O Lobisomem Português

«Populosos e muito temidos, os lobisomens eram um símbolo de terror e de maldade, bem como da dimensão animal no ser humano.» (Clare Gibson, Sinais e Símbolos, 2008, p. 130)

As lendas de lobisomens sussurram pelo nosso país, principalmente nas zonas mais distantes das cidades. Lembro-me de ouvir o meu avô falar das lendas do lobisomem na sua pequena aldeia natal, um ser terrível que vinha de noite.

Como diz Ricardo Braz Frade, no blog Portugal num Mapa: «Bastará olhar para alguns nomes atribuídos a lugares de Portugal. Em Cambra de Baixo, apelidaram uma caverna de Cova do Lobisomem. Em Tabuaço, perto de Pinhão, chamaram Fraga de Lobisomem a uma assustadora cavidade que os aldeões tinham medo de visitar. Em Caminha, temos um lobisomem com direito a código postal: a Rua do Lobisomen. Exemplos destes há muitos, a comprovar que este ser fantástico está tão presente na cultura popular que o mapearam em nomenclaturas geográficas».


A lenda do lobisomem é antiga, e os seus primeiros ecos soam pela Grécia Antiga, pela Índia Antiga e pela Germânia. Na Europa, a lenda é mais ou menos uniforme: um homem durante o dia que se transforma em lobo em noites de lua cheia.


Em Portugal, existem menções ao lobisomem pelo menos desde a Idade Média, destacando-se particularmente um verso de um Rifão do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516), «Sois danado lobisomem».

No seu Vocabulario Portuguez e Latino (1712–1728), Rafael Bluteau define o lobisomem deste modo: «Na opinião popular he espirito maligno, [que] anda de noite pelas ruas, & pelos campos» (Tomo V, p. 195).

Segundo Clare Gibson, a transformação em lobisomem pode decorrer de várias causas, como «ser-se possuído pelo demónio, ser infectado por outro lobisomem ou usar um cinto de pele de lobo» (Sinais e Símbolos, 2008, p. 130). O fado do homem infetado traduz-se em ir para uma encruzilhada, despir-se e espojar-se onde um animal antes o fizera, «para ir “correr fado” por sete freguesias, sete adros» (Alexandre Parafita, Mitologia Popular Portuguesa, 2021, p. 39). Diz-se ainda, que, enquanto «corre fado», o lobisomem ataca e come pessoas que encontra pelo caminho, geralmente crianças.

Maria Manuela Nova aponta que, no Barlavento Algarvio, o sétimo filho de um casal devia chamar-se Adão, caso contrário converter-se-ia em lobisomem. Esta ideia do sétimo filho lobisomem também ecoa em lendas transmontanas. Segundo Alexandre Parafita, «As [hipóteses] mais correntes são: 1 – quem tiver sete filhos a eito, o último tem de ‘correr fado’, a menos que tenha tido como padrinho um dos irmãos; 2 – o padrinho que no baptismo deixe de dizer certas orações pode estar a contribuir para que a criança venha a tornar-se lobisomem; 3 – diz-se também que do casamento com comadres e cunhadas nascem filhos lobisomens» (Mitologia Popular Portuguesa, 2021, p. 38).

No entanto, o lobisomem não é imaginado apenas como uma criatura bestial e sanguinária. No Algarve, é até visto com alguma simpatia. Como diz Alexandre Matos, «poderemos afirmar que o imaginário que envolve o lobisomem em Portugal remete para uma voracidade interior não totalmente expressa, pois estes relatos da nossa tradição mostram um lobisomem inferiorizado, mais vítima que acusado […]. Lembra o Diabo… também não é tão mau como o pintaram» (B.I. do Lobisomem, 2009, p. 16).


Alexandre Herculano também oferece uma perspetiva compassiva do lobisomem, na revista Panorama: «Esta pobre gente não faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que tem uma cenreira mui galante, por que não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, dando grandes assopros e assobios para que lh’as apaguem» (vol. IV, p. 264).

Assim, o lobisomem, embora seja visto como uma criatura monstruosa e aterradora, é igualmente considerado um ser inofensivo, vítima do seu fado. Talvez por isso se associe também muitas vezes a esta criatura animais domésticos e mansos, como o burro, o cavalo, o bode e o cão — além do lobo.


Para quebrar a maldição, relata-se que se deve queimar as roupas do lobisomem quando este as tira para ir espojar-se de noite, ou feri-lo até sangrar. Segundo as mesmas fontes populares, «as feridas infligidas ao lobisomem no acto da reconversão mantêm-se na forma humana. Em Paradela (Sabrosa), um homem ficou manco toda a vida; um outro, em Souto Maior, ficou cego, e em Sabrosa (Vila Real), um homem ficou sem um dedo» (Mitologia Popular Portuguesa, 2021, p. 39-40).

Apesar das nuances na forma como se encara o lobisomem, na tradição de Trás-os-Montes, a simbologia do lobo não deixa de causar inquietação, sendo esta criatura vista como «um animal cruel, implacável com os seres mais indefesos, inimigo dos pastores, dos caminhantes na noite e pesadelo permanente das crianças que habitam as aldeias mais isoladas» (Mitologia Popular Portuguesa, 2021, p. 41).

Claro, um lobisomem não é um monstro. Alexandre Parafita afirma que o mito do lobisomem é «a expressão da lupinidade, mais ou menos contida, que se abriga dentro de cada um de nós» (Mitologia Popular Portuguesa, 2021, p. 41). De facto, quando falamos de monstros, falamos, afinal, de nós mesmos. O monstro não é mais do que a sombra do humano. Segundo José Gil, os monstros «existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser» (Monstros, 2006, p. 12).

Sim, o monstro não é apenas o ser hediondo que queremos manter à distância e que simboliza tudo o que consideramos horrendo. Foi concebido dessa forma por um motivo: garantir que nós, humanos, possamos conhecer os nossos limites e saber quem e o que somos. Precisamos que os monstros abalem o que pensamos ser certo e evidente, que nos ponham à prova. Sem o monstro, quem é o ser humano?