Entrevista aos diretores do MOTELX

Falámos com Pedro Souto e João Monteiro sobre a 18.ª edição do festival.

Um número recorde de mulheres realizadoras nas curtas portuguesas em competição, filmes de terror censurados pelo Estado Novo e cinema de terror indiano.

A 18.ª edição do MOTELX começa esta terça-feira, dia 10 de setembro. O programa, como sempre, promete criar fãs, desilusões, surpresas e muita conversa de corredores sobre os melhores filmes de terror do festival (e talvez do ano). Falámos com Pedro Souto e João Monteiro, os diretores do festival, sobre os filmes que destacam, filmes portugueses «perdidos», a nova secção Sala de Culto e inteligência artificial.

 

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Sandra Henriques

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À medida que o programa foi sendo anunciado, havia expectativas de muitos fãs sobre determinados filmes que gostariam de ver nesta edição e os filmes selecionados acabaram por ir ao encontro dessas expectativas. «Acertaram» no Speak No Evil (filme para a sessão de abertura que já esgotou), no Maxxxine e no The Substance.

Pedro Souto: Nós tentamos estar atentos a todos os filmes de terror do mundo. No caso particular do The Substance, foi um filme que vimos já no festival de Cannes, em maio, e imediatamente a seguir à sessão quisemos convidar o filme, porque é mesmo impactante e tem uma série de camadas interessantes de analisar — a começar pela presença da Demi More, totalmente exposta nesta fase da sua vida e que tem tudo a ver com a história do filme. Juntou-se ali uma série de particularidades muito interessante e sempre com o terror 100% assumido. Se depois pensarmos que o filme esteve em competição junto de todos os outros habituais realizadores de cinema de autor, ainda se torna mais interessante nessa perspetiva. E é um filme que tem muitas influências, ou pelo menos pode-se encontrar algumas referências de vários filmes de terror clássicos, mas sem nunca ser gratuito a esse nível das homenagens. Também já estávamos a falar há alguns meses sobre o Speak No Evil, e o Maxxxine, claro, desde o Pearl que o queríamos ter. O The Surfer foi também mais um filme visto no festival de Cannes, com o regresso do Nicolas Cage ao festival. 

João Monteiro: Como trabalhamos dentro deste género tão valioso no mercado, hoje em dia, temos sempre esse problema de estarmos dependentes das políticas de cada distribuidora. E portanto, obviamente, estamos atentos a todos os filmes a que os fãs estão. Depois, é uma questão de sorte e, em alguns casos, como o Maxxxine, demorou um bocadinho. A última vaga que anunciámos são aqueles que mais demoraram a conseguirmos. 

Para comemorar os 50 anos do 25 de Abril, vamos poder ver cinco filmes censurados pelo Estado Novo, um deles numa sessão surpresa na Sala Rank, a tal sala onde se julga que os membros do SNI [Secretariado Nacional de Informação] viam os filmes. O que é que pesou na seleção destes filmes em concreto?

JM: A primeira foi tentar descobrir que filmes tinham sido censurados de certeza. A nossa ignorância sobre o assunto era alta e achávamos que íamos ter um lote incrível de filmes para passar. Durante o Estado Novo, não estrearam filmes de terror em Portugal, de todo. Era um género… não digo maldito, mas os poucos que estrearam eram europeus, nomeadamente britânicos e italianos. Isto tem a ver com, obviamente, os problemas que esses filmes levantavam à censura a nível de sexologia, da religião, seja lá o que for. Havia depois também, da parte das distribuidoras, já uma noção daquilo que [podia passar], e havia filmes que à partida nem sequer eram comprados. Portanto, escolhemos do que tínhamos, uma lista pequena de cerca de 16 filmes que foram totalmente proibidos. Em alguns, só o trailer é que vale a pena. Mas, no meio disto tudo, havia coisas de que eu nunca tinha ouvido falar, como o 10 Rillington Place, que é um filme incrível. Não percebo como é que não é um clássico. O Valerie and Her Week of Wonders é talvez o filme mais conhecido. Tentámos selecionar filmes que tivessem sido proibidos por razões diferentes. Foram todos proibidos por terem questões de demonologia e por ser muito perigoso passar estes filmes da província. Era a grande preocupação do senhor — filmes de bruxaria na província. 

PS: Sim, lemos os relatórios oficiais e dá vontade de rir. 

JM: Às vezes, é só uma frase. [O relatório de um dos] filmes que vamos passar, Il Demonio, tem dois parágrafos escritos, e a letra é absolutamente impercetível. Dá impressão que a pessoa que o escreveu estava realmente perturbada. É interessante ver como é que há de haver uma história do terror português, ou raízes do terror português, quando os filmes eram completamente censurados, não eram mostrados sequer. 

PS: Os censores, quando têm o filme nas mãos, fazem o seu papel, mas, na realidade, a censura começa antes pelos próprios distribuidores, como o João referiu, e o facto de eles não trazerem tantos filmes de terror para a censura aprovar é logo um sinal de desaceleramento da indústria e deste género num país, em termos culturais, não é? E, portanto, a censura aí é super eficaz. 

JM: O filme surpresa foi escolhido porque é aquele que tem o processo mais sui generis de todos, porque a distribuidora percebeu que tinha feito um disparate e então enviou o processo para o SNI com uma nota a dizer «nós somos a favor da proibição deste filme». E o SNI escreve simplesmente no relatório que, a bem da sanidade mental dos espectadores, e já que a distribuidora está contra este filme, é proibido. É engraçado porque acho que é um filme que, ainda hoje, poderia ser motivo de polémica, mas por outras razões. 

Há uma nova secção, que de certa forma já existia, mas não de forma «oficial», a que chamaram de Sala de Culto.

PS: A ideia foi oficializar esta secção. O foco continuará a ser o cinema português, mas embora já tenhamos sido surpreendidos noutras ocasiões, no caso das longas-metragens contemporâneas e dos filmes mais antigos, não sabemos se a quantidade de filmes que temos nesta secção vai continuar a existir todos os anos. Este ano, tivemos também a sorte de ter um filme que se chama O Velho e a Espada, do realizador Fábio Powers. Este é um daqueles filmes muito do it yourself e sem medo de assumir uma componente low budget, mas que depois tem uma série de ideias e de intenções que o elevam a algo muito interessante. O personagem principal, que faz de bêbado da aldeia, é o bêbedo da aldeia na realidade, era a sua ocupação, e infelizmente faleceu até antes de o filme estar concluído — ou pelo menos antes de o poder ver. E aí, de repente, começa-se também a apreciar uma série de detalhes. Nesse sentido, esta secção é muito importante. O outro filme chama-se Experiência em Terror, realizado pelo Dick Haskins, que está um pouco nas nossas mentes como uma lenda, não é? Penso que não há assim muito sobre ele, mas o nome também é excelente. É um filme muito mais direcionado para a televisão, embora não seja assim tão telenovelesco. Arrisca até bastante mais e, portanto, nesse sentido, é mais cinema. É também um daqueles filmes que tem umas cenas um bocadinho inusitadas, e o acting é extraordinário. Lá está, esta secção permite também muitas performances de atores que parecem estranhas noutra sala, mas que, nesta secção, parecem normais. 

Na secção Quarto Perdido, temos A Culpa, um filme do Maestro António Victorino d’Almeida. 

JM: Nós queríamos que o Quarto Perdido [deste ano] tivesse a ver com o 25 de Abril. O problema era que tipo de filme iríamos passar. Primeiros filmes de terror [cá, em Portugal] como [os que] faziam em Espanha, com crítica ao regime não existem. Depois do 25 de Abril, havia vários filmes que tinham uma componente fantástica, mas que era simplesmente uma componente. Até que, um dia, o nosso amigo Tiago Bartolomeu Costa, da FilMAR, nos pergunta se conhecemos este filme do António Victorino d’Almeida, em que o Sinde Filipe vem do Ultramar e se transforma num lobisomem. O filme é surpreendente. Primeiro, é daqueles filmes perfeitos para o Quarto Perdido. É um filme esquecido, pouco falado. É o único filme que o Maestro fez e tem uma sátira ácida, uma espécie de filme de catarse, sendo que a PIDE é quem mais leva na cabeça. Mas nada escapa — desde as famílias ricas da cidade, as famílias ricas do campo, o milagre de Fátima. E depois, no meio disto, este personagem do Sinde Filipe que vem da guerra, da Guiné, e é transformado no bode expiatório de toda a sociedade. É tão ostracizado quando foge da cidade para tentar arranjar emprego no campo que acaba por se transformar numa lenda local e se torna um lobisomem. É, portanto, um filme que mistura vários géneros, mas que termina no terror. E há muito poucos filmes com Mário Viegas, e ele era um ator incrível, especialmente para este tipo de filmes. 

Em relação às novas produções portuguesas, este ano temos oito curtas na competição internacional e 10 a competir para o prémio Melhor Curta de Terror Portuguesa. Na conferência de imprensa de apresentação do festival, João, dizias que este ano tiveram um número recorde de mulheres comparado com o ano passado? 

JM: Já me custa um bocado dizer estas coisas, e um dia não vai ser preciso, mas ainda é preciso dizer, ainda é preciso mostrar estatística. Nunca tivemos uma representação feminina tão grande, o que é obviamente maravilhoso. E no [Festival] Guiões, por exemplo, dos 5 guiões finalistas, 3 são escritos por mulheres. Portanto, diria que, este ano, a presença feminina é bastante maciça. 

PS: Nas longas, acho que são pelo menos onze realizadoras, no prémio da longa Europeia também são 4 filmes de mulheres, em 6. 

Todos os anos continuam a querer levar o terror aos mais novos, e a secção Lobo Mau tem crescido com atividades muito interessantes. 

JM: Fico contente, porque tudo isso que disseste acerca do Lobo Mau é trabalho da Sara Lopo, que tem estado a programar [esta secção]. Tem sido mais fácil conseguir esse público. A nossa grande dificuldade ao longo destes anos todos, em que temos sempre puxado pelo Lobo Mau, tem a ver com a dificuldade de arranjarmos turmas. Caímos assim num limbo que fazia com que as nossas sessões do Lobo Mau fossem um bocadinho para os pais que quisessem trazer os filhos. A maior parte dos pais, se calhar, olha com suspeição. Mas agora acho que toda a gente confia, é um menu completo para as crianças e para os pais também.

PS: Aproveito para dizer que renovámos a parceria com a CoolBRAVE, um projeto de ocupação dos tempos livres ali num bairro da Amadora. Fizemos já um workshop com eles, e costumamos apresentar o resultado no festival, juntamente com as curtas. Convidámos de novo três elementos dessa turma para serem o júri do Prémio Lobo Mau. Em princípio, vamos também anunciar um novo projeto com eles ao longo do próximo ano, que depois será apresentado no MOTELX do ano que vem.

Sobre a mostra de filmes feitos com recurso a inteligência artificial, tem havido algumas opiniões divergentes, há muitas pessoas contra e muitas a favor, não há um meio-termo. 

PS: Eu aproveito e pego nas tuas palavras. A ideia surgiu quando vimos o filme do Edgar Pera, Cartas Telepáticas, e o discurso dele, de apresentação do filme, da maneira como ele se colocou, não como realizador, mas como arquivista. E também por ele ter um discurso de trazer a inteligência artificial para o lado bom da força, digamos. Era um pouco essa a nossa ideia, em vez de o deixar como um tema tabu, que não fosse referido, que não fosse pensado, discutido e até utilizado, experimentado. Foi um pouco por aí que surgiu a ideia. Não foi muito bem recebida por algumas pessoas, de facto. Há esses dois extremos que referiste, mas, à parte disso, diria que era muito interessante e importante verem o Cartas Telepáticas. Não que seja um filme que vá definir o que vai ser o futuro, mas o presente. Agora, não podemos, isso concordo, deixar de pensar no lado negativo desse futuro, com a questão dos direitos de autor, que em certos casos podem não estar muito bem protegidos, ou definidos, ou salvaguardados. Mas não podemos deixar de falar do tema e perceber que será uma evolução tecnológica com algum impacto na humanidade, esperemos que bom. 

JM: Acho que tem graça que o terror, de certa forma, tenha utilizado inteligência artificial ao longo destes anos. Vamos passar um documentário chamado So Unreal, de Amanda Kramer, que fala um bocadinho sobre isso, sobre a forma como a ficção científica e o terror têm mostrado uma evolução tecnológica. 

PS: Temos uma curta, na SectionX, chamada Duck, que utiliza a tecnologia deepfake, e é também um bom exemplo daquilo que é negativo. É muito interessante, porque mistura técnica de animação e atores a fazerem os seus papéis, e junta a Marilyn Monroe e cinco ou seis James Bonds, desde o Sean Connery ao Pierce Brosnan. É um exemplo muito interessante de fazer uma coisa criativa e de usar essa tecnologia. 

Para terminarmos, as vossas sugestões para o 18.º MOTELX: que filmes destacam para este ano?

PS: Eu gostaria de destacar uma das surpresas que tivemos, que pode ser uma coincidência, mas vamos perceber no futuro se é ou não — a presença não só inesperada, mas muito forte e de qualidade, do cinema indiano de terror. Que era uma coisa que só aparecia de vez em quando. [Este ano], temos três filmes, um deles é o Kill. Acontece todo num comboio, com uma grande crítica social às castas, casamentos combinados, etc. E é visualmente impressionante, tem um ritmo incrível, excelentes atores e é inesperadamente gore, com mortes violentíssimas. Tem tudo o que é bom. Depois, temos o Stolen, um filme que se passa todo numa noite. Começa com uma mulher a dormir na estação com o seu bebé, quase recém-nascido, quando passa um homem e lhe rouba o bebé. Ela só acorda algum tempo depois, apercebe-se disso e começa uma frenética busca e aventura com o seu instinto maternal de não desistir, de superar todas as adversidades e todas as faltas de ajuda. É um filme também inesperado, impressionante, e que aconselhamos vivamente. Depois, temos o Sister Midnight, um filme que também vimos no festival de Cannes, na quinzena dos realizadores. Tem uma componente de um certo humor negro, que diria ser pouco comum. Tem uma acutilância incrível e muita piada — e são piadas que te dão uma ideia muito mais precisa do que é aquela sociedade. Tem também uma personagem feminina, e é um filme feminista. Trata dos problemas de uma mulher que tem de ficar em casa o dia todo à espera do marido e que tem de aprender a cozinhar. Depois, há uma reviravolta ligada ao cinema de terror que não vou revelar. 

JM: Gostava de destacar rapidamente o Strange Darling. Tem uma estrutura bastante interessante e uma fotografia belíssima. E o regresso dos únicos franceses que têm construído uma carreira interessante no terror em França, o Alexandre Bustillo e o Julien Maury. Regressam agora com o The Soul Eater que já é assim uma megaprodução. Finalmente, um filme coreano, bizarro por aquilo a que se propõe, que é um remake de um filme chamado Tucker & Dale vs Evil (um filme canadiano já com alguns anos), chamado Handsome Guys. É daqueles filmes que merecem uma sala cheia.