Entrevista ao autor Nuno Amaral Jorge

«O terror serve para explorar aspetos da natureza humana com os quais as pessoas não querem confrontar-se»

Nuno Amaral Jorge já publicou dois livros infantojuvenis, um romance, bandas desenhadas e alguns contos de terror em antologias. Ainda lhe falta — mas espero que isso se resolva em breve — publicar uma obra de terror em nome próprio.

Numa esplanada de Lisboa — a sua cidade —, falámos de livros (os seus e os dos outros), de filmes, dos preconceitos que quem é «de fora» ainda tem em relação ao terror e para onde caminha o género em Portugal.

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Sandra Henriques

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Tens dois livros infantis e um romance publicados, mas ainda não publicaste terror?

Em 2004, [participei] numa coletânea de contos da Coolbooks, [uma chancela] que já não existe. Eles fizeram uma coletânea de contos de verão e o meu conto é um conto de terror.

 

Então, tecnicamente, já publicaste terror. E o tema era genérico, mas submeteste um texto de terror?

Sim, e passou.

 

Grande coragem da parte de quem organizou ter aceitado esse conto. Mas provavelmente porque não era aquele terror de que estavam à espera?

Era contido. Não era muito ou nada soalheiro, mas ainda assim era contido, sim.

 

O que é que vem então primeiro na tua cronologia de autor publicado?

Essa antologia é a primeira de todas, em 2004. Depois, vem o livro infantojuvenil em 2018 [A Joaninha ao Contrário e Outras Histórias]. Em 2019, o romance [As Três Mortes de um Homem Banal]; e depois, entre 2019 e agora [2022], foi o conto na Fábrica [Livre-Arbítrio], um conto nos 30 anos da APAV e a banda desenhada [Apocryphus – Monstro!]. E vai sair um segundo conto para miúdos, espero eu a tempo da Feira do Livro. Em resumo, escrevi dois livros infantojuvenis, um deles sobre ser advogado (porque fui jurista; por engano, claramente) [risos], o romance e depois tenho material que nunca mais acaba.

 

Como é que aparece a escrita na tua vida? Porque tu não fazes disto carreira.

A escrita aparece desde muito cedo. E não, lamentavelmente, não posso dedicar-me apenas à escrita. Gostava, até porque não era só a questão de escrever. Era também poder ler mais. Eu leio todos os dias, mas tenho muito pouco tempo para ler em termos da quantidade que considero ser desejável. Mas, como costumo dizer, tenho dois trabalhos. Tenho um que paga as contas e o outro que era o que eu gostava que pagasse as contas, mas não paga.

 

E porquê infantojuvenil?

Há aqui dois paradoxos. Eu não tenho instinto paternal, não tenho filhos, mas é uma história curiosa. Uma amiga minha tinha uma sobrinha que estava aflita para entregar um trabalho na escola, e o trabalho era escrever uma pequena história com uma temática que fosse proeminente na altura, nomeadamente a questão do ambiente. Escrevi uma história de uma andorinha que não conseguia migrar porque as alterações climáticas eram de tal forma que ela não sabia para onde é que tinha de ir. Os putos deliraram com aquilo! Tenho a sorte de ter passado uma parte significativa da minha infância a 50 metros de uma biblioteca municipal e passava lá os meus dias. Era asmático, portanto para andar a correr também não dava muito, e foi das sortes que tive. Uma biblioteca à antiga, onde li os primeiros Lucky Luke, os primeiros Asterix. Li o Hobbit, a primeira edição [em português]. Li os livros da Enid Blyton, o Noddy, que não tem nada a ver com aquilo que os miúdos veem. Fiquei com a pancada dos livros, e é uma espécie de obsessão desde miúdo. Li Poe muito jovem, com uns 11 anos, acho eu. Já não o fiz nessa biblioteca, porque nessa altura não tinha acesso à mesma, mas o meu pai tinha uma coletânea em casa, e eu lembro-me de começar a ler o autor. Era uma prosa muito sofisticada e um terço das coisas eu não percebia, mas fiquei fascinado com aquilo. É como descobrir algo realmente e uma pessoa “nunca mais sai dali”.

 

Então é daí que vem o bichinho do terror, dessa primeira leitura do Poe?

Eu, se calhar, sou de um seminicho. [Do] Stephen King, já li mais de 50 livros e acho que ele possui uma «coisa» à parte. Mas o bicho, de facto, nasceu com o Poe, com os Crimes da Rua Morgue, que, como se sabe, é mais um policial. Aliás, o método dedutivo que o Conan Doyle vai buscar começa com o Auguste Dupin, que é o personagem principal dos Crimes da Rua Morgue. Mas toda aquela atmosfera…

Fui um miúdo que teve de crescer um bocado à pressa, porque era asmático e começar a ler aos 4 anos e meio não faz propriamente ganhar concursos de popularidade. É um bocado clichê, mas os livros começaram por ser uma fuga. E eu digo seminicho porque gosto muito de terror, mas o que me leva à certa é o terror mais psicológico. A cena gore, o torture porn, não acho piada. O que me diz [mais] são coisas como a Shirley Jackson, são filmes como o Shining, por exemplo. O Kubrick fez um filme que influenciou toda a gente. Acho que, hoje em dia, não há ninguém que faça um filme sobre um sítio assombrado que não vá buscar qualquer coisa ali. Por exemplo, O Exorcista [também]. Tenho cinco livros a que chamo os cinco malditos: Tubarão, de Peter Benchley, Rosemary’s Baby, de Ira Levin, O Exorcista, de William Peter Blatty, Psycho, de Robert Bloch, e The Shining, de Stephen King. Chamo-lhe o quinteto maldito. São livros marcantes. A violência e o medo da violência e o medo da morte fazem parte, mas chocar é o mais fácil. Com o conto que mandei para a Fábrica, houve pessoas que leram e que me perguntaram: «estás bem?». E eu disse-lhes: «vocês acham que isto é o pior que eu consigo imaginar?» [risos] E é um bocadinho por aí. Eu gosto do incómodo, do mal-estar, mas em termos de cinema não contem comigo para o Hostel e [filmes desse género]. Porque eu não tiro nada dali. Aquilo, para mim, é tentativa de chocar. Aquilo que faço, em termos daquilo que escrevo, também puxa um bocadinho por aí, ou seja, é tentar o mal-estar. A violência pode lá estar (aliás, no conto está), mas é causar o mal-estar pela estranheza. Quem está a ler percebe que há ali qualquer coisa fora do contexto desde o início. É como O Médico e o Monstro. O Hyde está deformado, e toda a gente olha para ele e tem um incómodo, mas não percebe muito bem porquê. É como se ele estivesse “fora de sítio”. Toda a gente olha para ele e percebe que está ali alguma coisa deformada sem ser de forma evidente. É o desconforto. E é um bocadinho por aí que eu gosto de ir. E o fantástico sempre me pegou porque, como apela a estados limite, faz com que aquilo que as pessoas realmente são venha ao de cima.

 

Os Medos da Cidade é uma antologia de fantasia urbana, mas o teu conto [Natalloween] é talvez o único que possa ser considerado terror. De onde é que veio a inspiração para esse conto?

Aquele conto foi escrito em 2014. Eu gosto do Halloween. Sei que é uma importação anglo-saxónica, mas gosto do conceito do All Hallows Eve. E pensei: apetecia-me celebrar isto, mas não me apetece andar por aí com uma abóbora na cabeça, [então] vou escrever uma história. [Desde aí], todos os anos, escrevo uma história que apanha o Halloween e o Natal. Vou no Natalloween número 6.

 

Isso dá para fazer uma antologia.

Já tenho material para fazer uma antologia. O último conto que estou a escrever vai ser esticado e ficará uma novela, pelo menos. Gosto porque é quase como se o fizesse sem esforço e é um universo onde me sinto completamente à vontade. Como tenho um certo talento para ver o lado obscuro das coisas, acaba por ser-me quase natural. Uma inclinação, digamos assim.

 

Não tens medo de ir a esse lado?

Nada.

 

É bom que menciones isso de as coisas surgirem com naturalidade. Eu acho que isso é interessante porque todos somos diferentes como escritores, mas o que mais detesto ouvir são os comentários em relação a autores como o Stephen King, de isso ser uma coisa má, o «não dar trabalho». 

Só me ocorre uma palavra, inveja. [risos] Da minha parte, atenção. [risos]

 

Sentes que essa tua facilidade pode levar a que as pessoas te levem menos «a sério»?

Não, até é muito engraçado, porque eu escrevo outras coisas, mas gosto muito de ir aqui [a este género]. Sinto-me completamente à vontade, não me custa. Mas as pessoas que gostam das coisas que eu faço perguntam-me: «tu safas-te tão bem a fazer outras coisas, porquê o fantástico?», porque o fantástico não entra em toda a gente, há um preconceito. Eu dou sempre aquela velha palestra, que é sempre a mesma, «então e o Hamlet, e o Fantasma dos Canterville, o Rebecca?» Acho engraçado é as pessoas virem com a literatura do realismo e depois temos civilizações baseadas em livros que falam de seres imaginários. Mas adiante! [risos] Tenho resistência por parte de algumas pessoas porque esse tipo de literatura não lhes entra, mas depois, quando leem, acabam por perceber que esse universo é no fundo uma desculpa, ou uma ferramenta para passar outras coisas. De facto, o medo, a violência, o estado de urgência, o estado limite… Tu percebes que há tanta coisa que passa a partir daí porque crias uma premissa, e essa premissa permite-te discorrer sobre o que quiseres. A coisa mais difícil que tive de fazer até hoje, e custou-me um ano da minha vida, está algures perdida numa editora. Essa, sim, é uma cena de terror. Foi um conjunto de entrevistas que fiz a um rapaz que foi vítima de abuso sexual pelo irmão mais velho quando era criança. Estive sete meses a fazer entrevistas e mergulhado naquilo que as pessoas nem imaginam. E as pessoas com quem falei [sobre esse projeto] disseram-me isso: «eu não quero ler». Aquilo é a realidade. Mas isso é a mesma coisa que dizer que não querem ler sobre o Holocausto. Isto aconteceu. Se calhar, é preciso ler sobre as coisas para perceber o mundo em que vivemos, e o terror também serve muito para isso. Para mim, pelo menos, o terror serve para explorar aspetos da natureza humana com os quais as pessoas não querem confrontar-se. Então, nesta era da ditadura da felicidade, em que temos de ser todos felizes, essas pessoas metem-me medo, confesso. A nossa natureza não é linear, e temos coisas muito, muito feias e muito perigosas e muito, muito violentas na nossa natureza.

 

E é isso que estamos a fazer quando escrevemos terror. As coisas existem, não estamos a inventar.

As pessoas, se soubessem metade do que acontece quando o Estado Islâmico ou o Boko Haram capturam uma aldeia… Porque isso, sim, é terror. É esta infantilização que depois também retira o peso e a dimensão necessária às coisas boas. E acho que, [em relação ao] terror, foi giro desde muito cedo eu ter começado a achar piada a coisas que me assustavam.

 

Lembras-te do primeiro livro que leste e que te assustou? Mesmo que não tenha sido terror.

Não foi o primeiro. O primeiro livro que me assustou — estamos a falar de 1983, eu tinha 9/10 anos e foi na tal biblioteca — era um livro de histórias de fantasmas para miúdos, não me lembro do autor. Mas lembro-me de aquilo estar a assustar-me, e de eu não conseguir deixar de ler. Queria ver o que é que vinha a seguir. Na banda desenhada, na Marvel por exemplo, havia o Morbius, o Homem Coisa, que puxavam um bocadinho para um lado sombrio, e eu achava imensa piada àquilo. E acabou por ser um gosto adquirido. Passei, desde muito cedo, a gostar de casarões, de edifícios antigos. Uma coisa que adoro fazer é ir para Sintra à noite, com tudo escuro. E sempre, desde muito cedo, é uma atração, ou seja, tem a ver com uma estética, um ambiente. Os sítios escuros sempre me deixaram à vontade, e é uma coisa de que gosto profundamente. Lá está, os fantasmas, o folclore, os monstros, mesmo a própria violência. O Anthony Hopkins, a propósito da sedução do medo, da ansiedade, dizia que a primeira coisa que fazemos quando vemos um bebé é dizer «bu». Porque queremos assustar-nos, sair da sala de cinema ou das páginas e pensarmos: OK, é um shot de adrenalina.

Há muita coisa que ainda tem de se desmistificar em relação ao terror, e não vai acontecer num curto espaço de tempo. Tu sabes disso, são anos a explicarmos às pessoas que não somos malucos e a dar sugestões de livros para ler.

Se calhar, começar pelo Lovecraft, não. Mas diria [que podem] começar pelo Poe.

 

E projetos para o futuro, ligados ou não ao terror?

Gostava de fazer a antologia do Natalloween, até porque vou escrever mais. É ritualizado. Chega o início de outubro, largo o que estou a fazer e concentro-me naquilo. Este que estou agora a fazer vou expandi-lo, até porque quero participar no Prémio António Macedo do ano que vem [2023]. E tenho uma ideia, mais na ficção científica, embora tenha ali elementos de terror. Tenho uma ideia para uma série que pensei em fazer com um amigo meu, que já foi meu artista no Apocryphus, que é: Jesus Cristo, detetive privado. A ideia é a de que Cristo existe, ressuscitou ao fim dos três dias, mas não foi para o Céu, andou por cá. Só que, nos dias que correm, depois de se ter apercebido daquilo em que a humanidade se transformou, é alcoólico, gosta muito de mulheres e é detetive privado, com a vantagem de perceber sempre, ou quase sempre, quando lhe estão a mentir. A ideia é agarrar em mitos e passá-los para cenários de crimes contemporâneos que ele tem de resolver. Tem a componente do terror com a sobrenaturalidade, violência, crimes. [Além disso], tenho projetos para pequenos contos. Pequenos, para mim, são 20 páginas. [risos] Tenho muita coisa que gostava de fazer, só que, lá está, quando trabalho sem deadlines, sou mais procrastinador. E em 2023, vou publicar um livro por outra editora, uma história de distopia, o que provavelmente me vai ocupar a vida a partir do fim do verão até fevereiro ou março.

 

É a primeira vez que escreves algo nesse género?

Não. Uma das primeiras coisas que escrevi — que está guardadinha e não mostro aquilo a ninguém embora talvez um dia lhe pegue —, é uma distopia de uma Lisboa deserta.

 

Qual seria um género em que nunca escreverias?

Depende. Depende muito, porque tens de ser capaz de. Por exemplo, nunca seria capaz de fazer o que o [Pedro] Chagas Freitas faz. Sem querer ser deselegante. Não consigo. Há determinado tipo de assuntos que não me interessam particularmente, [como] o romance de cordel, a historiazinha romântica. Histórias de amor, sim, mas como deve ser. Espionagem também não me diz grande coisa, não é uma coisa que me estimule.

 

Que futuro tem o terror em Portugal? Como é que estamos, para onde é que vamos? Temos futuro? [risos]

Isto merece uma resposta longa. [risos] Em Portugal, há vários estilos que têm a vida difícil: o policial, o terror e o thriller político. O terror acho que tem um futuro mais risonho, porque há muita gente que já se sente legitimada a sair do armário, a dizer que gosta daquilo. Por exemplo, o Walking Dead é um fenómeno. Na Netflix, uma das séries mais vistas em Portugal foi o The Haunting of Hill House. Se vai ser uma coisa que vai chegar ao mainstream, não sei, mas acho que tem vindo a crescer, e há muitos leitores para este tipo de ficção. Alguns ainda estão hesitantes, porque Portugal tem, como em tudo, de acabar com a porcaria dos poleirinhos. Não podes ter uma pessoa que é dona de uma das únicas editoras que editam fantástico em Portugal a dizer que só tens dois autores de ficção científica ou de terror em Portugal. Para já, porque é mentira. Sobretudo, não podes fazer isso quando usas a tua editora para publicar as tuas coisas. Há público, e a verdade é que a própria Fábrica do Terror tem tido um crescimento exponencial. Faltam-nos Stephen Kings portugueses, teres uma coisa que agarra na nossa contemporaneidade e lhe injeta desconforto, que no fundo é o nicho de terror que me interessa. Ou entra num esquema muito superficial de «vamos aqui escortaçar umas pessoas», ou, se for uma coisa com profundidade, em que as pessoas realmente acreditam naquilo que estão a fazer, vais ter um público. Pode ser um grande nicho, mas vai levar algum tempo até deixar de o ser.

 

Acho que, algures no tempo, tem de chegar ao mainstream

Eu acho que rapidamente vai chegar a um sítio entre o mainstream e o nicho.

 

O que mais detesto ouvir é que não há terror em Portugal e, quando há, é visto como derivativo, ou uma cópia do que se faz lá fora. 

Em relação a isso do derivativo, posso falar-te de um artigo de um professor de Teoria da Literatura americano que chegou à conclusão de que só existem 38 variações de narrativa-base, não há mais. Inauguradas todas na antiguidade clássica. Portanto, é normal que peguemos em coisas que já foram feitas, o problema é se, ao pegarmos, estamos a pegar bem. Porque uma coisa puramente original, do género «eu nunca vi isto», não vai acontecer. Vai ser difícil fugir ao folclore. Vai ser difícil fugir aos vampiros, aos golems, ao mito do Prometeu. Eu gostava de conseguir publicar, com todas as devidas distâncias, qualquer coisa parecida com o Stephen King português. Ou seja, agarrar na minha realidade e dar-lhe ali uma volta para deixar gente desconfortável, mas, ao mesmo tempo, interessada naquilo, e com base no nosso mundo sem ter de ser o galo de Barcelos ou o caldo-verde. As pessoas perceberem que se está a viver em Lisboa (e tem de ser Lisboa porque é a cidade onde vivo), mas que é português sem ter de ser aquela coisa do tapete de Arraiolos. Gostava também de conseguir pôr alguma coisa maior nos escaparates com esse cunho. De fantástico ou de terror, ou as duas coisas misturadas, porque a minha onda é a casa assombrada, as sombras, o escuro, o desconforto, o terror mental, a loucura.