Entrevista com a equipa de «Cadáver Requintado»
Ana Santana (tradução), Edgar Ascensão (design da capa) e Nuno Gonçalves (edição).
«Foi o primeiro livro de que comprei os direitos internacionais. Fiquei muito feliz porque acho que é um livro que dificilmente viria para Portugal e por outra editora. Por isso, acho que é uma forma de afirmação, também.»
Da capa à tradução, mais uma vez a Barca não se limitou a lançar a versão portuguesa de um livro de terror contemporâneo, premiado e muito conhecido. Sem barreiras entre a obra e o leitor, não há escape possível — temos mesmo de mergulhar naquela realidade, sem espaço para nos desviarmos.
Cadáver Requintado mostrou-me que o que não gostava não era de livros traduzidos, mas de más traduções.

Ana Santana (tradução)

Edgar Ascensão (design da capa)

Nuno Gonçalves (edição)
Mais um livro de terror contemporâneo que a Barca lança no mercado. Desta vez, Cadáver Requintado, da argentina Agustina Bazterrica. Vou começar a entrevista pela «caloira» do grupo, a tradutora Ana Santana. És fã de terror? Porque este livro não é propriamente «fácil» de traduzir.
Ana Santana: Não é fácil de traduzir, não é fácil de ler, não é fácil nada, mas sou fã de terror. Já traduzi vários livros de terror infantojuvenil, mas este é um terror diferente, não é um terror de fantasmazinhos. Falei disso até com o Nuno, isto é um terror sobre aquilo que o ser humano é capaz de fazer. E até onde é capaz de chegar. Foi difícil, não digo que não foi. Mas, como sou fã, queria chegar ao fim do livro para saber como é que acabava.
Espero que isto seja um elogio e não uma crítica, mas não dá para perceber que o livro foi traduzido. Foi difícil entrar nesse mundo, na língua e cultura locais? Acredito que haja diferenças do espanhol europeu para o espanhol argentino.
AS: O objetivo é mesmo esse, não se perceber que está traduzido. O facto de ser de uma autora argentina foi o que me preocupou mais no início, mas tenho um amigo que é argentino e que se disponibilizou para ajudar se fosse preciso. Sim, há muitas diferenças. O calão, algum regionalismo, alguma coisa mais desse género, mas, na verdade, até nem foi essa a parte mais complicada. A parte mais complicada do livro foi ter de entrar no mundo dos matadouros e fazer essa comparação com o que aconteceria [se fosse] com humanos, as técnicas, etc. Tive de ler tudo o que encontrei para conseguir fazer essa comparação. Mas acabou, também, por ser a parte mais interessante.
Confesso que a pior parte para mim nem foi a dos matadouros, mas sim a dos cachorrinhos.
AS: A outra parte que também considerei um bocadinho difícil foi a parte da caça.
Tudo isto bem embrulhadinho por esta capa, muito explícita, que, para mim, está melhor do que a versão original e do que a da tradução para inglês. Como é que chegaste a este conceito final, Edgar?
Edgar Ascensão: [O Nuno] quase que me deu carta branca para apresentar ideias com base na sinopse do livro. Não conhecia o livro e, quando começo a ler aquela sinopse, aquilo é muito distópico, fala de canibalismo, as primeiras ideias que tive eram demasiado gore, daquele terror quase slasher. Mas aí estaríamos a alienar todo o público-alvo, que possa comprar o livro, então fui mais para as metáforas. A primeira ideia tinha uma composição mais animalesca, por exemplo. Depois de vários rascunhos e várias propostas, chegámos a esta que remete para a imagem gráfica do talho.
É muito mais impactante esta imagem do que as das outras versões. O livro está escrito de uma forma muito natural, a falar de matadouros de tal maneira que, por vezes, me esquecia de que a carne era humana. Até porque ela se foca, também, no luto do protagonista. A autora consegue dar o maior murro no estômago sem ter dado murro nenhum. Nuno, tu pertences ao grupo que não gostou do fim do livro?
Nuno Gonçalves: Não, gostei muito do fim, é muito surpreendente. Não estava à espera dele. É muito bruto, como todo o resto do livro. Mas, por outro lado, depois de ser confrontado com aquele final, não consegui imaginar outro que funcionasse com o resto do tom do livro.
Porquê este livro em particular? É o primeiro livro estrangeiro de terror contemporâneo que a Barca lança em Portugal.
NG: Não sabia bem como é que se fazia esse trabalho de ir à procura de livros estrangeiros de terror que pudessem fazer falta ao nosso mercado. Não costumo ler muito em inglês e, a partir do momento em que começámos com a Barca, tive de arranjar forma de ir à procura de livros. O que acho mais útil são os fóruns de leitores de terror. Há vários no Goodreads, no Reddit. Este é um livro muito popular entre os fãs de terror. Especialmente desde que saiu a tradução para inglês. Livros que nunca foram traduzidos para inglês vai ser muito difícil conhecê-los e ter acesso a eles. Felizmente, os livros em espanhol, tanto de Espanha como da América do Sul, estão a ser bastante traduzidos. Mas quis ler o livro primeiro, antes de o escolher, apesar da popularidade. E, apesar da brutalidade, acho que ela consegue justificá-la. É difícil imaginar aquela sociedade, mas conseguimos compreender que não é assim tão impossível quanto isso as pessoas chegarem [àquele ponto]. E gosto muito da personagem, também, porque não é um herói. Fiquei mesmo muito feliz por ter conseguido trazer este livro. Foi o primeiro livro de que comprei os direitos internacionais. Fiquei muito feliz porque acho que é um livro que dificilmente viria para Portugal e por outra editora. Por isso, acho que é uma forma de afirmação, também.
Não gosto do título em inglês, Tender is the Flesh. Mas este, Cadáver Requintado, é perfeito. Foi difícil chegar a ele?
NG: Acho que a Ana teve alguma dificuldade em encontrar uma boa solução?
AS: Pensámos em delicioso, que é um bocadinho na linha do que seguiu a tradução brasileira [Cadáver Saboroso]. Porque exquisito, em espanhol, é difícil de traduzir literalmente. Não temos uma boa palavra para isso. Esta palavra está relacionada com exquisite, do inglês. E, por isso, ficámos pelo «requintado», mesmo sabendo que não é a tradução «perfeita».
NG: Já tive uma crítica a dizer que deveríamos ter usado o título original, dizendo que o título original era Tender is the Flesh. As pessoas acham que o original é o inglês, porque foi a forma como tiveram contacto com o livro.
Ponderas trazer mais terror argentino para Portugal?
NG: Estou ainda à espera de ver como é a aceitação deste antes de investir no próximo, mas, até agora, tem sido muito boa, por isso é bastante provável que sim. Se ninguém se antecipar a nós.
Qual tem sido o feedback do público até agora? Em geral, das opiniões que tenho visto no Instagram, as pessoas estão a gostar muito.
NG: Há muitos elogios à capa também. E sobre a tradução ninguém disse nada. O que acho que é ótimo.
AS: Normalmente, é bom sinal. O tradutor, quanto mais despercebido passar, melhor.
Próximos projetos ligados ao terror?
EA: [Tenho mais algumas colaborações com a] Painted in Blood, que faz art books de diversos filmes da cultura pop. Já estive no [do] Stranger Things, Halloween, Ghostbusters, Aliens. Já é pelo menos perto de uma dezena. Eles têm três, atualmente, para lançar este ano [2025]. Fiz para O Corvo (The Crow), mas desse ainda não há novidades. Está licenciado, ou seja, os produtores do filme têm de aprovar tudo, mas ainda não sabemos nada. Submeti, mas não sei se se é selecionado ou não. Tenho outro do Marte Ataca. Não o filme, mas das cartas dos anos 60, que depois também fizeram nos anos 80 e 90. Ou seja, não podíamos colocar coisas do filme, nem o tradicional «ack ack ack ack» do filme. Esse foi aprovado, vai estar no livro. Não sei quando vai ser lançado, talvez depois do verão. Falando de terror, a última aprovação que tive foi para o Jaws (O Tubarão), do Spielberg. O filme faz 50 anos este ano [2025] e vão lançar um art book para essa celebração.
NG: O livro mais recente que lançámos foi o Linghun [em junho de 2025]. Há mais um lançamento que não tínhamos anunciado ainda, mas espero que seja este ano: The Hellbound Heart, do Clive Barker.
Muito obrigada por esta entrevista. Há, de certeza, muitos livros de terror em Espanha que merecem ser conhecidos aqui, à semelhança do que já acontece com o cinema, por exemplo. Fica a dica, Nuno. [risos]
NG: A Mariana Enriquez e a Samanta Schweblin já estão traduzidas cá, mas são argentinas as duas. De Espanha, não sei.
Espero ler mais livros de terror espanhol traduzidos pela Ana para a Barca. Para mim, é muito bom que este Cadáver Requintado exista, porque perdi dois preconceitos: um, de não gostar de coisas em espanhol, e dois, de não gostar de livros traduzidos. Obrigada pelo teu sacrifício e esforço. [risos]
AS: [risos] O material de base também ajuda, era bom, a história era forte, não havia muito por onde escapar. Eu própria estive até à última página para perceber como é que aquilo acabava, doidinha para chegar ao fim.
GOSTASTE? PARTILHA!

Sandra Henriques
Sandra Henriques estreou-se na ficção especulativa em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada». Desde aí, publicou contos em várias antologias de terror nacionais e internacionais e contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.