos como diretor de som, mas o que eu gostava mesmo de fazer era realização e montagem. Sempre andei a saltitar muito entre projetos de televisão, projetos institucionais e cinema. Comecei no ano passado [2021] a produzir e a realizar uma série documental para o Museu Nacional de Arte Antiga, que vai agora na segunda temporada e tem sido uma experiência completamente nova.

Preferes ficção ou documentário?

Acho que tenho mais inclinação para a ficção, mas agora estou a descobrir o documentário.

E projetos teus, um próximo filme que queiras fazer?

Eu estava a fazer uma longa-metragem. Comecei a fazer ainda quando estava a terminar o Bunker, uma tentativa de longa-metragem, um bocado no mesmo estilo de produção, completamente independente, aos bocadinhos, aos fins de semana, mas isso foi um projeto condenado pela COVID e pela própria natureza deste tipo de projetos de guerrilha. Era um filme com crianças, mas meteu-se o intervalo de dois anos e eles entretanto têm já 15 e 16 anos. Tenho uma longa-metragem que está 70% filmada e ainda não sei que resolução lhe hei de dar, por isso é um projeto que, neste momento, precisa de encontrar um novo caminho, um novo sentido.

Mas queres continuar a fazer projetos teus?

Sim, neste momento, temos um argumento para uma curta-metragem que estamos a ver se conseguimos financiar. É uma luta nova por descobrir, no sentido em que por essa ainda não passei, porque o Bunker foi autofinanciado pela equipa e beneficiou muito de ser um filme feito por estudantes. Tivemos um apoio tremendo da escola de cinema em termos de acesso a meios técnicos, e todas as pessoas que vieram de fora, inclusive o elenco, participaram em grande solidariedade connosco. Nesta altura das nossas vidas, é impossível fazer um filme sem passar por essa luta. Temos um argumento que estamos a tentar financiar, que também está no género do thriller, com alguns contornos de comédia negra.

Isso é capaz de ser o teu estilo, não?

Talvez seja mais. Talvez seja. Quer dizer, eu gosto muito de terror, mas nunca fiz terror, terror. Mesmo nos projetos que tenho escrito, só em papel, nunca está 100% lá, mas não sei explicar porquê. [risos] Porque não são decisões conscientes. Aliás, eu escrevo primeiro os filmes e só depois é que me perguntam: «isto é o quê?» Quando estou a fazer o dossier para a candidatura é que me perguntam: «o que é que eu meto no género?». Aí é que faço a introspeção para poder responder a essa pergunta. [risos]