«Gosto muito de criar universos que fogem à realidade»

A carreira de Paulo A. M. Oliveira como realizador de cinema ainda é curta (como o próprio afirma), mas o seu interesse pelo terror tem raízes profundas desde que, em criança, viu Rosemary’s Baby, de Roman Polanski.

O seu filme de estreia, Vegan Girl (2016), ganhou o concurso YORN MicroCurtas de Terror no MOTELX, em 2017, e Häuschen — A Herança valeu-lhe uma menção honrosa em 2019, no mesmo festival de cinema de terror em Lisboa. Foi nomeada como melhor curta-metragem de ficção pelos prémios Sophia 2020, da Academia Portuguesa de Cinema, e obteve vários prémios e nomeações em festivais internacionais. Calipso, de 2018, tem sido e continua a ser bem recebido pelo público nacional e estrangeiro em festivais de cinema independente, ganhando, entre outros, o prémio para melhor curta-metragem no Berlin Flash Film Festival e no ShortCutz Lisboa.

O conto «Labirinto» (incluído na antologia Sangue Novo) marca a sua estreia como autor de terror, numa fase em que decidiu complementar o seu trabalho de realização com a escrita de terror. Ainda não sabe se se vai dedicar mais à escrita no futuro, mas conversámos sobre o cinema de terror em Portugal, o processo criativo deste realizador/diretor de fotografia e a sua próxima curta-metragem, na hora de pôr a mesa, éramos cinco, com guião de Anabela Gonçalves, a partir do poema homónimo de José Luís Peixoto.

 

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Antes de te estreares como autor de terror no Sangue Novo, já realizaste alguns filmes do género. É desde o início que decides dedicar-te ao terror?

Sim, [a minha primeira curta-metragem] (In)Focus (2016) foi o meu trabalho académico de mestrado. Tinha a possibilidade de fazer dissertação (que era a opção clássica), estágio ou projeto e eu optei pelo último, por achar que seria o desafio mais interessante.  Na verdade, quando decidi que queria fazer um filme, pouco ou nada sabia do processo de fazer cinema. Apenas sabia que queria escrever uma história de suspense/terror. O que fiz foi uma verdadeira travessia do deserto. Fiz realização, escrevi o argumento, fiz direção de atores (e eu não sabia nada sobre dirigir atores), produzi, editei, servi cafés e uma panóplia de coisas. Enfim, foi uma viagem bastante intensa, que me permitiu perceber que seria na realização e na direção de fotografia que poderia ter alguma voz.

 

A seguir, realizas o Vegan Girl.

Sim, o Vegan Girl é uma microcurta de terror, filmada com um smartphone, imposição do próprio concurso: YORN MicroCurtas de Terror do MOTELX, e que versa sobre canibalismo puro e duro, um pouco ao estilo das short stories do The Twilight Zone. É um pequeno filme onde é mais aquilo que subentendes do que aquilo que vês. Assumo que é um dos tipos de terror que mais me fascina.

 

Segue-se o Calipso (2018), sobre a relação de um casal em confinamento durante uma pandemia (quando estávamos longe de saber como isso seria).

[O argumentista Pedro Martins] foi quase visionário ao prever uma pandemia dois anos antes da COVID-19 acontecer. O filme retrata um ambiente pesado de quarentena passado numa casa velha e carcomida. Numa segunda camada, assistimos à degradação de uma relação entre um casal que habita esta casa. Duas pessoas que, apesar de viverem juntas, já não se olham ou muito menos comunicam, dando apenas espaço para a proliferação de um fungo que escolheu o humano como hospedeiro para espalhar o seu mal. Trata-se de uma curta-metragem de terror de baixo orçamento, que contou com a ajuda da plataforma de crowdfunding PPL, onde conseguimos angariar algumas verbas para pagar aos atores e à equipa para desenvolver uma boa caracterização, à moda da escola antiga, sem efeitos especiais. Tivemos a sorte de trabalhar com um bom diretor de arte e com uma excelente caracterizadora. O João Pedro Frazão e a Olga José foram verdadeiros heróis a dar vida aos personagens dos meus últimos dois filmes [Calipso e Häuschen – A Herança].

 

E se calhar até preferes fazer da forma antiga, até certo ponto, não?

Na verdade, ainda não passei pela experiência de trabalhar com grandes orçamentos. Mas confesso que é um feito bastante gratificante dar vida a personagens através de técnicas de arte e caracterização com orçamentos reduzidos. É um processo totalmente criativo e de dependência de talento humano, que te ajuda a dar corpo a monstros, alma a demónios e espaço a seres hediondos que habitam nos confins do teu universo.

 

O primeiro filme de terror que vês é o Rosemary’s Baby, do Polanski. É o primeiro contacto?

Sim, eu entro no [mundo do] terror em tenra idade com o Polanski. O filme não é muito gráfico, mas [marcou-me] pela experiência. Lembro-me de estar sentado no sofá, com os meus pais, a assistir ao filme com as mãos na frente da cara. Entre as brechas dos dedos lá ia vislumbrando a mise en scene do Rosemary’s Baby.  E desde essa altura que fiquei com o bichinho do terror e com vontade de conhecer os verdadeiros clássicos e os seus criadores. É impossível não falar de nomes como F. W. Murnau, John Carpenter, Mario Bava, Dario Argento, George Romero, William Friedkin, Sean Cunningham, Wes Craven, Alfred Hitchcock, Stanley Kubrick, Guillermo del Toro, Park Chan-wook, Takashi Miike, James Wan ou mesmo Carl Laemmle Jr., filho do fundador da Universal, que através de uma estratégia de posicionamento dos estúdios nos trouxe os míticos Monstros da Universal. Estes nomes, e muitos outros, contribuíram para todo este meu fascínio pelo universo do terror. Mas continuando, quando tirei o mestrado, decidi que queria fazer cinema onde o suspense e o terror fossem a linguagem principal. No meio de todo este processo, percebi que havia uma lacuna enorme. Eu não cresci a ser um devorador de livros, mas sim a devorar filmes. Nos dias de hoje, procuro ter uma rotina diária de leitura para desenvolver a escrita e para potenciar os meus argumentos na área da realização. Daí ter feito o curso Escrever Terror na Escrever Escrever. Os meus atuais parceiros de cabeceira são os ilustres Stephen King, Richard Matheson, Lovecraft, Allan Poe, Bram Stoker. Entre outros.

 

Sentias que te faltava essa bagagem?

Sem dúvida alguma. Para escrever boas histórias é preciso ter alicerces fortes, por forma a que consigamos ter voz para contar as nossas histórias.

 

Costumas escrever os guiões para os teus filmes?

Escrevi o guião do (In)Focus e participei ativamente nos guiões do Calipso e d’A Herança.

 

Isso ajuda-te como realizador? Trabalhar no guião e na realização em simultâneo?

Totalmente! Escrever ajuda-me a conceptualizar o filme na minha cabeça: a ação dos personagens, os diálogos, a abordagem do plano, os décors, a iluminação, as questões técnicas e, por fim, a materializar todas estas coisas num formato cinematográfico.

 

Entretanto, depois de fazeres o curso Escrever Terror, a dada altura o [formador] Pedro Lucas Martins desafia-te a escreveres um conto para uma antologia que ele está a organizar.

[Quando] ele me mandou uma mensagem a explicar o que era o projeto e a dizer-me que gostava muito que eu escrevesse um conto, eu pensei: «Eu? Mas eu não sou escritor! Eu nunca escrevi um livro!». Ele acabou por insistir, porque achava que, como eu estava no mundo do cinema, poderia ser um projeto interessante. Curiosamente, o meu conto [«Labirinto»] é baseado na curta-metragem (In)Focus. Já tinha escrito esse guião e [para a antologia] revisitei esse texto com mais maturidade, alguma experiência, e dei-lhe um twist diferente. Espero que os leitores gostem. Foi uma forma de contar o (In)Focus, mas corrigindo algumas lacunas por forma a criar uma história mais interessante.

 

Como é que foi esse desafio de transformar um filme num conto?

Foi relativamente fácil, porque a história já estava lá. [Tive] de desligar-me um pouco do lado da câmara, do lado gráfico, e tentar perceber o que é que seria mais interessante em termos de conto. O que é que funcionaria ou não. Se resultou ou não, [terão de ser os leitores] a dizer. O Pedro [Lucas Martins] foi uma pessoa muito importante em todo o processo da reescrita do texto.

 

E eras capaz de agora fazer o inverso? Fazias outro filme baseado neste conto?

Gostava de o fazer, sim. Acredito que esta história, tal como a reescrevi, está mais interessante do que a original, feita em 2016. E uma vez que [o filme] nunca foi divulgado — foi feito em ambiente académico e coloquei essa condição de que o filme nunca saísse desse contexto —, penso que seria interessante reunir a equipa para revisitar o filme (In)Focus. Quem sabe?

 

Estás já a trabalhar nos próximos projetos?

Sim, estou a trabalhar numa nova curta-metragem, na hora de pôr a mesa, éramos cinco, que está na fase de pré-produção e deverá ser rodada em abril deste ano.

Há um outro projeto para o qual tenho escrito, em colaboração com mais uma pessoa, no âmbito do suspense/terror, para televisão e/ou plataformas de streaming.

 

Seria um projeto muito interessante para propor à Netflix, por exemplo.

Eu quero acreditar que sim. O tipo de projeto que é pode ser apresentado a qualquer uma das plataformas.

 

E ainda há a ideia generalizada de que o que vem de fora é que é bom?

Sim, mas eu estou com esperança de que isto mude um bocadinho. Já se começam a ver coisas boas. O grande problema do nosso país é não ter uma grande estrutura para cinema. As entidades que o subsidiam são escassas, e os apoios tendem a ser bastante limitados. Na maioria das vezes, temos de ser nós, realizadores, produtores, etc., a andar em modo guerrilha a promover o nosso próprio filme, através de plataformas onde constam centenas de milhares de festivais, desde Cannes ao «festival ali da esquina». Tens de ter muita força de vontade e um espírito empreendedor para agarrares no teu projeto e dizer «eu não vou parar por aqui».

 

O que é que te leva a olhar para o poema de José Luís Peixoto [na hora de pôr a mesa, éramos cinco] e pensar que dava um bom filme de terror?

Foi o tal piscar de olho à literatura. Na verdade, foi a Anabela Gonçalves, produtora da curta-metragem Häuschen – A Herança, que escreveu o argumento com base no belíssimo poema de José Luís Peixoto.  É uma história bastante delicada e profunda, levando-nos por uma viagem repleta de sentimento, amor, angústia, terror e saudade.

 

E decidiste que a história se ia passar no século XIX.

Na verdade, fui obrigado a mudar o período em que se passa o filme devido à dificuldade em encontrar décors ajustados à época. A minha ideia era recriar o universo do filme Barry Lyndon, do Kubrick, mas os orçamentos limitaram muito a nossa escolha. Assim, optámos por mudar a época para o início do séc. XX. Vou, no entanto, tentar manter uma estética bem contrastada e com glamour.

 

Podemos dizer que essa é a tua assinatura?

Ainda ando à procura dela. Penso que faz parte do processo. Mas sim, gosto muito de trabalhar com luz artificial e de criar universos que fogem à realidade. Eu gosto muito do realismo mágico do Guillermo del Toro, assim como gosto de trabalhar com tons saturados, que foram bastante utilizados por realizadores como Dario Argento e Mario Bava. Confesso-me um grande admirador da estética fantasiosa do realizador Tim Burton. Num outro extremo, admiro muito o Vittorio Storaro, diretor de fotografia do inigualável Apocalypse Now, do Coppola, e o John Alcott, diretor de fotografia responsável pela fotografia do magistral Barry Lyndon, do Kubrick. Curiosamente, há uma mulher no meio destes homens todos que me surpreende pela sua capacidade artística e fotográfica: Natasha Braier. Foi diretora fotográfica do filme The Neon Demon, de Nicolas Refn. Todos eles são, para mim, grandes referências que povoam a minha veia fotográfica e me inspiram a criar frames que, de alguma forma, cativem e transportem a audiência para um universo diferenciado. E, no meio de todas estas referências, estará a minha assinatura. Espero.

 

E expectativas para o Sangue Novo: Uma Antologia?

Tenho boas expectativas, porque não há muita coisa escrita no universo de terror em Portugal. Eu estou com um feeling de que o livro vai fazer buzz e que pode ser um ponto de partida para outras coisas.