Livro recomendado: «O Baile»

Com argumento de Nuno Duarte e arte de Joana Afonso.

Sempre que preciso de dar exemplos de obras de terror «tipicamente» portuguesas, uso esta banda desenhada como uma das referências.

Sandra Henriques

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Ainda não se falou muito disto (em agosto, saem entrevistas com os três responsáveis), mas a banda desenhada O Baile, com argumento de Nuno Duarte e arte de Joana Afonso, recebeu uma verba de apoio ao desenvolvimento e daqui, espero eu com muita força, poderá sair uma longa-metragem de animação de terror português. Todos merecemos que isto aconteça: os autores, o livro e os fãs de terror.

Desde que a Fábrica do Terror abriu portas que os fundadores e os colaboradores são convidados para integrar painéis e mesas-redondas sobre «isto» do terror português. É sempre com muito orgulho e devoção que aceitamos fazê-lo, porque sabemos que este longo percurso começa na divulgação e na partilha de conhecimento.

Tenho o hábito de levar o meu bag of tricks com livros de terror português, porque, invariavelmente, uma destas três coisas acontece: o público gosta de terror, mas ainda desconhece muito do que se faz em Portugal; o público conhece algumas coisas de terror português, mas só os filmes; o público não gosta de terror, português ou estrangeiro, porque pôs o género numa caixinha (geralmente do gore e da violência) e acha que ele dali não deve sair.


O Baile é um dos livros que levo e que, geralmente, suscita admiração e curiosidade. Agora que já posso dizer que existe a possibilidade de este livro ser adaptado a uma longa-metragem, ainda mais.

Como grande parte dos fãs de terror, antes de abrirmos as portas da Fábrica, conhecia muito pouco sobre o que se fazia no género em Portugal. Conhecia alguns livros e muitos filmes, mas precisava de mergulhar noutros formatos que estivessem mais fora da minha zona de conforto. Um deles era a banda desenhada.

Com o pretexto de me preparar para a entrevista ao David Soares e de comprar os seus livros mais recentes de banda desenhada, tirei uma tarde para «chatear» os funcionários da livraria Kingpin Books, que lá ajudaram esta cliente que não sabia bem o que queria (porque não sabia bem o que procurar).

Um dos livros que trouxe para casa foi esta banda desenhada premiada, com argumento de Nuno Duarte e arte de Joana Afonso. A primeira coisa que me saltou à vista foi o prólogo: «1967. A notícia da vinda do Papa Paulo VI à Cova da Iria, em Maio, leva o aparelho de Estado de Salazar, a contas com algumas quezílias com a Santa Sé, a tomar medidas para que a visita seja exemplar e sem incidentes. Parte dessa iniciativa passa por calar e desmistificar rumores de actividades pagãs e sobrenaturais em vários pontos do país…».

Ando há algum tempo a dizer que existem imensos temas «tipicamente portugueses», além do folclore, que podem ser usados num terror considerado «nosso», e uso este livro como exemplo.

Quando li O Baile pela primeira vez, ainda me estava fresca na memória a conversa que tinha tido sobre o impacto negativo do Estado Novo nas tradições pagãs (e, para eles, um alvo a abater) como os Caretos e o Entrudo Chocalheiro. Nessa altura, li-o de uma assentada no percurso de transportes públicos da Kingpin até casa.


Quando terminei, pensei: «este livro dava um bom filme».


Um ano e meio depois, cá estamos. Não que o trio Nuno Duarte, Joana Afonso e João Alves precisem da minha validação, claro.

O protagonista desta história é o Rui Brás, inspetor da PIDE (não, de todo, em paz com a sua profissão e o que ela o levou a fazer), o homem destacado para se deslocar à aldeia piscatória Maré Santa e pôr o povo e as suas crendices na ordem, com a ajuda do Padre Bento e das autoridades locais — crendices e superstições que o Inspetor cedo percebe terem mais do que uma pontinha de verdade… Mas não quero dar mais spoilers do que os necessários para lerem o livro.

É o facto de a personagem principal ser um inspetor da PIDE que faz desta história um exemplo de terror português? Também. Mas esses e outros detalhes, que são muito importantes para a caracterização das personagens e para o desenrolar da história, não tiram a O Baile a sua universalidade. Tanto que o livro já foi traduzido para inglês.

Esta história podia passar-se noutro país qualquer? Não, e isso é bom. Qualquer pessoa, com muito pouco contexto, e em qualquer lugar do mundo, consegue compreender as lutas e os demónios a abater destas personagens? Sim, e isso também é bom. E é por isso que este livro vem sempre à baila quando falo de terror português. Se ainda não o leram, façam-no antes de verem o filme.