Uma reflexão acerca do fantástico

O fantástico sempre fez parte da minha vida. Lembro-me de, em criança, ficar fascinada com narrativas de fadas, monstros, feiticeiros, dragões, vampiros, fantasmas, demónios… todo um universo que não existe no mundo «real», mas que é igualmente, se não ainda mais, visível na nossa imaginação.

Acho que faz todo o sentido inaugurar a Fábrica do Terror com uma reflexão sobre o mote deste cantinho da Internet: o terror e o fantástico. Não é incomum ouvir-se comentários depreciativos de quem julga que apreciar terror, fantasia ou ficção científica é «desperdício de tempo».

O terror é para quem tem algum distúrbio psicológico; a fantasia é para quem se recusa a crescer; a ficção científica é para nerds. Tudo clichês que ouvimos uma e outra vez, declarados com a mesma certeza de quem diz que o céu é azul.

E o que dizem essas pessoas que devíamos, antes, cultivar? Narrativas «realistas», de assuntos «sérios». E não digo que essas narrativas não tenham valor. Mas serão as únicas que devem ter destaque? Será justo considerar tudo o que escapa ao dito «realismo» uma mera forma de escapismo?

Esta é uma ideia que sobreviveu desde o fim do Romantismo até aos nossos dias, o que acho curioso. Afinal, não é toda a ficção uma construção e, por isso, uma fantasia? Não é, assim, a literatura, ou a arte em geral, um produto da imaginação humana e, como tal, um produto fantástico?

Recordo-me das palavras de Todorov, que considera o fantástico a base de toda a literatura, precisamente por depender da linguagem para existir, questionar a oposição real/irreal (The Fantastic) e modificar um equilíbrio prévio, o que constitui a definição de narrativa.

Além disso, é um género que, no entender de Rosemary Jackson, é subversivo, no sentido em que questiona o que comumente se entende por «real» (Fantasy: The Literature of Subversion.)

Tendo a concordar, já que toda a arte, e toda a literatura, tentam, de algum modo, traduzir as perceções de um sujeito acerca da realidade. No entanto, como a linguagem, no caso da literatura, é limitativa, incapaz de abarcar todas as impressões dessa realidade, tal tarefa torna-se difícil, se não mesmo impossível.

Por isso, diz-se que a forma artística mais próxima dessa apreensão da realidade é a fotografia, mas até esta depende do olhar de um sujeito por trás de uma câmara e que seleciona o ângulo e o objeto a captar.

Parece que divago ao discorrer acerca da arte desta forma, mas é uma divagação que tem o seu nexo. A arte, desde a Antiguidade, tem carregado o fardo da mimesis, da imitação. De facto, considerou-se (e, talvez, ainda se considere) que a arte deve apenas imitar, reproduzir, copiar o real.

Talvez por isso se privilegiem as ficções ditas «realistas», em detrimento de outras mais especulativas, que lidem com cenários impossíveis, puros exercícios da imaginação. No entanto, será essa arte «realista» assim tão colada à realidade como se gostaria de pensar? Ou não será antes um exercício igualmente imaginativo, por não passar de uma representação?

Assim, se a arte é representação, não pode nunca corresponder à realidade. Passará sempre por um processo imaginativo. E o que há de mais artístico e imaginativo do que os géneros que se inserem dentro do fantástico?

O terror, a fantasia, a ficção científica e todas as suas derivações são os géneros que mais apelam à imaginação e, por isso, são, porventura, as formas de arte mais humanas.

Não devem, por isso, ser menosprezadas enquanto escapismos, pois são tão necessárias quanto as narrativas «sérias» e «realistas». Penso que Tolkien colocou o ponto bastante bem:

Porque deve um homem ser menosprezado se, quando aprisionado, tentar fugir e regressar a casa? Ou se, quando não o puder fazer, pensar e falar de outros tópicos além de guardas e muros prisionais? O mundo lá fora não se tornou menos real porque o prisioneiro não o consegue ver. Usando o Escape desta forma, os críticos escolheram a palavra errada, e, além disso, confundem, nem sempre intencionalmente, o Escape do Prisioneiro com a Fuga do Desertor. […] Não só confundem o escape do prisioneiro com a fuga do desertor, mas também parecem preferir o consentimento do «traidor» à resistência do patriota. («On Fairy Stories», tradução livre).

O termo «desertor» é muito importante, penso eu, pois é esse sentimento de revolta perante um desertor de uma guerra que parece instigar o desprezo de algumas almas. Se a realidade não é como desejamos, e se não somos capazes de imaginar outros mundos, outras realidades, então outros também não o deverão fazer. «A miséria adora companhia», como diz o provérbio americano.

Assim sendo, julgo que algumas das reflexões de Rosemary Jackson são de extrema relevância. No seu estudo, Jackson sublinha o caráter inerentemente subversivo do fantástico, sendo que este põe em questão não só o que se entende por «real», mas também toda uma ordem social previamente aceite como verdadeira e una.

É uma ameaça, incomoda. A subversão é algo que se tenta reprimir a todo o custo em nome de uma ordem, de modo a evitar o caos.

No entanto, para todo o lado luminoso, deve existir uma sombra e, como diz Carl Jung, «não nos tornamos iluminados imaginando figuras de luz, mas antes tomando consciência da escuridão. Esse procedimento, contudo, é desagradável e, por isso, pouco apreciado» (Jung, Alchemical Studies, tradução livre).

Acho ainda interessante referir outra citação de Jackson:

A rejeição do fantástico, que o coloca nas margens da cultura literária, é, por si só, um gesto ideologicamente significativo, um gesto que não difere do silenciamento do irracional pela cultura. Enquanto «arte» do irracional e do desejo, a fantasia tem sido persistentemente silenciada, ou reescrita, em termos transcendentais em vez de transgressivos. A ameaça de desfazer ou dissolver as estruturas dominantes tem sido reedificada, reconstruída enquanto alegoria moral e romance mágico. Como escreve Foucault acerca do irracional, «Qualquer transgressão na vida torna-se um crime social, condenado e punido… aprisionado num mundo moral [por ofender] a sociedade burguesa». De um mundo racional e «monológico», a alteridade não pode ser conhecida ou representada senão como estranha, irracional, «louca», «malévola». Ou é rejeitada, ou refutada polemicamente, ou assimilada numa estrutura narrativa «significativa», reescrita ou designada como romance ou fábula. A alteridade é transformada em idealismo por escritores de romance e é omitida, silenciada e tornada invisível por obras «realistas», regressando de formas estranhas e expressivas em muitos textos. O «outro» expresso através da fantasia tem sido categorizado como uma área negra e negativa — malvada, demoníaca, bárbara — até ao seu reconhecimento no fantástico moderno enquanto o «invisível» da cultura.

Aqui, o verbo «ver» é importante. Por um lado, o fantástico remete a um termo grego que significa «manifestar» ou «tornar visível». Por outro, o verbo é, muitas vezes, igualado a «conhecer»: conhecemos o que, efetivamente, vemos.

O fantástico torna visível o que não o é, aquilo que depende da linguagem para existir, precisamente por não ter referente na realidade, e, como tal     , não pode ser «conhecido». Assim, não só desafia essa ideia iluminista de totalizar o conhecimento (Nevins, Horror Fiction in the 20th Century, XV), mas também designa o desconhecido, aquilo que amedronta a humanidade.

O que é imaginário      aponta para tudo o que é «outro», o que não existe no discurso racional e, nesse sentido, o que deve permanecer invisível, marginal. Como nota, ainda, Jackson, o fantástico sempre foi menosprezado pelos críticos enquanto «literatura de loucos», de «irracionalidade», de «barbaridade», oposta à literatura «realista» e «civilizada». Este sentimento parece traduzir uma aversão não só ao desconhecido, mas também a tudo o que se considera «outro», o que é diferente do «eu».

Apesar de Stephen King considerar o terror inerentemente conservador, esta forma de arte parece ter um efeito algo desconcertante nos seus críticos, à moda do carnavalesco, daquilo que subverte a ordem instituída, e deve, por isso, ser reprimido. Clive Barker argumenta precisamente que a sua obra se insere num contexto carnavalesco, considerando-a tanto uma forma de libertação essencial, numa cultura que exige a repressão do nosso lado sombrio, quanto uma experiência transformadora (Corstorphine e Kremmel, The Palgrave Handbook to Horror Literature).

Esse pensamento ecoa o de Rosemary Jackson, para quem o fantástico aspira à transformação e à diferença. No entanto, esse exercício requer um movimento do sujeito, desde a segurança da familiaridade, do «real» que conhece, para um mundo «outro», regido por leis e seres diferentes, que lhe escapam à compreensão.

De modo a que o efeito do fantástico ocorra, e nisto os teóricos do género parecem estar de acordo, deve existir, contudo, um sentimento de hesitação. O leitor, tal como a personagem, não pode estar certo do que se passa. Além disso, como defende Lovecraft em O Terror Sobrenatural na Literatura, a atmosfera e o medo e terror intensos que o texto provoca são as características mais importantes do texto fantástico.

Medo, perplexidade, ambiguidade, hesitação. São estas as palavras-chave do género fantástico, mais inclinado para o terror.

O fantástico ao estilo de Tolkien ou de C. S. Lewis insere-se no maravilhoso, na fantasia, cuja finalidade está longe da de provocar o medo.

O terror, com as suas raízes no Gótico, aproxima-se do sentimento do unheimlich, definido por Freud em «The “Uncanny”» como tudo aquilo que diz respeito ao terrível, tudo o que suscite pavor e horror.

O heimlich remete para o sentimento de familiaridade e conforto; o unheimlich produz a      sensação oposta: estranheza e desconforto. Além disso, como refere Jackson, o heimlich também remete para o que é oculto dos outros, o que é secreto e obscuro, enquanto o unheimlich potencia uma descoberta desses segredos. Citando esta autora: «A literatura fantástica transforma o “real” através deste tipo de descoberta. Não apresenta uma novidade, revelando antes tudo o que precisa de permanecer oculto para que o mundo seja confortavelmente “conhecido”».

Assim, como escreve Jackson:

Expor o fantástico é substituir a familiaridade […] pela estranheza, pelo desconforto, pelo inquietante. É expor as áreas negras, de algo totalmente estranho e invisível, os espaços além das fronteiras do «humano» e do «real», fora do controlo da «palavra» e do «olhar». Daí a associação do fantástico moderno ao terrível, desde os contos góticos de terror aos filmes de horror contemporâneos. A emergência desta literatura em períodos de relativa «estabilidade» […] aponta para uma relação direta entre a repressão cultural e a sua geração de energias opostas, que são expressas por meio de várias formas de fantasia na arte (tradução livre).

Precisamente por desgovernar um sistema previamente ordenado, a arte do terror não agradará a todos.

De facto, Lovecraft argumenta que «é um ramo estreito, embora essencial, da expressão humana e, como tal, apelará sobretudo a uma audiência limitada, com uma sensibilidade especial e penetrante».

No entanto, esta tese parece-me elitista (em linha com o pensamento geral deste autor) e, embora reconheça que nem todos apreciam o terror, todos serão capazes de reconhecer que se trata de uma forma de arte imaginativa, fruto do pensamento humano, capaz de traduzir realidades, por vezes, intraduzíveis em termos comuns.

Tome-se, por exemplo, a Morte, um conceito que é quase uma entidade e que surge personificada ao longo de muita literatura, como forma de o ser humano apreender aquilo que, para um vivo, é inapreensível — como escreve Jackson, citando Cixous, «apenas os mortos conhecem o segredo da morte».

Veja-se, também, os casos de possessões demoníacas, que podem representar o medo da perda do controlo e da identidade, o pavor perante a existência de uma força superior ao ser humano, com capacidade de o usurpar. O mesmo medo revela-se em relação a vampiros ou zombies, que sugerem a possibilidade de regresso dos mortos, dotados de habilidades que superam as dos vivos, tornando-se, por isso, imprevisíveis e incontroláveis.

Fantasmas, vampiros, lobisomens, fadas, bruxas; na verdade, todos eles podem ser encarados como metáfora de alguma coisa. Note-se até que o fantástico opera segundo metonímias: aquilo que poderia ser uma simples figura de estilo noutro género, é de facto essa coisa.

Um fantasma é um fantasma. Um diabo de facto possui uma rapariga. Um homem volta, sim, dos mortos. O fantástico introduz o que é impossível e, por isso, não só desconcerta, mas também dá vida à imaginação, permite-nos sair do cubículo ao qual chamamos «realidade» e confrontar novos mundos e possibilidades, no conforto da nossa posição de leitor ou espetador.

Além disso, não é um mero escapismo, pois, e recordando as palavras de Tolkien, não nos esquecemos do que existe além da prisão só porque falamos de outros assuntos. Através de narrativas fantásticas, porém, podemos voltar à «realidade» mudados, com uma nova compreensão — coisa comum a qualquer obra artística, é certo, mas com a diferença de termos viajado e ultrapassado as barreiras do «real».

Gosto particularmente da frase de G. K. Chesterton, que sublinha bem a importância do fantástico, e que Neil Gaiman utilizou como epígrafe de Coraline (2002): «os contos de fada são mais do que realidade: não porque nos dizem que os dragões existem, mas porque nos dizem que os dragões podem ser derrotados» (tradução livre).

O fantástico, ao mesmo tempo que desconcerta, reconstrói; arma-nos de possibilidades e imaginação. Não há nada mais humano do que uma boa imaginação.

Dado isto tudo, surpreende-me o cultivo escasso deste género em Portugal.

O ensaio de David Soares «Sobre o horror literário português» (2007) sumariza perfeitamente as razões desse facto, bem como o estudo de Maria Leonor Machado de Sousa, O «horror» na literatura portuguesa (1979), pelo que não me irei alongar sobre o assunto.

Alguns livros a consultar sobre o fantástico, de Maria Leonor Machado de Sousa, Jess Nevins, H. P. Lovecraft, J R R Tolkien e Rosemary Jackson.

A censura da Inquisição, o analfabetismo, a reconstrução após o terramoto de 1755, a censura continuada no regime salazarista — tudo isto contribuiu para um parco interesse no fantástico.

Além disso, como bem nota Machado de Sousa, o negro na nossa literatura «está mais próximo da melancolia depressiva dos românticos que da preocupação do terrífico e sensacional dos romancistas góticos».

Ainda assim, existiram importantes contribuições para o desenvolvimento deste género, embora não tão influentes como as dos autores da tradição anglófona e germânica. Não obstante, é importante notar que, além do Gótico ter chegado tardiamente a Portugal, «a principal causa dessa escassez deve considerar-se a ausência de lendas nacionais, o que os nossos românticos lamentaram amargamente».

Assim, o interesse existia, pelo que é lamentável que uma verdadeira escola de terror não tenha sido formada.

Não podemos, porém, esquecer as contribuições de autores como Álvaro do Carvalhal, Fialho de Almeida, Eça de Queirós ou Camilo Castelo Branco. É extremamente interessante que autores, nomeadamente Eça e Camilo, considerados «canónicos», tenham também revelado interesse pelo insólito, o que realça, a meu ver, o ridículo desta quase «obrigação» do cultivo isolado de literatura «realista» e «séria».

Quem disse que o fantástico não é capaz de tratar temas sérios?

Histórias de fantasia, terror e ficção científica lidam com tópicos tão variados e importantes quanto a literatura «realista». Mas, como disse Terry Pratchett, «histórias de imaginação tendem a perturbar aqueles que não a têm» (tradução livre).

Ainda em relação ao cânone (o conjunto de autores considerados dignos de serem lidos e conhecidos por um povo), poderíamos equacionar inúmeras questões. Quem elege os autores e as obras desse cânone? Faz sentido que ele exista? Que tipo de histórias o devem, efetivamente, integrar? Essa seria uma reflexão longa, que não iremos tratar neste artigo.

Contudo, todos, de modo geral, serão capazes de reconhecer que, dentro dos textos canónicos, são raras as inclusões de obras fantásticas, e ainda mais raro o é no contexto português.

A questão que acho pertinente colocar aqui, a propósito deste tópico, é: não faria sentido, ao criarmos um cânone, incluir vários tipos de obras, de géneros, de autores de origens diversas? Não somos nós múltiplos? Não contemos multidões, como escreveu Whitman?

A arte deve ser múltipla, enquanto reflexo da natureza humana. O fantástico e o terror são algumas das arestas que compõem o poliedro da humanidade. Renegá-las é, a meu ver, bastante empobrecedor.

Vários autores ao longo da História, incluindo alguns considerados puramente «sérios», como Charles Dickens ou Dostoiévski, não escaparam ao apelo do fantástico. Diria até que é o género mais antigo de toda a humanidade, sendo objeto de lendas, mitos e de muita literatura fundadora de culturas.

No entanto, não consideramos essa arte «fantástica», mesmo incluindo elementos que não existem na realidade, tais como deuses, ninfas, sereias, dragões, feiticeiros, espectros; todo um mundo de seres imaginários.

Apesar do desprezo pelos géneros que compõem o fantástico, o fascínio do público por histórias da imaginação é notável. Note-se que livros de autores como Stephen King, Tolkien ou Neil Gaiman são sucessos internacionais; e não podemos ignorar o estrondoso apelo da saga Crepúsculo, ou de Harry Potter, ou dos Instrumentos Mortais.

O interesse existe, inclusive em Portugal, mas são raras as editoras que apostam nos autores nacionais dentro deste género. E não só; são raros os filmes ou séries televisivas portuguesas que lidam com o fantástico. O preconceito ainda assombra a nossa cultura.

É, por isso, relevante recordar as palavras com que David Soares encerra o seu ensaio:

Se um género se faz com autores, e editores, é verdade que também se faz de leitores: num país de gente que não lê, onde o analfabetismo foi fomentado pelas classes dirigentes, como mecanismo de controlo e hegemonia, sendo ainda observado com desconfiança pelas outras, é natural que não se verifiquem condições semelhantes às presentes nos países culturalmente mais ricos. Condições convenientes à saúde do tecido cultural.

É que nós, se calhar, ainda não aprendemos a sonhar.

 

A palavra-chave, penso eu, é precisamente «aprender». De modo a desenvolver uma verdadeira cultura do fantástico, com a pujança que tem noutros países, é necessário aprender a sonhar.

A questão é que nunca fomos ensinados; qualquer esforço ou foi ocultado ou descontinuado. Não foi possível criar uma tradição de terror sólida. E, no entanto, não somos diferentes de outras culturas: o medo, o arrepio, o insólito; tudo isso é transversal.

Como refere Lovecraft, numa frase que se replicou em tantas outras obras, «o medo é a mais antiga e mais poderosa das emoções humanas, e o tipo de medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido».

A definição é discutível, mas o medo não deixa de ser uma emoção importante no tecido humano e digna de ser explorada.

Para que servem os medos explorados em contos de fadas senão para transmitir às crianças a ideia de que esse medo pode ser vencido e ultrapassado? (Além de poderem servir como avisos; não esqueçamos o intuito didático ou moralizante de muita da tradição oral, passada, depois, para a literatura, como forma de prevenir comportamentos de risco.)

E se o medo presente nas histórias de terror, mas também na ficção científica com tonalidades distópicas ou horríficas, puder também funcionar como uma forma de relembrar o ser humano da sua pequenez e das consequências imprevistas que as suas ambições podem ter? — Veja-se o caso de Frankenstein (1818), o texto fundador deste tipo de especulação.

Por outro lado, o fantástico permite que o ser humano explore as possibilidades infinitas que a imaginação é capaz de conceber, sendo, por isso, efetivamente, um género artístico sobre arte. No caso da literatura, um texto é ficção, o que implica imaginação; daí Todorov considerar o fantástico «a quintessência da literatura» (tradução livre).

Assim, penso que David Soares tem razão quando diz que ainda não aprendemos a sonhar. Mas penso, também, que chegou a altura de querermos sonhar.

Conhecer aqueles que deram início ao género fantástico e as narrativas de terror em Portugal, não só na literatura, mas também no cinema, seria, talvez, um contributo importante para que cada vez mais novos artistas nacionais se apercebessem de que podem criar o que desejam. Podem trazer para a luz aquilo que mantêm nas trevas.

O terror, a fantasia e a ficção científica existem e são necessários. O ser humano, numa sociedade cada vez mais saturada de ceticismo e realismo, parece ter perdido o alento do sonho.

Atrevo-me a dizer que apenas o perdemos se deixarmos que isso aconteça. O sonho existe e sempre existirá. Há que o saber traduzir para que outros possam também fazê-lo. E não só: há que haver vontade de o divulgar.

É para isso que cá estamos. Bem-vindos a bordo.