Entrevista ao escritor José Maria Covas, «insanista» e autor na antologia «Sangue Novo»

«Nós também temos uma história cultural, e é uma pena ela não ser explorada no terror.»

Considera-se um «insanista» e gostava de um dia desenvolver e produzir o primeiro musical de terror em português. A viver em Edimburgo, onde é investigador de medicina regenerativa, José Maria Covas escreve microcontos em inglês, muitos deles influenciados pelo ambiente escocês, que espera publicar um dia. Em 2021, estreou-se como autor publicado na antologia Sangue Novo com o conto «Bom Trabalho».

De Sandra Henriques

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Como é que chegas ao terror, ou como é que ficas fã?

Foi uma mistura. Acho que foi tanto uma experiência de vida como uma experiência literária. Fui diagnosticado com um cancro aos 4 anos, uma leucemia linfoblástica de alto risco, e isso fez com que eu me tentasse exprimir através da literatura de terror, com todo aquele sentimento que tinha de ver o mundo ao meu lado desmoronar-se.

 

Tens isso muito presente.

Sim, tinha de ficar em casa, muito escondido do resto do mundo. O único contacto que tinha com ele era através de livros e filmes, ainda sou do tempo das cassetes VHS. Foi aí que passei a conhecer vários tipos de literatura, mas o que me iniciou no terror foram os cartoons do Tim Burton, os filmes do Guillermo del Toro. Nunca fui uma pessoa de Harry Potter. Até acho que o que mais me virou para o terror foi o facto de o Voldemort ser uma pessoa trágica e de eu pensar: «o vilão perde sempre, tem de haver histórias em que eles ganham». Depois, na adolescência, enquanto ouvia vários tipos de música — clássica, rock, alternativa —, ficava ao mesmo tempo a conhecer filmes como o Nightmare on Elm Street, ou o Lovecraft, ou o Edgar Allan Poe.

 

Quase que condensaste tudo aquilo que conseguias aproveitar.

Sim. E é do Poe que advêm muitos dos poemas que faço, que têm rima, mas que não têm organização nenhuma, como se fosse uma escadaria sem fim, em caracol. Depois, comecei a ter aulas de Filosofia na escola, mas procurava sempre coisas alternativas ao que aprendia. Foi aí que fui introduzido ao Nietzsche e ao conceito do abismo. Nas artes, não gostava muito do realismo nem do romance de cavalaria. Sempre me fizeram muita confusão aqueles contos para crianças, os contos de fadas em que tudo é bonito e vai correr bem. Quando encontrei a versão original dos irmãos Grimm, pensei: «gosto mais desta versão». Foi sempre uma forma de pensar que guardei para mim próprio, pois tentei partilhá-la com pessoas em Portugal, mas percebi desde cedo que este género literário não era tão reconhecido cá. Em viagens para o estrangeiro, como Estados Unidos, Reino Unido e China, tentava conhecer pessoas de várias culturas, porque, nas minhas histórias, misturo religião com história e sobrenatural, junto com conceitos filosóficos budistas e taoístas.

 

E isso acaba por ser a tua assinatura. Não sei se já consideras que tens uma assinatura, mas acho que isso é muito teu.

É este mundo que eu criei, ao estilo d’O Senhor dos Anéis. Só comecei a gostar de literatura portuguesa no secundário, com o Fernando Pessoa. Ele também foi uma das minhas grandes inspirações. O terror nas múltiplas facetas. E agora, a minha investigação em medicina regenerativa faz-me também pensar em histórias sobre irmãos gémeos parasitas que tentam apoderar-se da pessoa, impressão 3D de órgãos e modificação genética.

 

Portanto, tudo aquilo que pode correr mal…

O que eu notava era que o terror de que eu mais gostava no cinema e nos livros era todo até ao séc XX.

 

Mas achas que a produção que existe hoje em dia não é boa?

Sim, sinto que se faz  terror barato para assustar o público com gore e sangue, mas que não tem arte nem significado. Através da Escrever Escrever, também fiquei a conhecer muitos escritores e até fiquei surpreendido por haver tanta motivação cá em Portugal, porque nós também temos uma história cultural, e é uma pena ela não ser explorada no terror. Para mim, o Auto da Barca do Inferno, do Gil Vicente, é uma comédia de horrores. Mas fazia-me muita confusão, a única coisa que via quando ia às livrarias era sempre Stephen King. A razão de me ter juntado aos cursos de terror foi ter encontrado este grupo inovador, extraordinário e único de artistas.

Antes do curso, já escrevias terror?

Já, já. Escrevo desde os 10 anos. Escrevia poemas para concursos de escola, contos, ensaios. Como estive muito tempo fechado em casa com a minha doença, criei um mundo à minha volta, uma fan fiction das várias coisas que ia vendo. Depois, pensei: «tenho de ter uma identidade própria, isto tem de ser a continuação do legado dos meus antecessores, mas não vai haver ninguém com interesse em ler livros que foram escritos há 200 anos, portanto tenho de fazer literatura para a atualidade». No tempo livre, sou escritor, mas, a tempo inteiro, sou investigador. Uma dicotomia. Sempre quis fazer Ciências e Humanidades. Devido ao meu percurso de vida, era aquele tipo de pessoa que queria ajudar as outras que passaram por doenças também graves a terem uma melhor qualidade de vida e a não sofrerem tanto. O que é irónico, porque foi o sofrimento que me tornou a pessoa que sou hoje em dia. Acho que ser cientista também é isto; é pegar nas artes. Eu venho de uma família de pessoas multifacetadas. Todos eles tentavam ajudar as pessoas no Alentejo durante a tuberculose e a silicose dos mineiros, mas ao mesmo tempo escreviam  para o Diário do Alentejo. A minha mãe herdou isso. Também tivemos uma tia, a Maria Isabel Covas, que era poetisa, e que é a razão do meu pseudónimo artístico, José Maria Covas. É uma homenagem que lhe faço.

 

E além de ser uma linda homenagem, é um excelente pseudónimo para um escritor de terror. 

Sim, o nome da família é Covas Lima. Mas eu sempre pensei que a parte mais interessante [do nome] era Covas! [risos] E também influenciou os meus heterónimos na escrita. Um dos meus próximos objetivos, agora que sou publicado, é tentar fazer histórias mais longas que pudessem ser adaptadas para televisão, em homenagem à série Tales from the Darkside. A minha coletânea de episódios seria intitulada Tales of Madness, por ter absorvido tantos temas variados. Desde criança, não me cinjo só à cultura portuguesa, tentei explorar o Egito, a Grécia e o Japão. Mesmo nestes sítios que visito, como as catacumbas e castelos abandonados em Edimburgo ou  Paris, vou incorporando tudo o que vejo. Para fazer algo que é a continuação de um movimento literário e artístico e, atualmente, uma junção de várias culturas.

 

O que é que preferias? Continuar a fazer investigação?

Investigação e depois, talvez, e isso já tem a ver com a minha criatividade, converter o meu conhecimento num produto, numa tecnologia para ajudar as pessoas. Por exemplo, fazer personalização da medicina. Uma pessoa tem uma doença e, de acordo com a pessoa, faço numa impressora 3D um fígado para transplante ou uma determinada alteração genética.

Isso é quase futurismo! 

Mas seria mais nesta ótica, e depois, provavelmente, continuar a escrever, porque muito do que faço inspira a minha escrita. E continuar a publicar, dar a conhecer este novo lado da literatura portuguesa. Ao mesmo tempo, gostava de saber se o que escrevo inspira as pessoas. Porque o meu objetivo na escrita também é fazer as pessoas pensarem nas várias esferas das artes, da sociedade e da política. Acho que a escrita tem de significar algo para os tempos de hoje. A sátira social é, por exemplo, essencial para criticar, de forma cómica,vários problemas atuais.Como o que está a acontecer no Reino Unido com o Brexit, que vai contra este desenvolvimento cultural em que já não há barreiras entre países. Mas também a questão das alterações climáticas e como valorizamos o ser humano e a natureza. É por isso que estou agora a tentar promover esta minha ideia que eu chamo de «insanismo». Considero-me um «insanista» porque acho que, hoje em dia, uma pessoa tem de ser um bocadinho de tudo para evoluir, não só a si própria, mas também a comunidade em seu redor.

 

E também fazes teatro?

Sim. Uma das peças que me influenciou foi O Fantasma da Ópera. Um dos meus objetivos também é fazer um musical de terror. Uma das minhas outras vertentes seria escrever para videojogos, que acho que é outra maneira de comunicar ciência ao público em geral. Fiz, durante a licenciatura em Ciências Biomédicas na Universidade de Coventry, um ano de internato no Instituto do Cancro com o Professor Carlos Caldas, em Cambridge, e foi aí que descobri que estava a ser desenvolvido um videojogo sobre uma guerreira viking com esquizofrenia. O objetivo do jogo era tentar entrar na mente da personagem.

 

E quando é que sai o primeiro livro do José Maria Covas?

Agora, é uma questão de estar à procura. Uma coisa que a Escrever Escrever também me deu foi um palco de pessoas para mostrar a minha escrita, porque tudo o que eu sabia acerca da área  era através de livros de pessoas com mais de 200 anos.

 

Gosto muito de ter assistido ao nascimento do conto «Bom Trabalho», que está no Sangue Novo, porque sei que este não era o conto que tinhas inicialmente submetido.

Acho engraçado quando o Pedro Lucas Martins diz que cada uma das minhas histórias é única, porque isso é uma das minhas maiores preocupações. Não pode ser nada igual ao que foi feito antes, e ai da pessoa que me tenha tirado uma ideia. [risos] Antigamente, o meu processo era ter um caderninho onde ia escrevendo as coisas. Atualmente, acho mais prático escrever no iPhone, nas notas. Já tenho umas 30 ou 40 histórias, microcontos, mas que já davam uma coletânea boa. Agora, a questão é encontrar o sítio na Escócia para as publicar, porque não tenho nenhum contacto de Humanidades. Vou vendo lá editoras que possam estar interessadas.

 

Estás a escrever em inglês, maioritariamente?

Sim, maioritariamente escrevo em inglês. Tenho estes contos [da oficina] do Teias de Aranha que depois traduzo para inglês. Até é um processo curioso, porque penso nas histórias em inglês e depois escrevo em português. Tento falar sobre o outro lado de a pessoa morrer e de renascer com as experiências de vida que tem, tanto para melhor como para pior. E é dar a entender que tanto uma pessoa como outra depende muito da sua história de vida. Sempre me fez confusão o que lia acerca de serial killers e de outras histórias de monstros. Os monstros vêm de algum lado. Há os monstros que existem desde sempre, como deuses do mal, mas há outros que são criados devido ao ambiente familiar, à situação económica, política e social. A maioria das pessoas são pessoas partidas.

 

E gostas de criar estas personagens complexas?

Gosto. É por terem a alma feita em pedaços que estes indivíduos conseguem superar melhor a vida do que pessoas sem cicatrizes, pois nunca sofreram ou passaram por dificuldades. Uma das personagens desta minha série de livros, Tales of Madness, é o Joseph Mary Graves, um coveiro que tenta colocar nos corpos dos vivos as almas do passado, as quais  reencarnam para se vingarem. Depois, tens o Jonathan Crow, um médico que não conseguiu salvar a família de morrer de uma doença. Por isso, tenta alterar as pessoas geneticamente e fazer seres híbridos com répteis para poderem sobreviver ao mundo atual. O William Smile é um professor universitário que todos os estudantes adoram, mas depois obriga-os a olharem para o abismo lovecraftiano. Se sobreviverem, tornam-se estudantes dele a tempo inteiro, e é esse o exame de iniciação. Tento procurar sempre este conhecimento oculto. Há também um guião que estou a ver se consigo adaptar para cinema. É um episódio com outra personagem que, no início da história, é o Alexander Grey e que no final da história é o Alexander Black. Ele perde tudo num naufrágio e aparece numa ilha onde é ajudado por um homem encapuzado. É reconstituído com as partes dos corpos dos amigos que morreram na viagem e de outras pessoas que ele desconhecia. Ter estas partes todas faz com que, no final, ele não seja ele próprio, e sim uma colectânea destas mentes todas. É o Alexander Black que tenta incentivar os desejos mais obscuros de cada indivíduo, dando a entender que as pessoas sempre têm uma boa desculpa para serem más. E estas personagens, de um ponto de vista, parecem malignas, mas, de outro ponto, revelam-se como sendo espíritos com uma justificação para serem vingativos. Basicamente, as minhas personagens são da vida quotidiana, acontece-lhes uma coisa e tornam-se nestes seres. É como diz o Nietzsche, há qualquer coisa além da bondade e da maldade. É esta coisa cósmica. A Terra foi criada, nós estamos aqui e um asteroide pode destruir-nos a qualquer momento. Não há nenhuma razão, nenhum sentido. É o absurdo, a irracionalidade, o desconhecido, é a coisa que a pessoa mais teme desde o princípio, desde os homens das cavernas, mas acho que é o que dá mais gozo à vida.

 

Mas foi também esse medo do desconhecido que permitiu criar imensas coisas e desenvolver tudo o que seja mitologia.

Isso mesmo. Eu, no meu quotidiano, digo que o louco é a pessoa que tenta comunicar o que há de melhor na humanidade, mesmo nos tempos de guerra, de dificuldades. Em contraste, no meu universo, a definição de loucura é ter a capacidade de ajudar quem necessita, mas também de lhes fazer mal logo a seguir, talvez para conseguir sobreviver. Ao longo destas [minhas] histórias, há uma personagem que supostamente deveria ser o protagonista, o herói, mas a que não é dada tanta relevância como às outras. O seu nome é Ignatius White. Ele é a antítese de todas as outras personagens, ao declarar que tem de haver uma justificação moral para cada ação, não podendo os antagonistas afirmar que estão a ajudar os seres humanos se os mesmos, para poderem ter a sua vingança, se tornam em monstros. Mas eles perguntam por que não é este o caminho. É este dilema que o insanismo coloca à nossa frente. Será que a pessoa tem de ser tudo e mais alguma coisa? Porque, se fosse só altruísta, era malvada para si própria; se fosse totalmente egoísta, também não sobrevivia na comunidade. Se calhar, a sociedade não se conseguiria desenvolver para melhor se o mal não existisse.