Entrevista aos criadores de «Don’t Feed These Animals»

Guilherme Afonso, Miguel Madaíl de Freitas e José Alves da Silva contam como surgiu a história do coelhinho lobotomizado.

«Nunca pensámos estar em festivais, nunca pensámos em ganhar prémios, mas era bom que isto se traduzisse em algo, pelo menos que vissem lá fora que há talento cá em Portugal.»

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Sandra Henriques

«Estar no sítio certo, à hora certa, rodeado das pessoas certas» parece o clichê usado por quem não quer revelar muito da origem da sua obra, mas, no caso de Don’t Feed These Animals, foi precisamente isso que aconteceu.
Havia vontade de fazer um filme de animação 3D, algumas ideias para histórias e tudo se concretizou com a ilustração de um coelhinho lobotomizado oferecida como prenda de Natal (a ilustração, inclusive, aparece no início do filme. Vejam com atenção).
Mais de dois anos depois da sua estreia, esta curta ainda dá que falar e, por nós, há espaço para uma série, ou uma longa-metragem, e, definitivamente, uma coleção de peluches.

 

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Os realizadores Guilherme Afonso e Miguel Madaíl de Freitas

José Alves da Silva. O criador das personagens.

Como é que surge esta história do coelhinho lobotomizado e da cenoura mutante?

Guilherme Afonso: A Nebula é um estúdio de animação. Hoje em dia, não só de animação, também filmamos live action e misturamos os dois mundos. Mas essencialmente começámos pela parte de animação, 2D e 3D. E sempre tivemos vontade de fazer um filme, seja uma longa ou uma curta, só que nunca tivemos aquele empurrão certo. Tivemos várias histórias que pensámos fazer, várias ideias, mas nunca houve nada que nos desse aquele empurrão final. E um dia, o Zé [Alves da Silva] ofereceu-me um desenho numa festa de Natal que tinha um coelhinho lobotomizado em cima do Pai Natal. [risos] Foi aí que tudo começou. Olhámos para o coelho e pensámos: «temos de fazer o filme deste coelho. Um coelho tão fofinho, mas de repente tem uns parafusos na cabeça? O que é que aconteceu?» Escrevemos os três a história. Foi um processo que, apesar de acharmos que ia ser simples, não foi. [risos] Demorámos imenso tempo, apesar de a história ser super simples e não ter diálogos.

José Alves da Silva: O mérito deste projeto é sobretudo da equipa da Nebula. Eu desenhava o coelho, e ainda continuo a fazê-lo, em contextos familiares. É uma espécie de alter ego. Em quase todos os desenhos que faço do coelhinho, quem os vê sabe que são coisas relacionadas com a minha família, são private jokes. Mas sempre com um twist um bocado malicioso, porque há essa graça entre o personagem, que é muito querido e ao mesmo tempo tem uma personalidade retorcida. Perguntaram-me se podiam usar este personagem para fazer o filme e eu disse logo que sim. Se houvesse alguém a quem, com certeza, facultaria o personagem para fazer um filme seria a eles, que são meus amigos. E sobretudo queria muito que, quando eles agarrassem no personagem, tivessem rédea livre em relação à criatividade. Ainda que tenha participado na elaboração da própria história, sempre quis que fosse a história deles, apesar de o personagem original ser meu. E fui muito egoísta no processo, em que só participei nas coisas que me davam mesmo gozo. [risos]

Miguel Madaíl de Freitas: És um coelhinho retorcido! [risos]

JAS: Eles estiveram dois anos a trabalhar em força, a sofrer com a equipa toda, a fazer o investimento todo, e eu, por exemplo, que sou artista de 3D de profissão, até podia ter colaborado no projeto para fazer o modelo, mas não. Como faço isso todos os dias, quis precisamente fazer a outra parte que não faço, que eram os conceitos 2D. Tudo aquilo que não faço no meu dia a dia foi aquilo em que colaborei [neste filme]. Porque, para mim, era para me divertir.

 

Guilherme e Miguel, como é que foi corealizar este filme?

GA: Nós estamos super habituados a isso. Nem sei quantos filmes já fizemos juntos, mas são à vontade cerca de cem.

MMF: O aspeto mais positivo associado a [trabalharmos juntos há muito tempo] é que, quando não concordamos, conseguimos ouvir bem as ideias um do outro e, apesar de termos ideias completamente díspares, conseguimos encontrar um caminho alternativo que é ainda melhor do que o que tínhamos pensado. No caso desta curta, tínhamos o Zé à mistura. Éramos três maluquinhos numa sala de reuniões. [risos] Cada um com uma ideia mais mirabolante. [risos]

 

Desde a nomeação para os Óscares, em 2023, da curta-metragem portuguesa Ice Merchants, a animação parece estar «na moda», mas vocês já fazem isto há algum tempo. Como é que começou a vossa carreira na animação?

JAS: Atualmente, trabalho única e exclusivamente como escultor de figuras de personagens e super-heróis. Sou formado em arquitetura, depois comecei a fazer 3D para arquitetura, e daí passei para o 3D de personagens. Durante alguns anos, trabalhei como freelancer a fazer personagens especificamente para a animação e foi aí que eu conheci a Nebula. Foi nessa altura que começámos a colaborar em alguns projetos. O primeiro foi para a Vodafone, os CorlYons, em que fiz os modelos 3D dos personagens que depois foram usados nas animações de publicidade. Depois, começámos a participar [juntos] em vários projetos. Às tantas, fez sentido eu mudar-me para o espaço deles, apesar de estar independentemente a fazer as minhas coisas, e acabei por me direcionar mais para a área da escultura dos personagens para animação e jogos.

GA: Tirei o curso de cinema e, apesar de ter algumas disciplinas ligadas à pós-produção e à animação, sempre fui aprendendo tudo por mim. A escola não chegou. Criámos a Nebula em 2008 e conhecemos o Miguel em 2010, que trouxe esta componente muito mais forte de animação 3D. Aí é que comecei a divergir mais para essa área. Apesar de não animar literalmente. O Miguel sempre esteve ligado à animação 3D.

MMF: Eu comecei as minhas aventuras com a animação, com 3D especificamente, quando tive o meu primeiro computador aos 13 anos. Fiz a cabeça aos meus avós, disse-lhes que ter um computador era muito importante, mas claro que eu queria era jogar. [risos] Só que rapidamente deixei de querer só jogar e prestava mais atenção às introduções dos jogos. Queria aprender a fazer aquilo. Na altura, não havia cursos, não havia Internet. Era tentar encontrar alguém que soubesse alguma coisa sobre isso. Lembro-me de que havia um clube onde se alugavam jogos no centro comercial da Avenida do Brasil [em Lisboa] e, ao falar disto com o empregado da loja, ele arranjou-me uma disquete com um programa que dava para fazer 3D. E, basicamente, aos 13 anos, já fazia algumas coisas [simples]. O meu percurso académico foi sempre relacionado com «o que é que eu consigo fazer para me aproximar daquilo que já sei que quero fazer». Acabei por seguir Design, depois comecei a trabalhar a fazer 3D para arquitetura e depois fui fazendo de tudo um pouco como freelancer, até conhecer a Nebula.

 

O Don’t Feed these Animals passou por imensos festivais e ganhou muitos prémios.

Liliana Ramires: Em festivais, entrámos em cerca de 100. E prémios ainda foram uns 20, incluindo menções honrosas.

GA: Ganhámos pelo menos dois festivais e depois tivemos menções honrosas, ganhámos prémios do público.

MMF: E depois ainda tivemos a possibilidade de sermos candidatos a candidatos à nomeação para o Óscar, precisamente por andarmos aí pelos festivais.

A shortlist da shortlist de filmes que poderiam ir a votação para serem nomeados para os Óscares em 2020. 

GA: Nesse ano, o Tio Tomás, a Contabilidade dos Dias, da Regina Pessoa, chegou à shortlist final, mas não chegou aos nomeados.

 

Não sei, antes desse filme, quantos mais filmes de animação portugueses estiveram perto de lá chegar. Não se falou muito nisso.

MMF: Nós também não sabemos. É como morrer na praia. Se não estás dentro dos dez primeiros, é como se não estivéssemos lá de todo. Para nós, o facto de estarmos na lista é uma vitória enorme. Soube-nos tão bem como ter a própria estatueta, para todos os efeitos. Há uma parte de reconhecimento que não estávamos à espera. Quando fizemos o filme, tínhamos um objetivo concreto, e queríamos que a escolha do filme, o teor e o estilo não fossem exatamente aquilo que, cá em Portugal, estamos habituados a ter: cinema de autor, de certa forma, seja de animação ou não. Queríamos fazer algo muito nosso, [que refletisse] as nossas referências todas. O Zé foi o grande catalisador para, de repente, termos algo, porque ideias tínhamos muitas fechadas na gaveta. Foi o culminar de várias sinergias que possibilitaram fazer isso, mas com o objetivo de «vamos fazer algo que possa estar dentro dos cânones comerciais da Pixar e da Disney, mas com um toque nosso; que possa ser transformado numa série, num filme, que possa trazer algo mais, nem que seja trazer mais trabalho a nível de publicidade». Tinha um objetivo comercial por trás. Nunca pensámos estar em festivais, nunca pensámos em ganhar prémios, mas era bom que isto se traduzisse em algo, pelo menos que vissem lá fora que há talento cá em Portugal. E há possibilidade de fazer produtos, chamemos-lhe assim, porque não há outra forma de lhes chamar. Também podemos pensar que não entrámos em Annecy, e por alguma razão foi. Porque, se fores a ver, cada vez há menos filmes de 3D a serem aceites em festivais.

GA: Nós não tivemos financiamento, foi tudo do nosso bolso. Se fizermos um filme comercial mais a sério, uma longa ou uma curta ou uma série, aí vai ser com investimento de um estúdio, de um streaming.

MFF: Nunca fez parte da nossa equação pensar pedir isto ou aquilo. Não, fizemos isto só para nós, dependemos de nós, até mesmo os apoios que conseguimos foi quase numa perspetiva de quem está a desenhar um plano de negócios. A nossa abordagem foi falar com as marcas de software que nos cederam as licenças e aprendermos novas ferramentas, que hoje ainda usamos no nosso trabalho. Foi mandar o barro à parede, serviu para tudo, até para o compositor, o Steve Rucker, que compôs a música do Dexter’s Laboratory. Foi sempre assim, neste filme. Se isto é mais ou menos esforço do que outras pessoas fazem? [Não sei.] Isto foi uma odisseia nossa, ultrapassámos os desafios dia a dia, e a trabalhar pelo meio. Foram dois anos disto. Foi muito giro e muito difícil, foi o Céu e o Inferno ao mesmo tempo.

 

Quando apresentámos este filme no Shortcutz Lisboa, o público perguntou no final: «para quando uma série com estas personagens?». É essa a nossa pergunta também: vamos conhecer melhor a história deste coelhinho lobotomizado?

GA: Sem dúvida que o nosso sonho é fazer uma série, ou uma longa deste universo, porque para nós o universo é muito maior do que aquilo que está exposto na curta. Pelos desenhos do Zé, dá para ver o potencial do boneco e dos personagens secundários que o Zé, às vezes, também desenha. Inclusive, já escrevemos um documento (que não é ainda um guião) onde exploramos a ideia para fazer uma série. Já fizemos o layout da história toda para uma temporada. E também já fizemos o mesmo, não tão desenvolvido, mas para um filme. A ideia é agarrar nisso e arranjar quem queira fazer. Para nós, isso é impossível. Já estivemos em vários sítios, já tivemos pessoas interessadas. Até agora, não houve nada concreto, mas ainda não morreu. Só não sabemos se vai acontecer nem como vai acontecer. Sem dúvida que seria inspirado e teria os personagens que estão na curta, mas seria muito maior. Até por nós termos feito uma história super simples, sem diálogos. No filme ou na série, isso não poderia acontecer. Só por aí, abriu logo uma porta gigante para ter um plot completamente diferente.

 

Acham que falta divulgação de filmes de animação portugueses, nos canais de televisão, por exemplo?

GA: Acho que hoje em dia, cada vez mais, não estamos presos só ao conteúdo e às estruturas de informação portuguesas. Acho que, para os miúdos, não interessa de onde vem, desde que lhes chegue à frente. Eles vão a uma plataforma de streaming e procuram animação, seja de que país for. Se acharem apelativo, veem. Obviamente que, quanto mais programas fomentem esse tipo de informação, melhor. Não ligo muito à questão de ser português e de ter de ser divulgado só porque é português.

MMF: Não sei se consigo fazer desenhos animados como existem hoje em dia, que os miúdos gostam. São tão desconexos, tão alienados de tudo, de história, de sentido. É uma bomba multimédia. Isto porque temos esse background, de haver sempre alguma história. Não sei se isto é qualidade, se é falta dela. Os meus filhos veem muitas coisas que eu não compreendo, mas tento que eles vejam coisas como As Aventuras do Tom Sawyer, que é completamente diferente. Tem uma história, fá-los pensar nas coisas, tem valores morais e por aí fora. Pessoalmente, sinto que devia haver mais destes conteúdos. Porque não acho que os miúdos não sejam capazes de absorvê-los. É simplesmente uma questão comercial, porque não há mais dessa oferta. Eles veem o que lá estiver, o que aparecer no ecrã.

 

O que diriam a alguém que queira seguir uma carreira na animação?

GA: É muito difícil, pelo menos para mim, aconselhar em termos de vida profissional, porque eu ainda hoje não sinto que trabalho, sinto que me estou a divertir. Obviamente que temos fases menos boas, mas ainda assim não sinto que trabalho, sinto que ando a fazer aquilo de que gosto, e acho que eles os dois sentem exatamente o mesmo. Nesse sentido, o conselho que tenho a dar é exatamente esse: tentar descobrir algo que se goste de fazer e que, por acaso, é uma profissão. No nosso caso, acho que é isto.