Locais a visitar: O Palácio do Rei do Lixo (Coina)

«Será que este palácio tem algo diabólico?»

O chamado «Palácio do Rei do Lixo» não foi certamente construído para passar despercebido, e esse desígnio foi cumprido na perfeição. O edifício imponente e excêntrico é também conhecido por «Torre de Coina», «Palácio da Bruxa» ou «Quinta do Inferno». Está situado na freguesia de Coina, concelho do Barreiro, e é um local misterioso com lendas urbanas associadas.

Liliana Duarte Pereira

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Sabe-se que, no século XVIII, a quinta onde se encontra este palácio era uma propriedade rural, pertencente a D. Joaquim de Pina Manique. No século XIX, foi adquirida por Manuel Martins Gomes Júnior, nascido a 11 de novembro de 1860 em Santo António da Charneca. Homem de origens humildes, mas com um nato espírito empreendedor (e talvez alguma canalhice à mistura). Conta-se que terá adquirido um moinho, ao qual aparentemente pegou fogo com o intuito de receber uma indemnização do seguro. Por ser boato ou por nunca se ter comprovado o seu envolvimento, acabou por ser ressarcido. Com esse valor, adquiriu várias terras e dedicou-se a conceder, aos agricultores das terras contíguas, empréstimos em dinheiro com juros exorbitantes. Diz-se que, na hora de cobrar dívidas, não fazia uso da piedade, pelo que, mesmo em anos de más colheitas, não se apaziguava nas cobranças, arrecadando como forma de pagamento várias terras que foi anexando. Este comportamento implacável era equilibrado com gestos de bondade. No ano de 1906, mandou construir uma escola com o objetivo de oferecer educação gratuita aos seus empregados e respetivos filhos.

Fez fortuna dedicando-se a vários negócios ligados à lavoura, à suinicultura, à venda de carnes, ao comércio, e ficou também conhecido como o «Rei do Lixo», quando se tornou detentor exclusivo da recolha dos detritos da cidade de Lisboa. Homem com visão, juntou o útil ao rentável, utilizando o lixo orgânico recolhido para alimentar os porcos e para adubar as terras.


Era tido como um homem controverso e provocador em relação às suas crenças pessoais e políticas. Republicano e ateu convicto, nunca perdeu a oportunidade de espicaçar os católicos conservadores, tendo transformado a capela da quinta num armazém e estábulo. 


Às fragatas que utilizava para transportar o lixo, atribuiu nomes endiabrados, deixando qualquer religioso de cabelos em pé: Averno, Belzebu, Caronte, Demo, Diabo, Horrífico, Mafarrico, Mefistófeles, Satanás e Plutão. Não satisfeito, concedeu às suas quatro filhas nomes de deusas pagãs: Ceres, Cibele, Flora e Proserpina. Não se escapou o sobrinho, para o qual escolheu o nome de Libertino, e o afilhado, batizado como Rodas Nepervil , que lido de trás para a frente revela o nome «Livre Pensador».

Foi em 1910 que começou a construção do palácio, sendo que ninguém sabe ao certo qual a intenção real de mandar construir um edifício com uma estrutura tão incomum. O palácio nunca foi habitado pela família, uma vez que as obras foram interrompidas por volta de 1913/1914. A 9 de Novembro de 1943, com 82 anos, Manuel Martins Gomes Júnior faleceu. Há quem diga que padecia de doença prolongada, outros acrescentam circunstâncias suspeitas e nunca apuradas sobre a causa da sua morte. A propriedade ficou ao cuidado do genro, António Zanolete Ramada Curto. Foi o mesmo que transformou o palácio numa casa agrícola até ao ano de 1957, data em que a propriedade foi vendida a António Baptista e Joaquim Baptista Mota, grandes proprietários e industriais de curtumes, que fundaram a Sociedade Agrícola da Quinta de São Vicente.

Nos anos 70, António Xavier Lima adquiriu toda a propriedade e revelou interesse em reabilitar o edifício, com o objetivo de o converter numa pousada com cerca de 85 quartos. Este projeto morreu mesmo antes de nascer quando, a 5 de junho de 1988, o interior do palácio ficou totalmente destruído, na sequência de um misterioso incêndio.

Será que este palácio tem algo diabólico? Fica em aberto. O homem que o projetou não o concluiu e pouco ou nada se sabe sobre o motivo da sua construção e a paragem da mesma. Existem teorias que indicam que Manuel Martins Gomes Júnior estaria ligado à maçonaria e que a construção do palácio teria uma intenção esotérica e de simbologia deísta. Ou talvez só quisesse alcançar o céu através da elevada torre, ou tenha desenhado esta estrutura tão fora da caixa para que a mesma se destacasse na paisagem. Monstruosa como seria, geraria falatório sobre a sua origem, chamando a si as atenções no ontem, no hoje e no amanhã.


Não deixa de ser interessante que o ponto de partida da sua fortuna tenha sido um incêndio, e que a reabilitação do palácio tenha sido inviabilizada pelo mesmo motivo. Terá sido uma coincidência ou as graçolas são transversais em mundos paralelos?


Não sei quanto a vocês, mas eu gostaria muito de ter conhecido Manuel Martins Gomes Júnior. Em vida, claro. As suas características traçam-no como um homem trocista, provocador e divertido. Até na hora da morte resolveu ser controverso, doando parte da sua fortuna às misericórdias franciscanas e deixando também uma verba destinada à reconstrução da capela de Nossa Senhora dos Remédios, em Coina. Terá sido um ato de conversão? Um pedido de perdão? Medo do que a morte traria? Ou estava só a divertir-se mais uma vez ao confundir-nos? Na volta, o seu único propósito era deixar sem resposta este leque de questões, fazendo com que a sua memória perdurasse justamente por isso.


O acesso à quinta onde se encontra o Palácio do Rei do Lixo encontra-se encerrado permanentemente, pelo que não é possível aceder ao mesmo.