Portugal tem uma cultura tão rica de lendas, de coisas fora do normal
Entrevista a André Caetano
André Caetano ilustrou o conto «Hop-Frog» para a antologia Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe, lançada no MOTELX, em 2017, pela Saída de Emergência, e o livro Volta: o Segredo do Vale das Sombras, com argumento de André Oliveira, vencedor do prémio para Melhor Livro do Ano na ComicCon Portugal em 2015. Em 2021, organizou o primeiro Ilustríssimo, um mercado de ilustração em parceria com livrarias de Coimbra dedicadas ao género, onde fãs e ilustradores estiveram em contacto próximo.
Conversámos sobre o seu percurso profissional, a influência do terror, o impacto da sua infância em Coimbra e a origem do seu mais recente projeto a solo, A Little Girl, o livro de banda desenhada sem palavras que lançou em 2021.
Como é que tem sido a sua carreira como ilustrador até aqui, como é que chega à ilustração?
A minha ligação com a ilustração e a banda desenhada vem desde muito pequeno. Os meus pais começaram logo a oferecer-me livros ilustrados. E depois, na minha família, sempre houve o hábito de contar histórias, seja do que acontecia na nossa vila, ou dos nossos familiares, ou das peripécias dos nossos avós, etc. Mas também me lembro de os meus pais estarem a desenhar para mim e, ao desenhar, quase que construíam uma história sobre o desenho. Acho que isso, de certa maneira, também me influenciou a querer juntar as histórias com o desenho. E também senti bastante interesse na área não necessariamente do terror, mas de algo mais oculto, como lendas, coisas sobrenaturais e coisas desse género. A banda desenhada de terror começou quando conheci o André Oliveira no Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja. É um dos meus [festivais] favoritos em Portugal, porque cria uma possibilidade de [contacto entre] toda a gente que está no festival — os convidados, o público, os fãs. Estamos todos no mesmo sítio e estão sempre lá. Não é como naqueles festivais mais tradicionais em que há uma hora marcada. Há sempre esse convívio. E acabei por conhecê-lo através de um projeto que seria inicialmente um web comic. A ideia era juntar ilustradores e escritores ou quem quisesse escrever e ilustrar. O André [Oliveira] tinha o início da história do Volta: O Segredo do Vale das Sombras, e eu não tinha história para desenhar, então juntei-me [a ele]. Começámos a colaborar e tem sido muito bom, porque acabou por ser a obra de banda desenhada em que eu participei que tem mais páginas, e foi o primeiro livro mais longo. Foi todo um processo de aprendizagem, quer da parte do desenho, quer da construção da história, da narrativa, do género em si. Não tinha desenhado algo desse género até então.
Antes disso, nunca tinha desenhado terror?
Na faculdade, tínhamos de fazer três capas de um livro [como exercício]: uma com ilustração, uma só com tipografia e uma com fotografia. O livro que eu escolhi foi O Exorcista. Já tinha visto o filme, mas li o livro numa noite e achei muito mais assustador do que o filme! A nossa imaginação é muito poderosa, e a mim não me falta imaginação. Ao construir a criatura que habita no Vale Das Sombras, por exemplo, baseei-me numa experiência que tive quando tinha uns 13 ou 14 anos. Os meus pais têm um terreno no meio da mata na zona de Coimbra, na Vila Pereira. Estávamos lá a apanhar pinhas e a limpar aquela parte da mata, e eu encontrei uma cabeça de cavalo decapitada, sem a pele, já só com os músculos. Como deve imaginar, foi uma imagem forte que me ficou gravada para sempre, e que eu usei quando estava a desenhar o Volta: O Segredo do Vale das Sombras, para criar a criatura.
Esse livro recebeu vários prémios e distinções. Como é a sensação de ter esse reconhecimento?
Na verdade, o Volta demorou algum tempo a sair, porque foi feito entre projetos. Passou algum tempo desde que comecei a trabalhar com o André sobre o projeto, e desde deixar de ser um web comic e passar a ser um livro. Aliás, foi por isso que mantivemos o formato horizontal, porque seria para um web comic. É um formato que não é muito comum, há muitos editores que não gostam de ter livros fora do formato. Nós não sabíamos nada disso na altura, mas acho que acaba por resultar, porque há sequências no livro que, sem aquele formato horizontal, não teriam o mesmo impacto. Mas é óbvio que, devido a todo esse tempo de fazer o livro, e depois de ver o reconhecimento dos nossos colegas, da crítica, foi bastante recompensador. Um dos prémios foi na Amadora BD. O André Oliveira ganhou o prémio para Melhor Argumento. Depois, no festival da ComicCon Portugal, ganhámos Melhor Ilustração e Melhor Livro. Foi a primeira vez que foi premiada uma banda desenhada na primeira ComicCon. Fomos os primeiros a vencer. Teve um sabor especial. Também porque lá estavam convidados internacionais, e alguém nos referiu como sendo os vencedores. É um reconhecimento diferente ter os grandes nomes da banda desenhada a saberem que aquelas duas pessoas portuguesas foram os vencedoras. Um livro que vi a ser lido à minha frente por esses autores, e ter o feedback deles. Isso, na verdade, até é mais importante, ter o feedback desses autores que eu respeito e admiro.
Se houvesse aí alguma dúvida que estava no caminho certo, dissipou-se por completo.
Sim, na verdade, desde que descobri uma banda desenhada francesa, quando tinha 15 anos, disse para mim: «OK, é isto que eu quero fazer». E o meu percurso desde o secundário, até entrar na faculdade, foi ver qual era o curso onde eu me encaixava. Acabei por escolher Design de Comunicação. E acho que foi uma ótima opção porque, além de me dar outras especialidades para trabalhar como designer gráfico, permitiu-me, nos livros que vim a fazer depois, controlar o resultado gráfico. Quando colaborava com designers, falávamos a mesma linguagem e isso ajudou também. Quando estava a fazer o Volta, também tive a oportunidade de trabalhar com o André Oliveira n’ O Milagreiro, que também está relacionado com o terror. É uma história mais religiosa, vamos dizer assim, que saiu inicialmente no Brasil, numa revista de oito páginas. O André Oliveira decidiu depois, a convite do editor da Polvo, estender a nossa história inicial. E foi particularmente interessante, porque vi os autores portugueses que eu mais admirava em Portugal a reinterpretarem as personagens que eu tinha desenhado. Para mim, foi divertido ver o processo, ver como eles interpretaram e criaram as personagens para aquele universo.
E essa colaboração com o André Oliveira foi daquelas colaborações que correram bem desde o início. Quase como encontrar o par perfeito.
Acho que, por sermos da mesma idade, acabamos por ter as mesmas referências em termos do que apareceu nos cinemas, nos livros. Estávamos a viver aquilo ao mesmo tempo, embora ele em Lisboa e eu em Coimbra, mas acabámos por ter as mesmas referências e trabalhamos muito bem. Eu sempre gostei de ir falando com quem colaboro e estava sempre a fazer perguntas ao André. Foi um trabalho verdadeiramente colaborativo, que resultou bastante bem, e estamos agora a terminar o volume dois do Volta.
E quando fez a ilustração para Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe (Saída de Emergência), como é que foi esse processo de ilustrar um conto de um dos grandes autores internacionais do género?
Esse livro surgiu por convite do Bruno Caetano. Ele listou os 28 melhores contos que iam ser escolhidos e eu escolhi o que sobrava. Das opções que tinha, achei que o «Hop-Frog» era o mais interessante de ilustrar. Curiosamente, encontrei uma versão do conto em banda desenhada feita por um autor português, penso que era o Eduardo Teixeira Coelho. Ao ler o conto, quis brincar com a expressão maquiavélica ou doida da personagem. Sendo o escritor que é, senti alguma pressão. Sente-se em qualquer trabalho, mas, por ser o escritor que é, queria que fosse um resultado interessante e que ilustrasse bem o conto. Essa era a minha preocupação: que ilustrasse bem a história.
E foi bem recebida essa interpretação do conto?
O feedback foi positivo, sim. Inclusive, a ilustração foi publicada em alguns blogs de repositórios do universo de Edgar Allan Poe. Mas estamos sempre sujeitos a interpretações. Fiz agora uma banda desenhada sem palavras em que ponho nas mãos do leitor o final da história. E já tive interpretações muito fora do que eu tinha pensado inicialmente.
O A Little Girl? O que é que está por trás deste projeto em nome próprio e a solo?
Sim. Foi o primeiro livro que escrevi e que foi editado. O meu projeto de final do curso de Design de Comunicação foi uma banda desenhada de 20 páginas para a disciplina de Design Gráfico, mas nunca foi publicada, foi só para o projeto. Quando a fiz, não tinha qualquer experiência de edição, de fazer livros.
E esse projeto é para ficar para sempre guardado na gaveta?
De vez em quando, lembro-me de que gostava de o refazer. Quando o fiz, a minha avó materna tinha falecido, e era uma pessoa muito próxima. Quando escrevi o conto, foi quase uma expressão da minha dor, porque se chama O Último Encontro. Era o meu desejo de voltar a ver a minha avó, e penso que é o desejo de qualquer pessoa que visita o cemitério [onde a história se passa]. É o desejo de que a pessoa voltasse por um momento, com uma presença física. De vez em quando, penso em fazer isso. Não sei se irá acontecer, mas é uma das ideias que, por vezes, penso em refazer.
A Little Girl surgiu por causa da Casa da Esquina (uma associação cultural em Coimbra). Convidaram-me para ilustrar uma montra para o projeto A Marquise e depois convidaram-me para uma exposição individual. Eu já tinha tido várias ideias para histórias minhas, só que nunca gostava delas. Pensava numa ideia e, como não avançava logo, começava a analisar muito e, na semana seguinte, já pensava: «não vale a pena» ou «já alguém fez parecido», e nunca acontecia. Como ali tinha um prazo para entregar a exposição, pensei: «bom, vou aproveitar esta oportunidade para avançar com uma história minha». Decidi fazer uma banda desenhada e a exposição era com os originais. O resultado, depois, seria um livro impresso. Mas disse isso sem qualquer ideia para uma história! Que foi o mais divertido. [Risos]
Ao pensar em ideias, comecei a pensar: «OK, é uma casa; e se fossem casas de lendas?» (gosto muito de lendas), e comecei a desenhar as casas das fábulas. Acabei por desenhar uma cabeça enorme de um lobo, que está na última página do livro, como se a Capuchinho Vermelho tivesse morto o lobo e tivesse [usado a cabeça] para construir uma casa. Fiz a minha interpretação deste conto popular. E, como a escrita não é ainda o meu forte, gostei da ideia de deixar à interpretação do leitor.
Uma das influências foi o Building Stories: uma caixa com livros sem ordem, com vários formatos e tamanhos. São histórias que se passam em edifícios e, uma vez que o leitor escolhe a ordem dos livros que vai ler, dependendo da ordem, vai ter uma perceção diferente de todo aquele universo. Por causa do Building Stories, decidi fazer também um postal e um mapa. Um postal porque é o que aparece dentro do livro. O mapa para que o leitor fosse um bocadinho personagem do livro. Quis que fosse uma experiência diferente.
Já são as várias dimensões do André a influenciar o seu processo criativo.
Sim, se tivesse feito este livro quando saí da faculdade, não ia ser nada disto! [Risos]
Em que é que está a trabalhar agora, além do volume dois do Volta?
Tenho trabalhado numa área que até pode ter alguma coisa de terror, que é a comunicação de ciência. Seja em banda desenhada, seja em ilustração. Por exemplo, ilustrei uma banda desenhada sobre tuberculose e descobri que há umas bactérias que não conseguimos matar e isso é bastante assustador! [Risos]
Na sua opinião, existe terror em Portugal, ou é, como muitos acreditam, uma questão de modas? Ou há espaço para que o terror em Portugal exista e cresça?
Acho que Portugal tem uma cultura tão rica de lendas, de coisas fora do normal, de sítios estranhos, onde já por si, pelo cenário, imaginamos coisas de terror a acontecer. Acho que existe terror em Portugal e acho que existem autores bastante bons a fazê-lo. Na banda desenhada portuguesa, não necessariamente de terror, há bastantes histórias deste género. Por exemplo, voltou a haver bolsas de criação artística nestes últimos três anos, o que proporcionou o aumento de obras de banda desenhada, não só de terror. Da minha perspetiva, claro, que é influenciada pelas lendas e coisas do género.
Sim, temos imensas fontes de inspiração em Portugal, material que podemos usar. Não é preciso irmos buscar ideias lá fora. Existem fãs do género cá que podem beneficiar disso e existe mercado.
Sim, e eu também quero continuar a fazer histórias do género do A Little Girl, banda desenhada sem palavras, deste género de terror ou algo semelhante. Tive um retorno bastante bom e gostei imenso de fazer o livro. É um tipo de histórias que quero continuar a explorar.
Acho que, aos poucos, o terror em Portugal vai começar a ser cada vez mais visto como um género «sério».
Sim, é como na banda desenhada. Há pessoas que ainda vêem a BD como entretenimento para crianças, e, na verdade, há histórias de terror. Acho que haver mais histórias de terror para crianças também seria uma boa ideia.
Qual foi até agora o melhor conselho que recebeu e que fez a diferença no seu percurso?
No festival da Amadora, estava a ilustrar uma lenda de Montemor-o-Velho, que não era de terror, mas que acho, de qualquer maneira, que posso usar aqui como exemplo. A ilustração era de um adulto que ouve um bébé a chorar e decide deixar o cavalo e a espada para trás. Eu achava aquilo bem, que estava bem composto e tudo o mais. E o Richard Câmara foi quem me alertou para isso, e diz-me: «então, estás no meio da floresta, ouves um barulho e decides deixar a tua arma de defesa e o teu modo de fuga atrás de ti? Não me parece muito bem». Desde aí, quando estou a ilustrar ou a tentar criar uma história, tento imaginar o que eu faria se fosse aquela personagem, para tentar criar algo mais pessoal. Por exemplo, aquela cabeça de cavalo que encontrei quando era miúdo ajudou-me imenso a criar a personagem do Volta. Porque aí penso como aquela cabeça me causou tanto medo e como é que posso transmitir aquela mensagem usando aqueles elementos. É usar a nossa experiência e pensarmos no que nos causa mais medo.
E é isso que o atrai mais no terror?
Como criador, é poder provocar essa experiência em alguém ou dar-lhes uma experiência fora do normal. Como leitor, também é ter essas experiências e sentir a emoção que pode ser transmitida pelo desenho, pela história, pela minha imaginação. Ou a adrenalina que isso provoca.
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Sandra Henriques
Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.