«Halloween»: como um Papa estragou tudo
As suas tradições têm origem — pasmem-se! — na Europa.
Um artigo dedicado a todos aqueles que estão fartos dos olhares de lado por parte de pessoas que se recusam a perceber a história por detrás de eventos milenares.
«O Halloween é uma americanice», «o Halloween surgiu depois do catolicismo», «o Halloween é satânico» ou «o Halloween não tem qualquer ligação com o Dia de Todos os Santos» são dos argumentos que mais oiço anualmente sempre que se aproxima este evento.
Quem me conhece sabe que sou uma fã bastante recente do terror, o que provavelmente explica por que motivo o Halloween só apareceu na minha vida por altura do secundário, quando, no auge dos meus 17 anos, achei que era fixe termos uma noite dedicada ao susto. Decorava a casa a rigor (dentro das limitações decorativas portuguesas, porque as lojas ainda são um pouco aversas ao Halloween), fazia comida temática (bolos a imitar campas, salsichas decoradas como múmias ou «miolos» com esparguete), punha um filme de terror dos anos 80 e dava a noite por concluída.
Mas, há uns três anos, no trabalho, decidi partilhar gomas em forma de caveira com os meus colegas. Tudo corria bem até que me cruzei com uma senhora que aceitou a goma, com um ar um pouco desgostoso, enquanto me perguntava se celebrar o Halloween era uma «tradição da minha infância». Mais tarde, explicaram-me que a senhora é uma católica devota e que, possivelmente, levara a peito o meu interesse neste evento «satânico».
Apesar de saber que isto não era verdade, vi-me confrontada com a seguinte questão: quais as origens do Halloween? A pesquisa, contrariamente ao que poderiam pensar, não é assim tão difícil, mas implica um bocadinho de História…
Tudo parece começar com o Samhain, uma celebração pagã de origem celta. O termo paganismo, em si, é complexo, porquanto é usado muitas vezes para se referir a todo o tipo de crença (ritualística ou não) anterior ao catolicismo, ainda que algumas dessas crenças sejam tão distintas que pouco ou nada as liga.
Os Celtas foram um povo que ocupou diversos países na atual Europa, entre eles Portugal, Bélgica e Irlanda. É difícil determinar a altura exata em que o Samhain surge, precisamente porque muitos registos — se os havia — se perderam no tempo, mas sabe-se que os celtas celebravam este ritual pagão há mais de 2000 anos, graças a um calendário de bronze descoberto na atual França em 1890.
O Samhain era um evento que simbolizava o fim das colheitas e o início do período de inverno, a 1 de novembro. Os Celtas iniciavam a celebração na noite de 31 de outubro, pois entendiam que o dia terminava com o pôr-do-sol. Sendo o final de um ciclo, a data caracterizava-se, também, pelo enfraquecimento do «véu» que distanciava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Este enfraquecimento implicava, de modo resumido, que as almas, demónios, fadas e outras criaturas sobrenaturais conseguiam facilmente transpor-se para o nosso mundo, e cruzarmo-nos com elas poderia ser perigoso, visto que muitas tinham más intenções.
Consequentemente, e segundo o que foi possível apurar através de diversas investigações, os Celtas mascarar-se-iam, muito provavelmente com peles de animais, para disfarçarem a sua identidade e evitar que essas criaturas se interessassem por eles. Outros elementos característicos, como as luzes, jack-o-lanterns (as abóboras esculpidas) ou trick or treat (doçura ou travessura) também parecem ter origem neste período, ainda que não seja totalmente certo o motivo pelo qual eram utilizados.
É de realçar que os Romanos celebravam, também, um festival chamado Lemuria, onde se praticavam rituais para afastar os maus espíritos, almas penadas e fantasmas. Este festival, originalmente, deveria ocorrer durante o (atual) mês de maio.
Ora, e como se cruzam o Samhain, o Halloween e o Dia de Todos os Santos?
Os primeiros registos católicos que celebravam o All Hallows Day (Dia de Todos os Santos) parecem ter-se inspirado no Lemuria e sido celebrados em datas semelhantes, por volta de 13 maio, no séc. IV EC. No séc. VII EC., o Papa Bonifácio IV cristianizou o Panteão em Roma (o ato de converter lugares pagãos em cristãos), dedicando-o à «Santa Maria e todos os mártires», o que teria inicialmente estipulado o Dia de Todos os Santos naquela data.
Mas, com o avançar do tempo e a propagação da religião católica pelo mundo, as datas da celebração foram sendo alteradas e adaptadas, ainda que os historiadores divirjam quanto a quem influenciou o quê.
Supostamente, o Papa Gregório III (que raio de nome…) terá criado um oratório no séc. VIII, no dia 1 de novembro, dedicado aos «santos e mártires», pelo que algumas fontes indicam que isso poderá ter influenciado que o Dia de Todos os Santos tenha sido «assente» naquela data; alguns historiadores dizem que isto terá acontecido antes no Domingo de Ramos em 732. Daqui, surge o tríduo de Allhallowtide: All Hallows Eve (Véspera do Dia de Todos os Santos), All Hallows Day (Dia de Todos os Santos) e All Souls Day (Dia de Todas as Almas), respetivamente celebrados a 31 de outubro, 1 e 2 de novembro.
A verdade é que existem evidências de que, em 800 EC, as igrejas na Irlanda e no Reino da Nortumbria (atualmente norte da Inglaterra e sul da Escócia) celebravam o Dia de Todos os Santos a 1 de novembro. Se a influência foi meramente católica ou se as celebrações celtas foram a matriz para tal estipulação, e uma tentativa de cristianização do evento, é algo que ainda hoje é discutido. Basta fazerem uma pesquisa no Google: todas as fontes católicas vão argumentar que o Halloween é católico e prévio ao Samhain (o que não deixa de ser curioso, face à reação visceral de repúdio que muitos católicos sentem relativamente ao Halloween), mas fontes não-católicas argumentam o oposto.
O catolicismo, como as religiões fazem no geral, assimilou e converteu muitas culturas, tradições e eventos, como é o exemplo do Yule, agora Natal. Os registos originais, caso existissem, foram perdidos no tempo, eliminados ou alterados para se enquadrarem com o pretendido, a mentalidade das pessoas foi sendo paulatinamente alterada ao longo de gerações e a origem de muita coisa poderá nunca ser verdadeiramente discernida.
Pessoalmente (que vale o que vale porque não sou historiadora), julgo que o Samhain e o Lemuria devem ter uma origem comum, prévia aos Celtas aos Romanos, que foi depois adaptada conforme as circunstâncias de cada povo, até que o catolicismo procedeu à referida assimilação e conversão cristã. Especialmente considerando que todas as fontes identificam o Samhain como uma prática com mais de dois mil anos, que muitos dos rituais ali praticados perduraram e são hoje associados ao Halloween (máscaras, luzes, jack-o-lanterns), também me parece bastante claro que a influência da festividade é pagã e que os católicos apenas tentaram (sem sucesso) eliminar as evidências.
O facto é que, com o estabelecimento do All Hallows Day no dia 1 de novembro, a véspera passou a ser chamada de All Hallows Eve… que acabou por se metamorfosear na palavra Halloween.
Os povos celtas das atuais ilhas do Reino Unido e República da Irlanda sempre lutaram por manter a sua identidade (processo possivelmente facilitado por serem ilhas), o que terá firmado a manutenção de muitos dos rituais do Samhain. A emigração de irlandeses e escoceses para os atuais Estados Unidos da América levou as tradições do Samhain atualmente associadas ao Halloween para o outro lado do Atlântico.
É um facto que a atual cultura portuguesa nunca preconizou um Halloween como se vê nos filmes americanos; por cá, pedir «pão por Deus» no dia 1 de novembro é a tradição.
Mas são inegáveis as ligações existentes entre estes dois eventos, bem como a tentativa por parte da Igreja Católica de resgatar a ideia do Halloween como um evento totalmente católico, especialmente se considerarmos que a Igreja tem alguma reticência em admitir os seus esforços de cristianização e assimilação forçada por aquilo que eram.
E este ano, se me voltarem a chatear com perguntas como aquelas com que iniciei o artigo, tenho toda uma lição de História preparada para lhes contar — e uma lista de locais a visitar para me conectar mais com esta festividade.
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Laura Silva
Apaixonada por histórias desde 1992, é escritora nas horas vagas e pasteleira aos fins-de-semana. O gosto pela leitura deu muito jeito para a licenciatura em Direito, mas agora é constantemente abordada por amigos e familiares para consultoria jurídica gratuita. Extremamente traumatizada em criança pelo Cadeirudo, acabou por aprender a gostar de todas as facetas da ficção especulativa, que hoje se revela o seu género favorito.