Peeira, a Fada dos Lobos

Uma mulher que caminha entre lobos e com eles fala…

Como outros países europeus, Portugal teceu lendas sobre lobisomens. Mas criou, também, um lobisomem feminino muito particular.

Patrícia Sá

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Tal como referi no artigo sobre o lobisomem português, este mito circula sobretudo em zonas rurais, longe das cidades. O mesmo se aplica à peeira, a mulher-lobo do imaginário português. Na sua tese de doutoramento, Rosa Maria Fina afirma que as peeiras (ou fadas dos lobos) «são mulheres que caminham e comunicam com os lobos, sendo suas protegidas» (2016, p. 75).

As suas origens são semelhantes às do lobisomem, recuperando o malfadado número 7: «havendo sete irmãs numa casa, a sétima vai para peeira dos lobos. Vai viver sete anos com os lobos; dorme com eles e é alimentada por eles» (Consiglieri Pedroso, Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa e Outros Escritos Etnográficos, 1988, p. 197). Em Guimarães, diz-se que os lobos «desesperam se ela falta, e ela só está livre deles quando os lobos andam a caçar para ela. Ao fim dos sete anos, acaba “a fada” (sic) (= fado)» (Francisco Martins Sarmento, Antígua, Tradições e Contos Populares, 1998, p. 100-101).

É uma criatura rara. Mesmo assim, Rosa Maria Fina aponta para referências à peeira em duas obras do século XIX: Mistérios de Lisboa (1854), do nosso Camilo Castelo Branco, e até uma obra inglesa, de John Latouche, Travels in Portugal (1875). Esta última é bastante interessante, contendo o relato completo de uma lenda do Norte sobre uma mulher «lubis-homem» que assassinou o recém-nascido da família para a qual trabalhava, durante uma noite de lua cheia em que se transformou. Além disso, neste caso, a peeira não é apenas uma mulher que anda com os lobos: é mesmo um lobisomem.


Se a peeira é rara, uma mulher lobisomem ainda mais o é. Mais comum é a representação de uma mulher condenada a ser pastora de lobos e a viver entre eles.

Numa lenda de Ponte de Lima, fala-se de um cavaleiro, D. Afonso Ancemonde, senhor de Refojos, que se viu fascinado por uma peeira de lobos. Conta-se que o cavaleiro atingiu um lobo com uma flecha e o perseguiu até o perder de vista. Desmaiou e, ao recuperar os sentidos, viu-se numa gruta com uma mulher em peles de corça com o lobo aos pés. Ela revelou ao cavaleiro a sua maldição: «Quando a Lua Cheia ilumina as noites limianas, ela transforma-se em pieira de lobos (pastora de lobos), vagueando, com eles, pelo escuro das brenhas, pelos fundos fojos das montanhas, vendo-lhes a fauce sangrenta de abocanhar as presas, os olhos coruscantes. Mas, nesse dia, completava-se o sétimo ano da sua condenação, quando o amor de um homem a podia restituir à liberdade, à paz de uma vida normal» (António Manuel Couto Viana, Lendas do Vale do Lima, 2022, pp. 43-46).
Noutro relato, conta-se que a peeira, ao ver o cavaleiro, lhe disse «que tinha vindo em má hora, pois para ela era a sétima lua — a mais fatal de todas — e perguntou-lhe se seria ele o libertador que ela esperava há tanto tempo» (Ecos do Passado, 1992, pp. 31-32). O cavaleiro pensou estar a ser enganado. Então, a peeira lançou-lhe uma maldição: «Tal como eu, irás vaguear, durante milhares de anos, atrás de outros milhares, por todos estes vales e florestas, em noites de Lua Cheia, seguido por uma alcateia ululante!» (Ibid.).
Numa outra versão da lenda, relatada em Ecos do Passado, diz-se que a peeira se transformou «num misto de anjo e de demónio, de rainha e de selvagem» e convenceu o cavaleiro da veracidade do seu relato. Em ambas as versões, o cavaleiro arrepende-se da sua descrença, mas, se em Ecos do Passado o seu fim é desconhecido, na versão de Lendas do Vale do Lima o cavaleiro falece de uma doença fatal e «quando sobe a Lua Cheia no céu daquelas paragens, no espaço de um relâmpago, qualquer um pode avistar D. Afonso Ancemonde, hirto na sela do seu cavalo, galopando alucinadamente, seguido por uma alcateia ululante». Os contrastes usados para descrever a peeira são dignos de atenção, pois evocam toda uma tradição de representações da mulher, tanto numa figura angelical, inatingível, como numa figura demoníaca, que encaminha o homem à sua perdição.


Curar a maldição da peeira não se resolve com golpes certeiros, como acontece com o lobisomem.

Em Covas, diz-se que a peeira tem de levar a cabo o seu fado e ir viver com os lobos, podendo apenas ser salva se uma das seis irmãs for sua madrinha (Francisco Martins Sarmento, Antígua, Tradições e Contos Populares, 1998, p. 110). Este dito também se repercute na lenda de Ponte de Lima, em que a peeira conta ao cavaleiro que «os pais [se haviam] esquecido de lhe dar por madrinha uma das seis irmãs, condenando-a, assim, a um destino maldito».

Tal como o lobisomem português, a Peeira dos Lobos é imaginada sobretudo como vítima de uma maldição. A palavra «fada», usada para a descrever, refere-se presumivelmente a «destino», mas gosto de pensar numa interpretação mais feérica. Isto, claro, já sou eu a acrescentar um ponto.